Doces sabores de Macau

Foi também graças à sua gastronomia Macau se internacionalizou. A mistura única de ingredientes de diversas culinárias, faz da cidade destino gastronómico reconhecido além-fronteiras. O cruzamento entre Ocidente e Oriente contribuiu para que entrasse, em 2017, na lista das Cidades Criativas da UNESCO, na área da Gastronomia. As sobremesas têm a sua dose de culpa na fama que a cidade tem de destino gastronómico. À semelhança do que acontece com os restaurantes mais conhecidos, também se faz fila à porta dos espaços dedicados à doçaria. A MACAU foi conhecer quatro espaços distintos

Texto Catarina Brites Soares | Foto Gonçalo Lobo Pinheiro

As gelatarias Lai Kei e Kika e as lojas de sobremesas Mrs. Ma e Tim Heong Yuen fizeram das sobremesas negócio. Todas procuraram manter e recuperar tradições, dando primazia ao artesanal em detrimento do industrial. Localizadas em alguns dos bairros mais antigos da cidade, uma visita a qualquer um dos espaços acaba por ser também uma visita à história de Macau. 

Gelataria Lai Kei

É dos negócios mais antigos de Macau e a gelataria com mais idade na cidade. Herdou o nome do primeiro dono, avô paterno do actual. A receita foi passando de mãos em mãos e ainda hoje, volvidas três gerações, se repete quase igual à de há um século. Foi em 1933, que a Lai Kei abriu portas, apesar do negócio ter começado antes. Ainda de bicicleta com uma caixa às costas e anunciando ice cream, Kong Lai-ging começou a vender gelados, sobretudo na zona de Sai Van, onde vivia a camada da população mais rica e que conhecia a iguaria, conta o neto, agora dono do espaço. A bicicleta foi substituída por uma carrinha e mais tarde pela primeira loja, na zona da Travessa dos Anjos. O negócio ainda teve outra casa, de onde teve de sair porque o edifício foi demolido, antes de abrir na Rua do Campo, na década de 1960.

“O negócio passou do meu avô para o meu pai e depois para mim. Ou seja, sou a terceira geração. O meu avô trabalhava no sector da construção naval e conheceu gente de várias indústrias. Conheceu trabalhadores da área do gelo e de maquinaria, e foi assim que aprendeu a fazer gelados”, conta Kong Wing Tsan.

A receita já não é exactamente a mesma, confessa o proprietário de 43 anos. Os ingredientes e os fornecedores mudaram, mas o conceito manteve-se. “Apesar de termos acesso a conservantes e outros aditivos, mantemos o método mais simples de fabrico. Não usamos nada artificial”, garante. Dos 11 sabores da lista, o morango é o único que leva corantes “para lhe dar um pouco mais de cor”, ressalva. 

Por norma, o gelado é feito na fábrica na zona da Horta e Costa, e está à venda na loja no dia seguinte. A produção está a cargo de Kong, dos três funcionários que emprega, e da mãe, que também ajuda. “É um negócio de família”, realça. 

Não esconde o orgulho de não ter virado as costas à herança. As memórias acabaram por se sobrepor à carreira, mas a decisão foi difícil. Kong Wing Tsan trabalhava no sector do jogo até que o pai adoeceu, e foi obrigado a escolher. Depois de hesitar e de ter considerado fechar, percebeu que a marca era mais que um emprego, e que conta capítulos da história da região. “O meu pai disse-me para fechar se quisesse, mas eu recusei. Começámos a ter muitos turistas recentemente e várias pessoas pediram-nos para continuarmos, tinham memórias, era um sítio antigo, e queriam que este tipo de lojas se mantivesse”, recorda. 

Kong, que regressou a Macau há 14 anos, depois de ter ido para os Estados Unidos para estudar Design em Los Angeles, tinha conseguido um bom emprego num dos principais resorts turísticos da cidade. “Acabei por ceder perante a insistência das pessoas. O próprio Governo também nos incentivou a ficar porque somos uma loja antiga. Temos uma história e a verdade é que um turista quando vem a Macau não quer ir ao sítio que encontra em qualquer parte do mundo. As pessoas gostam destes locais porque têm identidade.”

Foi a identidade que lhe valeu o carimbo de loja típica de Macau. A Lai Kei salta à vista apesar das muitas lojas e negócios que pululam na movimentada Rua do Campo, logo pela fachada ainda com as portas envidraçadas, o néon com imagens alusivas e o letreiro Lai Kei Refrescos, Sorvetes e Doces, em português, chinês e com uma versão mais curta em inglês, que diz apenas Ice Cream.

Lá dentro o cenário repete a decoração vintage. As mesas e bancos de madeira creme como já só se encontram nos comércios mais velhos, as paredes despedidas, as ventoinhas e a arca de alumínio onde estão guardados os gelados dão-lhe um ar simples que a torna acolhedora. O menu, em chinês e inglês colado às mesas, foi crescendo ao longo dos anos e hoje, além dos gelados, oferece sobremesas mais elaboradas com coberturas, molhos e afins, batidos, cafés com bolas de gelado e outras modernices. O logótipo continua o mesmo: a tia de Kong quando era criança, e a sobremesa incontornável também: a sandes de gelado.

