Da escola para o palco

A Escola de Teatro do Conservatório de Macau foi lançada em 1989 como incubadora de talentos. Mais de 30 anos depois, o panorama teatral e a produção artística local estão mais reforçados e a crescer. Há alunos que se tornam actores e encenadores profissionais, outros prosseguem a formação académica no exterior e há quem crie novas associações de teatro. A MACAU foi saber como está o ensino do teatro em Macau

Texto Cláudia Aranda | Fotos DR e Gonçalo Lobo Pinheiro

Para José Ieng Un Ku, professor da Escola de Teatro do Conservatório de Macau durante mais de uma década, o panorama teatral contemporâneo da cidade está a “florescer”. Porque, diz ele, “há muitos estudantes que, depois de frequentarem a nossa escola, vão para o exterior para estudar profissionalmente. E, quando voltam, iniciam a sua própria companhia de teatro, a sua própria associação”, explica o agora antigo docente da Escola de Teatro nas áreas de representação, teatro infantil, teatro para jovens e teatro na educação. Actualmente, acrescenta, “podemos ver cada vez mais projectos e representações no Festival de Artes de Macau ou no Fringe. Os antigos estudantes começaram a usar o teatro também como ferramenta para trabalhar com a comunidade, com os idosos ou as pessoas com deficiências”.

A Escola de Teatro do Conservatório de Macau, fundada em 1989 pelo Instituto Cultural (IC), tem contribuído para o desenvolvimento das artes performativas em Macau, na opinião de estudantes, profissionais e aficionados do teatro contactados pela MACAU. A escola não atribui graus académicos, nem certificados, estando antes vocacionada para funcionar como incubadora de talentos, desenvolver a criatividade e a capacidade de expressão e comunicação dos estudantes, contando com mais de 370 alunos no ano escolar de 2019/2020. Ao oferecer formação básica em artes performativas, cultivando o interesse pelo teatro em crianças e adultos, a escola tem servido de rampa de lançamento para estudantes procurarem formação académica em universidades no exterior e criarem as suas próprias associações de teatro em Macau.

A escola dá as bases

O teatro aplicado é uma das áreas em que se especializou Nicole Wong, que dedicou seis anos a estudar dramaturgia, representação e outras matérias que lhe deram conhecimentos sólidos para lançar-se como encenadora. Mais tarde, essas bases permitiram-lhe introduzir-se no teatro aplicado como forma de gerar consciência sobre determinadas situações e contribuir para um posicionamento crítico. “Antes de ingressar na escola, eu tinha um conhecimento muito limitado sobre teatro. Lá eles oferecem conhecimentos elementares importantes para que possamos ter uma base sólida para começar”, explica a jovem de 34 anos.

Depois de deixar a escola, encenar com a Associação de Representação Teatral Hiu Kok foi o primeiro passo para Nicole mostrar que estava à altura de criar um espectáculo. Apresentou duas peças na série da Hiu Kok dedicada aos novos encenadores, em Novembro de 2011, “A Metamorfose de Phoebe”, que escreveu e encenou, e outra em Dezembro de 2012, “Amor por toda a sua vida”, para a qual escreveu o argumento. Depois disso, Nicole seguiu para Taiwan, onde estudou Teatro Aplicado. Escreveu o texto e encenou “Migrações”, peça apresentada pelo Teatro Experimental de Macau, na edição de 2018 do Festival de Artes de Macau, com um elenco composto por elementos da comunidade imigrante indonésia em Macau e enredo focado nas suas histórias de vida. Actualmente, enquanto funcionária do Centro de Ciência de Macau, Nicole Wong aplica o teatro à ciência e à educação.

Para Gary Ng Ka Wai, de 32 anos, a Escola de Teatro ensinou-lhe técnicas de representação em palco. Mas “o ponto alto foi aumentar o meu interesse e paixão pelo teatro. Isso fez-me decidir ir para Taiwan fazer um mestrado em Artes Performativas, em 2016”, explica o antigo estudante. Gary regressou de Taiwan em 2019 e tem trabalhado para várias companhias locais.

O jovem acredita que o teatro poderia ter mais espaço na agenda cultural do território. “Espero que o teatro de Macau possa se desenvolver cada vez mais e melhor. Como cidade de cultura, acho que Macau deveria ser mais inclusiva em termos de actuações teatrais. No momento, o teatro não tem lugar garantido, mas acredito que melhorará no futuro.”

Bobo Leong Ka Wai, 32 anos, frequentou cursos na Escola de Teatro entre 2009 e 2016 e já colaborou com várias companhias. Diz que na escola adquiriu bases em representação, teatro na educação, direcção de cena. Mas, acabou por se dedicar mais à produção e organização de eventos culturais, área onde julga haver mais oportunidades, deixando de lado a ideia de representar em palco. “Não tenho talento para ser actriz, também não é fácil ser actor a tempo inteiro. Isso fez-me pensar numa maneira diferente de desenvolver a minha carreira no teatro. Então percebi que podia dedicar-me à organização de espectáculos.” Actualmente, Bobo combina o teatro com a profissão de agente imobiliária.

