Teatro de marionetas

A aldeia como palco

O espaço The House of Puppets em Coloane proporcionou à companhia Rolling Puppet margem para crescer
O grupo de teatro alternativo Rolling Puppet mudou-se de armas e bagagens para Coloane, instalou o seu quartel-general em pleno coração da antiga vila piscatória e colocou a ilha no mapa cultural do território, com a criação de um eclético festival centrado nas ruas, na história e na mundividência de quem lá vive. A The House of Puppets Macau dotou a vila de um novo espaço cultural permanente e a Revista Macau foi conhecê-lo

Texto Marco Carvalho
Fotografia Leong Sio Po

As ruas e os largos de Coloane vão receber em Março a terceira edição do “Out! Festival de Artes de Coloane”, certame independente promovido pelo grupo de teatro alternativo Rolling Puppet, que investiu a antiga vila piscatória de uma improvável centralidade artística. 

Organizada pela primeira vez em 2020, então com uma outra designação, a iniciativa transformou Coloane num palco a céu aberto por onde passaram representações de teatro, performances de fantoches, espectáculos de stand-up comedy, projecções audiovisuais, sessões de magia e até eventos de natureza gastronómica. 

O entusiasmo com que a primeira edição do festival foi recebida convenceu Kevin Chio e Teresa Teng Teng Lam, co-fundadores do grupo de teatro, a enveredar por uma decisão com tanto de insólito como de arrojado. Depois de vários anos a trabalhar num monótono e impessoal edifício industrial de Macau, a dupla de criativos rumou de armas e bagagens à quietude de Coloane. 

Crescimento emocional

“Costumávamos trabalhar num espaço sem janelas, onde todos os odores se misturavam. Se usássemos cola, o cheiro forte permanecia ali por muito tempo e o estúdio enchia-se de pó sempre que fazíamos uso da serra. Era tudo muito caótico”, recorda Kevin. “A mera deslocação para o trabalho era, por si só, uma confusão, com toda a gente à pressa e aos berros”, complementa Teresa.

Teresa Teng Teng Lam e Kevin Chio, co-fundadores do grupo de teatro

A mudança para Coloane proporcionou ao colectivo artístico um espaço mais arejado, mas também um sentido de uma maior proximidade à comunidade. Inaugurado em Março do ano passado na Rua dos Negociantes, o espaço The House of Puppets proporcionou à companhia Rolling Puppet margem para crescer, não apenas em termos físicos e criativos, mas também do ponto de vista emocional. 

“A impressão com que fico é que desde que nos mudámos para Coloane, tudo nos capacitou e fortaleceu: a vizinhança, as pessoas que cá moram. O apoio emocional que nos fazem chegar bastou para que isso acontecesse. Quando abrimos as portas de manhã, dizem-nos ‘Olá, bom dia’. Quando fechamos as portas, ao final do dia, perguntam-nos ‘Então, já acabaram por hoje?’. E isso, por si só, já é muito revigorante”, admite Teresa. “Trabalhámos durante muito tempo em vários locais de Macau e sentíamos a falta deste tipo de ligação. Todos nos tratavam como se fôssemos invisíveis”, lamenta a encenadora e directora artística do grupo de teatro. 

– LER MAIS | Espaço de partilha e consciencialização –

Entalada entre lojas de fruta e de vegetais e uma vetusta mercearia onde pequenos frascos de molho de ostra ombreiam com garrafas de vinho português, a The House of Puppets ocupa integralmente os três pisos de um dos mais imponentes edifícios de linhas tradicionais chinesas do centro de Coloane. O espaço dotou a vila do seu primeiro palco permanente – uma pequena sala polivalente situada na cave do prédio – e foi transformado, pelas mãos dos co-fundadores, numa fábrica de sonhos onde a dupla dá largas à inventividade e à imaginação. “Em termos de criatividade, para nós é muito importante ir buscar inspiração à Natureza. Quando concluímos o nosso mestrado na República Checa e regressámos a Macau, o nosso objectivo era o de estabelecer um teatro-estúdio e foi isso que fizemos”, salienta Teresa.

Muito para além da infância

Em 2014, enquanto aprofundavam os estudos teatrais no Departamento de Teatro Alternativo e de Marionetas da Academia de Artes Performativas de Praga, Teresa e Kevin criaram o grupo Rolling Puppet, a primeira companhia profissional de teatro de marionetas do território. A estadia de dois anos na República Checa – período durante o qual ele se especializou em gestão artística e ela aprimorou a arte de manipular marionetas – inteirou a dupla de criativos com as mais recentes práticas em termos de teatro contemporâneo e de teatro alternativo e ajudou-os a olhar com outros olhos para uma arte cuja profundidade não se esgota nos verdes anos da infância.

“Desde o início, desde que fundámos o grupo de teatro, a nossa percepção é que as marionetas não se destinam apenas às crianças ou que a única coisa que podíamos fazer com elas é comédia ou uma espécie de teatro engraçado”, esclarece Kevin. “No início, as primeiras três ou quatro performances que organizámos tinham os adultos como destinatários: abordavam aspectos como a literatura chinesa ou problemas sociais. Na altura, o nosso objectivo era o de derrubar os preconceitos que existiam em relação ao teatro de marionetas. Queríamos destruir os estereótipos de que as marionetas se destinam apenas aos mais pequenos ou que servem apenas para fazer comédia”, acrescenta.

A Rolling Puppet tem participado em espectáculos a céu aberto para promover o teatro de marionetas

O conhecimento e a experiência que a dupla absorveu durante os dois anos em Praga ajudou a reforçar a percepção de que o exercício artístico nem existe num vazio, nem tem que ser necessariamente insondável. 

Responsável pela dramaturgia, Teresa vai beber inspiração aos lugares, às pessoas e às circunstâncias que a rodeiam para criar as peças que o Rolling Puppet leva ao palco. “Na República Checa, é muito frequente usar as marionetas, o teatro de objectos ou outras formas de teatro alternativo para falar do ambiente, para falar de política. É um modo muito eficaz de expressar as expectativas de uma forma metafórica e isso foi algo que nos inspirou bastante. Acreditamos verdadeiramente que a arte deve estar ancorada no quotidiano. Não creio que fôssemos capazes de colocar no palco um tópico que não nos diz nada”, adianta a directora artística do grupo de teatro alternativo.