O espaço é uma viagem no tempo e a história do negócio uma viagem por Macau. “Com o meu avô, os clientes eram sobretudo pessoas com mais posses, portugueses e macaenses essencialmente. Com o desenvolvimento, a vida melhorou e começámos a ter mais clientes locais. Vinham aqui para ouvir rádio, ver televisão, namorar, passavam antes de ir ao cinema ali no Capitol. Ainda na altura do meu pai, nos anos de 1960/70, estes locais eram muito comuns em Macau. Foi na década de 1990 que se ressentiram. Deixou de haver um propósito para se vir a estes sítios. As pessoas começaram a ter congeladores e televisão, hoje já se tem tudo em casa.”

O turismo também mudou, refere Kong. Passou a haver mais turistas de diferentes locais, mas no início este tipo de espaço não despertava tanto interesse como agora. “Antes, os turistas não procuravam este tipo de espaços, preferiam os resorts e a parte mais moderna da cidade. Mas isso mudou recentemente”, realça o proprietário. Hoje, diz, 40 por cento da clientela é de fora. 

Apesar dos obstáculos, Kong gostava que a Lai Kei chegasse à quarta geração. “Gostava que os meus filhos também aprendessem a fazer os gelados e dessem continuidade ao negócio. Sei que não é muito rentável. Se fosse, havia várias. Mas apesar de haver muita oferta, conseguimos mantermo-nos. Somos um negócio com um mercado diferente. A maioria aposta muito em coisas mais chiques. Nós mantemos o tradicional.”

Gelataria Kika

Apesar de o negócio ter só quatro anos, a tradição também é um dos ingredientes da gelataria Kika, mesmo no centro da cidade, perto do Largo do Senado. 

Macau foi amor à primeira vista para Goto Reiko, e foi por isso que a japonesa decidiu mudar-se e investir na cidade onde vive com a família. Estudou culinária no Japão, trabalhou em restaurantes depois de concluir o curso, esteve na Indonésia quase um ano levada pelo fascínio com a cozinha local e, a seguir, decidiu que queria conhecer melhor a China. Foi quando se mudou para Xangai para aprender mandarim, e, mais tarde, para Macau. 

“Vim a Macau de visita e gostei muito. Acabei por vir para cá trabalhar como guia turística por um período, mas queria ficar mais tempo. Apercebi-me que as pessoas aqui gostam muito de produtos japoneses e que não havia gelatarias japonesas. Foi quando decidi abrir uma”, conta. 

Aprendeu a fazer gelados no Japão, ainda que use o método italiano do gelato – conhecido em português por gelado artesanal, o que significa menos incorporação de ar do que o industrial, sabor mais intenso, textura mais cremosa e menor teor de gordura. Além dos sabores habituais, são vários os paladares típicos do Japão feitos com ingredientes provenientes do país como a matcha, sakura, tofu e sal. “Os chás como matcha, genmaicha e hojicha são de Shizuoka, a minha terra natal, e são ervas já muito conhecidas”, realça Reiko.

É a própria que faz os gelados seguindo o processo de pasteurização, com a ajuda de uma funcionária, no espaço onde também está a gelataria, na Travessa da Sé. “Juntamos o leite e as natas, e deixamos a pasteurizar durante quatro horas, assim o gelado tem só o sabor a leite. Depois repartimos o conteúdo em várias doses às quais adicionamos os sabores.

Vai tudo à máquina misturadora e, posteriormente, a outra máquina para solidificar. Usamos a maneira italiana para fazer os gelados.”

Os sabores variam em função da altura do ano. No Verão, predominam as frutas. De Inverno, ganham os de frutos secos como nozes e avelã. Por norma, há 26 possibilidades à escolha. No topo das preferências, diz Goto Reiko, estão os sabores de tofu, matcha, pistácio e chocolate com avelãs. A empresária abriu portas em 2016, mas quer expandir o negócio. Talvez a Taipa seja o próximo destino, desvenda.

Loja de sobremesas Mrs. Fa (發嫂養生磨房)

É numa esquina de uma das zonas mais emblemáticas da cidade que está o negócio de Heng Kuan Chan, que há quase uma década se dedica às tradicionais e famosas sopas chinesas. Na loja atrás do Mercado de São Domingos leva-se a tradição a sério. Heng segue à risca os ensinamentos da avó, com quem aprendeu, e não prescinde de detalhes que devolveram às sobremesas os sabores de outros tempos. Recuperou o método antigo e cozinha as sopas em moinhos de pedra, à vista de quem passa. O cheiro que escapa da loja chama os mais e menos gulosos. 

“A minha avó sempre fez as sobremesas em moinhos de pedra. Quando abri a primeira loja em 2009, decidi que queria manter o método já que não havia nenhuma que fizesse as sobremesas assim em Macau”, conta a dona. 

