Anabela Ritchie

O meu bairro, a minha rua, as minhas gentes

O sentimento de pertença e a vida em comunidade são algumas das melhores memórias que Anabela Ritchie guarda de Macau. Os anos passaram, as experiências multiplicaram-se, mas algumas referências mantêm-se incontornáveis

Texto  Marco Carvalho

Acompanhou o processo de criação do Instituto Português do Oriente (IPOR), do qual foi a primeira presidente, mas foi o seu papel como líder do principal órgão legislativo de Macau que lhe franqueou um inequívoco lugar na história. Anabela Ritchie privou com chefes de Estado e de governo, sentou-se à mesa de presidentes e de governadores, mas a Macau que mais lhe fala ao coração furta-se às relações de poder. A lista é longa e abre, irrefutavelmente, uma varanda para o passado. Aquilo de que sente falta? De um certo sentido de comunidade que se dissipou perante o crescimento galopante da cidade. 


A rua dos primeiros passos

Os joelhos esfolados, uma pétala de sangue abrasada à flor da pele, as tardes intermináveis. Entalada entre edifícios residenciais, exígua e sombria, a rua dos primeiros dias é hoje uma rua de transição, liga o Largo do Lilau à Capitania dos Portos e à descida que desagua, um pouco mais além, no Largo do Pagode da Barra. Mas, para Anabela Ritchie, a Rua da Barra é também o cordão umbilical que a conduz aos anos dourados da infância.

“Eu sou da Barra e os meus grandes amigos são desse tempo. Como havia pouquíssimos carros, nós crescíamos na rua”, relembra. “Crescíamos na rua e é na rua, com gentes de diversas comunidades, que eu aprendo valores de amizade, camaradagem, convívio, pertença”, assinala. 

Viveu até aos 17 anos na casa de dois pisos que o avô possuía na Rua da Barra e foi lá – e no Largo do Lilau, ali a dois passos – que os primeiros valores lhe foram inculcados. “A nossa primeira aprendizagem dos princípios e valores era feita na família, claro, e depois na rua”, reitera. “O Lilau era o sítio onde, por excelência, nós brincávamos. Mesmo sem carros, a rua não é muito larga e tem a sua estreiteza. O Largo do Lilau é uma coisa enorme. Sem carros era o paraíso.”


Pertença desde o berço

As maternidades também se abatem. Aquela em que Anabela Ritchie nasceu não desapareceu por completo, mas subsiste há muito tempo num tipo muito concreto de limbos. 

“Um sítio que me diz muito em Macau é o edifício onde está o Consulado de Portugal. Era o antigo Hospital de São Rafael. Foi lá que eu nasci. Foi lá que as minhas irmãs nasceram”, explica Anabela Ritchie. “Quando se vai falar com pessoas da minha idade, é imediatamente possível distribuir estas pessoas por três grupos, consoante o lugar em que nascerams.”

Mas a sede da representação diplomática de Portugal na Região Administrativa Especial de Macau é importante para Anabela Ritchie também por outras razões. “Estou particularmente satisfeita com a solução que foi dada ao Hospital de São Rafael. A principal razão prende-se com o reaproveitamento do edifício. Por outro lado, está lá o IPOR e eu fui a sua primeira presidente”, esclarece. “Eu chego lá e sinto que há recordações muito doces, há um sentido de pertença a qualquer coisa. Macau mudou de estatuto, mas ali a gente sabe que há uma concentração de valores que nos são muito caros. É um pedaço de mim”, reconhece Anabela Ritchie. 


“Eu sou gente de São Lourenço”

“Havia um grande sentimento de pertença e não estou a idealizar ou a romantizar aquele tempo. Alguns amigos tornaram-se para nós como se fossem irmãos.” Anabela Ritchie vive há trinta anos na Taipa, mas os caminhos da memória empurram-na com frequência para os recantos do Lilau, para as ladeiras da Penha e para as magras ruas que conduziam à Praia Grande e à Igreja de São Lourenço.

“Havia ali um grande sentido comunitário que hoje é difícil de alcançar”, refere. “Nós éramos do Lilau, éramos da Barra. Havia a noção de bairro e o bairro integra-se na gente. Eu sou da Barra e sou gente de São Lourenço”, complementa Anabela Ritchie. 

O bairro de São Lourenço e, em particular, a Igreja homónima, continuam a ser referências incontornáveis: “Era onde alicerçávamos os nossos valores, em termos de educação religiosa e educação moral. Volto lá muitas vezes agora. Fico lá quietinha e parece que estou a ver os meus pais e os meus avós na Igreja. Era a Igreja dos meus pais e dos meus avós. A Igreja da minha gente”, assinala.


Renascer na Praia

Regressou a Macau, vinda de Portugal, onde era professora, e um convite feito ao marido – o médico Alfredo Ritchie – abre-lhe a porta de uma das vivendas que hoje integram as Casas-Museu da Taipa.

Entre 1975 e 1979, encontra na Avenida da Praia um novo sentido de pertença. “Nestas cinco casas, vivíamos cinco casais. Havia treze crianças, todas mais ou menos da mesma idade. As crianças brincavam juntas, jantávamos e íamos para Macau juntos. Criamos outra vez uma comunidade”, salienta Anabela Ritchie.

Em 1986, a docente troca as salas de aula por um lugar na Assembleia Legislativa e seis anos depois, em 1992, substitui Carlos d’Assumpção como presidente do hemiciclo. O resto é história. A 5 de Dezembro de 1999, duas semanas antes da transferência de administração de Macau, as vivendas da Avenida da Praia transformam-se oficialmente num museu. “A casa em que vivi foi transformada numa galeria que acolhe exposições temporárias. É um espaço muito agradável e esta solução permitiu que mais pessoas possam usufruir deste património”, defende Anabela Ritchie.