Acordar para o teatro

José Ieng Un Kun faz parte da primeira geração de professores da Escola de Teatro onde ensinou entre 2005 e 2016, tendo regressado por alguns meses em 2019. “Alguns dos professores da escola foram meus alunos, muitos estudantes quando terminam a nossa escola vão para Taiwan, Hong Kong, Pequim, Xangai para prosseguir com os estudos na universidade. Quando se formam, alguns voltam e ingressam na escola de teatro e tornam-se professores. Outros fundaram as suas próprias companhias de teatro”, diz.

A Escola de Teatro do Conservatório de Macau “é a única instituição de ensino em Macau que fornece formação básica sistemática e formal de representação teatral, oferecendo programas para diferentes idades, a partir dos seis anos”, indica o IC. Todos os programas são conduzidos em regime de tempo parcial, “visando nutrir talentos locais e promover a educação artística para o público em geral”, acrescenta o organismo responsável pela escola.

Actualmente com nove docentes, a Escola de Teatro dá formação em teatro e em ópera cantonense, oferecendo 13 programas, todos em cantonês, incluindo cursos de um ano e de três anos. Nos cursos anuais ou plurianuais incluem-se matérias como Teatro para Jovens, Representação, Dramaturgia, Técnicas de Maquilhagem de Palco e Teatro na Educação. A escola “utiliza textos e práticas de tradição ocidental e oriental/chinesas, com um currículo que enfatiza a teoria e a prática. Os alunos podem aprender a disciplina básica do teatro e adquirir o conhecimento geral do desenvolvimento do teatro. Depois de concluírem os cursos oferecidos pela escola, podem escolher tornarem-se actores de profissão ou continuar os estudos em instituições de arte terciárias ou de teatro no exterior”, indica o IC. Cerca de 250 alunos formaram-se em programas de três anos focados na representação e na dramaturgia nos últimos 10 anos, informa ainda o IC.

“Acho que, como existe apenas uma escola dedicada ao teatro, com professores que são profissionais, porque o ensino é dirigido a crianças e adultos, a sociedade torna-se mais consciente da arte teatral. A partir daí, incentivamos as pessoas a desenvolverem as suas próprias associações de teatro”, prossegue José Ieng Un Kun, que tem um mestrado em Encenação pelo Instituto de Rose Bruford, da Universidade de Manchester (Reino Unido) e completou em Singapura o Programa de Formação e Pesquisa Teatral.

O também actor e encenador conta que, em miúdo, queria ser estrela de cinema e televisão. Mas como estas indústrias em Macau não existiam na sua juventude, o jovem optou pelo teatro. Em 2013 fundou em parceria com amigos a “Artistry of Wind Box Community Development Association” e, em 2018, lançou a associação teatral, “The Funny Old Tree Theatre Ensemble”, que agora se dedica ao teatro de rua direccionado para as escolas. O objectivo é “divulgar a arte teatral, consciencializar mais as pessoas sobre esta forma da arte, não apenas dentro das salas de teatro, mas em todos os lugares, e sensibilizar o público”, explica.

Explorar o potencial criativo

As associações de teatro começaram por ser a única escola disponível em Macau e continuam a desempenhar um papel importante no ensino da arte da representação. Billy Hui, director artístico da Associação de Representação Teatral Hiu Kok, fundada em 1975, conta que na sua juventude, nas décadas de 1980 e 1990, era “muito difícil encontrar formação de actores em Macau, estes aprendiam com os mais velhos”. Além disso, a situação económica de muitas famílias não permitia que os jovens fossem estudar para fora, acrescenta. O próprio Billy diz que se tornou um homem do teatro aprendendo com os mais experientes, frequentando workshops em Hong Kong de representação, escrita para teatro, encenação, direcção artística e, ainda, assistindo a peças de teatro, vendo filmes e lendo livros.

Nessa época, conta Billy, a Hiu Kok organizava sessões de formação de cerca de três meses para actores, seguiam-se mais três meses de ensaios e a representação pública da peça em palco funcionava como um exame de qualificação para os principiantes. “A partir de 2006, a Escola de Teatro do IC começou a desenvolver-se cada vez mais, e passou a poder fornecer mais recursos de formação”, explica Billy.

