Eternizar a história com as mãos

Tam Kam Chun faz barcos de madeira em miniatura. O ofício foi a forma que encontrou de preservar a história e de não deixar morrer o legado de Lai Chi Vun e da indústria de construção naval, que já foi uma das principais em Macau e à qual se dedicou quase meio século

Texto Catarina Brites Soares | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

É sentado, com vista para o Rio das Pérolas e para a Hengqin do outro lado da margem, na sede da Associação de Construtores de Barcos de Macau-Taipa-Coloane que Tam Kam Chun trabalha a madeira para reproduzir todos os detalhes de um barco em tamanho normal. É também aqui, na sala que faz de oficina, que conta à MACAU porque se dedica ao ofício depois de toda uma vida envolvida na construção naval.

A destreza e minúcia são heranças dos tempos em que trabalhou nos estaleiros de construção naval, quando a indústria ainda era uma das quatro principais da economia da cidade. “As miniaturas são uma forma de divulgar a cultura da indústria naval, de transmitir a história e a tradição de Lai Chi Vun e que havia em Macau”, afirma Tam, que começou a fazer barcos de madeira em miniatura em 2006. “Ninguém me ensinou. Aprendi sozinho. Uso as mesmas técnicas. Da mesma maneira que faço os grandes, faço os pequenos”, afirma, como se fosse fácil.

A madeira que usa ainda vem das sobras da última embarcação construída em Lai Chi Vun, em 2006. Foi recolhendo a madeira que ficou por ali e, apesar da reserva ainda ser grande, ressalva que muita desapareceu com a passagem do tufão Hato em 2017, o mais grave dos últimos 50 anos.

São esses restos que serra, lima e trabalha ao detalhe até chegar a uma bonita e elaborada peça, que depois é envernizada e pintada, num processo completamente artesanal, do início ao fim.

Antes de meter mãos à obra, faz um molde em papel que funciona como maquete e que serve para perceber quão espessa deve ser a madeira e de quanta precisará para fazer a miniatura. “Depois de serrar a madeira e de a polir, começo a construir o barco por fases, sendo a primeira a base e a última o topo. Trabalho sempre de dentro para fora.”

Se trabalhar todos os dias durante cinco horas, o artesão demora cerca de 90 dias para concluir uma miniatura com cerca de um metro de comprimento, que é o tamanho médio que têm as peças que vão para exposição. “Mas depende. Há dias que apenas me dedico duas ou três horas. Só faço quando tenho tempo. Hoje, por exemplo, não tinha nada para fazer, acordei e vim para aqui. É um passatempo, não é um trabalho.”

A estrutura inclui a ponte, o casco e o porão, tal como um barco em tamanho real. Das 10 miniaturas que fez desde que se lançou ao ofício, há uma no Templo de Tin Hau, em Coloane, outra na Universidade de Jilin, onde estudou o filho, e as restantes continuam expostas no Museu dos Navios de Lai Chi Vun, na sede da Associação de Construtores de Barcos de Macau-Taipa-Coloane.

O museu, localizado na Estrada de Lai Chi Vun, é o primeiro dedicado às técnicas e história da indústria e da aldeia. A mostra que esteve aberta ao público em Novembro e Dezembro do ano passado inaugurou o espaço, fruto da iniciativa da Associação Shipbuilding Craft Culture.

“Em 2018, os Estaleiros de Lai Chi Vun foram listados como património cultural, momento que marcou o início de uma nova fase na história da cultura da construção naval de Macau. Esta é a primeira exposição do museu e é também o resultado do esforço da população. A inauguração do museu é também uma celebração dos Estaleiros de Lai Chi Vun e da sua conservação”, refere a associação ao apresentar o museu.

Os pósteres nas paredes exibem fotografias e textos que explicam a história e a arte da construção naval. Além das miniaturas, o museu apresenta os utensílios e ferramentas que se usavam, e partes isoladas para que se veja ao detalhe as diferentes áreas do barco. “Há pessoas que já me pediram para comprar as miniaturas. Não faço isto para ganhar dinheiro, mas sim para divulgar a história”, reitera o escultor.