Garante que o moinho faz toda a diferença porque permite fazer as sopas a uma temperatura ideal, impossível de conseguir na confecção industrial, porque as máquinas atingem temperaturas muito altas e acabam por queimar os nutrientes dos ingredientes. “Quando são feitas no moinho, as sopas também ficam mais macias e o sabor mais apurado.”

Heng aprendeu a ver fazer, repetindo os passos que tinha de memória seguidos pela avó, e que recorda dos tempos em que ainda vivia em Guangdong. “Ia imitando, testando e provando para ver se estavam iguais. Além do moinho de pedra, também faz toda a diferença a qualidade dos ingredientes e eu sou muito exigente. Há 32 espécies de sésamo, mas só três servem para fazer as sopas”, esclarece.

O critério levou-a a investir em produção própria. Hoje tem uma plantação de sésamo no Interior do País, na cidade de Zhanjiang, na província de Guangdong, de onde vem a matéria-prima para fazer uma das sopas mais procuradas no estabelecimento. “Antes importava de diversas zonas da China e do Vietname. Depois achei que podia melhorar a qualidade e foi quando decidi começar a plantar.”

Escura, de cheiro intenso, a sopa de sésamo faz as delícias de turistas e locais que não lhe resistem. “Há clientes que vêm de propósito aqui por causa da sopa ser feita nos moinhos de pedra”, assegura. “Lembro-me de uma senhora, dos seus 80 anos, que veio de propósito à loja porque soube que usava os moinhos de pedra. Depois de comer, disse que o sabor era igual ao das sopas da mãe.”

O critério começa logo na selecção do sésamo – “que tem de ser da melhor qualidade” –, passa-se por água e vai ao forno para ficar crocante. As sopas mais consistentes levam arroz, as mais leves, leite de soja. Depois leva-se ao moinho, acrescenta-se água, deixa-se ferver e adiciona-se o açúcar. 

A oferta não varia. Todo o ano há sopas de nozes, de amêndoas, de inhame chinês e semente de lágrima-de-nossa-senhora, de sésamo, entre outras. Também se encontram os vários pudins como o de gengibre, de flor de osmanthus, castanha-de-água chinesa e de feijão vermelho. Mais recentemente, a empresária começou a apostar nos produtos embalados, como os frutos secos e o sésamo preto em pó, gama que gostava de começar a exportar, incluindo para os países de língua portuguesa.

A excepção na variação do cardápio são as épocas festivas como o Ano Novo Chinês e o Festival do Meio Outono, quando confecciona receitas típicas como o Bolo Lunar, e os zung (bolinhos de arroz glutinoso) no Tung Ng (Festival de Barcos-dragão). Os produtos mais procurados são todos os que têm o sésamo, como as sopas doces, o leite de soja e o pó, para fazer a sobremesa em casa. 

Passada mais de uma década desde que decidiu investir, já vai na terceira loja. Abriu a primeira na Areia Preta, em 2009, e mudou-a para Seac Pai Van em 2018; depois inaugurou um espaço na Rua da Emenda, junto ao Mercado Vermelho, em 2010, e, finalmente, a terceira, no Largo de São Domingos, também em 2010. Ainda tem um restaurante na Taipa e a fábrica na zona da Areia Preta, onde faz os produtos embalados. Tudo o resto – pudins e sopas – é confeccionado nas lojas. Emprega seis pessoas e em média recebe perto de 200 clientes em cada estabelecimento. No espaço do Mercado de São Domingos, os dois andares com uma área pequena facilmente se enchem. É difícil escolher, ainda que as sopas se destaquem. O cheiro, a juntar à aparência cremosa, fazem delas as estrelas do sítio.

Loja de sobremesas Tim Heong Yuen 

O negócio foi o concretizar de um sonho de infância. Desde pequena que Loi Wan Nga se recorda de gostar de andar de volta dos tachos, onde a encontramos no armazém onde cozinha as sopas que depois vende na loja da Rua da Felicidade. A cozinha e a loja são vizinhas, mas ocupam espaços distintos. Loi está normalmente na primeira, já que é ela que sabe de cor os segredos das receitas que herdou da família. 

O dom foi apurado graças à exigência do pai, com quem aprendeu. Os passos ficaram guardados de ouvido e com a prática conseguiu chegar ao preceito de família que lhe tem valido o sucesso, desde 2008, quando inaugurou o negócio. “A diferença da minha loja está também na variedade de sabores. Tento fazer qualquer sobremesa que as pessoas peçam, mesmo que não esteja na ementa.”

Começa a contar pelos dedos das mãos os sabores que oferece na ementa, mas interrompe para ressalvar: “Não faço só o que está na ementa. Vou experimentando, sempre na tentativa de ir ao encontro dos gostos dos clientes. Gosto de ir testando e procurar novos sabores, mas, de base, há 14.”

As sopas de sésamo, de amêndoas, de nozes, de abóbora são alguns dos exemplos que enumera e que tem na loja Tim Heong Yuen, na Rua da Felicidade. Bem perto, na Travessa da Caldeira, é onde passa grande parte do dia a confeccionar as sopas que depois vão em panelas grandes para o espaço comercial – pequeno, modesto, com algumas cadeiras e mesas, e onde está um funcionário que serve as iguarias.