Foi quando a Hiu Kok reduziu as suas sessões de formação, apesar de continuar a organizar workshops para actores veteranos, acrescenta. Em todo o caso, lembra o director artístico da Hiu Kok, a Escola de Teatro não está vocacionada para competir com escolas de Hong Kong ou do Interior do País. “A sua estrutura e alvo são completamente diferentes. A Escola de Teatro do IC não oferece cursos a tempo inteiro, é mais focada em explorar o potencial do aluno, fazer com que goste de teatro, enquanto que as escolas de Hong Kong e do Interior do País oferecem cursos universitários com o objectivo de formar actores profissionais”, explica.

Entretanto, em 2019, e depois de muitos anos, a Hui Kok voltou a ter aulas. Trata-se de uma formação abrangente para principiantes, que inclui representação, mas também outras disciplinas. “Queremos abrir as mentes com mais elementos teatrais”, explica.

Há, no entanto, quem gostasse de ver a Escola de Teatro a crescer e a tornar-se numa academia de ensino com mais competências. Na opinião do produtor teatral independente Erik Kuong, seria importante redefinir o estatuto da Escola de Teatro do Conservatório de Macau. Para Kuong, a instituição “não funciona como uma verdadeira escola, uma vez que não pode fazer planos de aulas como uma escola nem emitir certificados”, por exemplo. O também gestor e director criativo da Creative Links, do BOK Festival e da “Point View Art Association”, reconhece, no entanto, que o IC, através do Festival de Artes de Macau, “tem colocado mais recursos nas produções locais nos últimos 10 anos, o que é bom”, afirma. Mas, “há ainda aspectos-chave que podem ser melhorados, nomeadamente a qualidade artística das produções locais”, adiciona.

Essa melhoria poderia fazer-se, explica, quer alargando o prazo para a produção de novas peças pelas companhias seleccionadas para integrarem a programação do festival – que é agora de apenas cinco meses –, quer convidando curadores locais ou do exterior para comissionar as produções, com pelo menos três anos de antecedência. Esta opção poderia “ajudar a promover as produções locais no estrangeiro, uma vez que o curador tem as suas próprias redes”, sugere o produtor, que se dedica a promover no mercado internacional produções de Macau.

Teatro com identidade

O jornalista, historiador, fundador do grupo de arte dramática Min Koi — Máscara, Fernando Sales Lopes, confirma que quando chegou a Macau, em 1986, as artes performativas e teatrais estavam pouco desenvolvidas. “Havia poucas coisas, sobretudo ligadas à igreja ou às escolas. Estou a falar de teatro ocidental, em português, porque teatro chinês, nomeadamente a ópera chinesa, sempre houve, sempre existiu a contar histórias”, afirma.

Quando o IC criou o Conservatório, onde se integra a Escola de Teatro, “começou a haver um ensino que não era apenas o amador” e criaram-se condições para que as artes se pudessem desenvolver, explica Sales Lopes. “O IC vai buscar gente para dar formação no teatro, e em todas as áreas, criando uma componente didáctica importante para as pessoas aprenderem seguindo regras, com conhecimento da técnica. Por outro lado, criou um sistema de apoio às associações, com subsídios que permitem às pessoas estudarem no estrangeiro”, com a atribuição de bolsas de estudos, por exemplo.

Positivo e optimista em relação ao futuro das artes performativas no território mostra-se também Miguel de Senna Fernandes, que realça a importância do teatro de Macau estar a ganhar uma identidade própria. “Tenho esta noção de que agora há um novo despertar para as artes performativas. Ainda bem que assim é”, afirma o advogado que é também director, encenador e guionista dos Dóci Papiaçám di Macau. O grupo de teatro em patuá, fundado em 1993, recruta geralmente principiantes “que nunca pisaram o palco, pessoas disponíveis para experimentar algo absolutamente novo. É uma grande responsabilidade”, diz.

O advogado afirma que desde há muitos anos que opina que “Macau precisa do seu próprio estrelato, dos seus artistas de palco, dos seus cantores, compositores, criadores, actores, precisa do seu próprio teatro. Há que firmar culturalmente e intelectualmente Macau. Já ando a dizer isto há muitos anos. Para minha satisfação nós temos hoje pessoas que estão a ir para a frente com as suas obras, há um tipo de indústria que se está a desenvolver com origem em actores e artistas locais”, sublinha o também presidente da Associação dos Macaenses (ADM) e da Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM).

“Prevejo com muitos bons olhos o desenvolvimento das artes performativas e artes teatrais de Macau, e estou mesmo muito optimista, porque há pessoas que têm o sentir, mas é o sentir de Macau, são chineses de Macau, e têm essa noção, de que precisam de se afirmar como gente de Macau”, afirma o advogado, prosseguindo: “Há mais pessoas que abraçam esta ideia da identidade de Macau, porque o facto de ser residente de Macau tem as suas características, e que abraçam o passado de Macau, e isto tudo forçosamente vai criar uma nova maneira de abordar o tema Macau e transportar isto para diversos palcos. Espero que assim seja”, remata Senna Fernandes.