História essa que também tem sido uma missão para o filho. Historiador de profissão, foi quem tomou a iniciativa de expor o que o pai faz há quase duas décadas por considerar importante que se mantenha e preserve a cultura de Lai Chi Vun. Tam mostra-se orgulhoso. “O meu filho tem-se dedicado muito à história da indústria naval e de Lai Chi Vun, e este passatempo, que tem como finalidade divulgar ambas, também é uma forma de o ajudar. Quero apoiá-lo.”

Confessa não saber até quando, pelo menos através das miniaturas. “Se os estaleiros que restam desaparecerem, deixa de fazer sentido continuar. Até porque fico sem este espaço e teria de arrendar outro, e não é viável.”

É com nostalgia que lembra que Lai Chi Vun chegou a ter mais de 10 estaleiros e era um dos maiores no Delta do Rio das Pérolas, depois se terem agrupado ali os que antes estavam em Macau e na Taipa, na década de 1980, e que foram transferidos face à urbanização e desenvolvimento dessas áreas da região. “Da mesma forma que o Governo tem preservado a indústria dos panchões, também gostava que conservasse os vestígios da indústria naval.”

Lai Chi Vun, na zona oeste da ilha de Coloane e adjacente à vila com o mesmo nome e à de Seac Pai Van, é uma das vilas mais antigas de Macau. Registos históricos comprovam que foi várias vezes invadida pelos portugueses entre 1864 e 1890, e foi onde o pirata Lam Kua Si viveu de 1890 a 1910.

Passar o legado

Nem só de barcos de pesca vivia Lai Chi Vun e a indústria naval na região, sublinha o artesão, que lembra que nos estaleiros locais também se construíam e reparavam outros barcos, como os do dragão.

A arte continua a ter adeptos e hoje os mais novos podem aprender com Tam. Também por iniciativa do filho, o construtor naval começou a dar cursos. Os primeiros decorreram de Dezembro a Fevereiro, todas as semanas, ao sábado e domingo, com duas turmas de quatro alunos cada.

Tam ensina agora o ofício a que se dedica desde 1964. Começou nos estaleiros em Macau e só em 1986 é que se mudou para Lai Chi Vun, onde trabalhou até 2004. “Na minha altura, não havia tantas profissões como hoje. Os mais velhos diziam-me para aprender um ofício e assim poder ganhar a vida e eu escolhi este.”

“Tínhamos de saber fazer todas as partes do barco. Depois o patrão é que decidia quem fazia o quê, de acordo com a habilidade de cada um. Eu tinha mais jeito para a parte do meio, a ponte, onde fica a maquinaria.”

À pergunta se gostava do que fazia, sorri e realça que os tempos eram outros. “Na minha altura, não se colocavam essas questões, se gostávamos ou não. Desde que desse para ganhar a vida, tudo bem.”

Pelas mãos passaram-lhe muitos barcos de pesca em Lai Chi Vun. A procura era grande até passar a ser mais barato construir e reparar no Interior do País. Recorda que dos anos 1960 a 1980 foram décadas douradas, de muito trabalho. Depois começou o declínio. “Começou a haver mais estaleiros e serviços mais baratos no Interior. Também contribuiu para a queda a falta de regras, limitações à pesca na China. Podia pescar-se tudo, tanto peixes grandes como pequenos, e muitos pescadores desistiram da profissão porque já não compensava, não pescavam em quantidade suficiente para terem lucro.”

Nas muitas memórias que guarda, lembra Lai Chi Vun povoada de gente, pequenos negócios e com muitos trabalhadores. Num passado não muito longínquo, a pesca de ostras, as ervas medicinais, as pedreiras, a produção de pele de tofu e de vinho eram alguns dos ramos que proliferavam na vila, além da pesca e da construção naval. “Trabalhavam nos estaleiros cerca de 400 pessoas”, precisa. “Havia muito mais movimento. Além dos habitantes e trabalhadores, havia negócios e lojas. Agora já fechou praticamente tudo.”

A maioria, como Tam, vivia em Macau e todos os dias ia e vinha de Coloane. O escultor continua a passar grande parte do seu tempo na vila desde que se reformou, aos 60 anos. “Tive pena quando os estaleiros fecharam. Não estava à espera.”

Agora, com 72 anos, afirma com firmeza que a história da vila e do ofício está entregue aos da sua idade. “Somos a última geração. Queremos e temos de promover e divulgar Lai Chi Vun. Há crianças que nem sabem que a aldeia existia e que Macau construía barcos.”