Tracy Choi

A película e a vida. Breve viagem pela Macau mais genuína

Tracy Choi Ian Sin, cineasta
O filme “Sisterhood”, que catapultou Tracy Choi para a ribalta, olha com saudade para aquilo que Macau foi e já não é e reflecte a essência da cidade onde a cineasta cresceu e onde se movimenta com maior à-vontade

Texto  Marco Carvalho

A Macau de Tracy Choi Ian Sin tem vielas engolidas pela sombra, artérias estreitas estranguladas entre prédios disfuncionais, molhos de líchias encavalitados em bancas de rua, vendedores de char siu e siu iok e uma infinita maré de gente em trânsito. 

Nascida em 1988, a jovem cineasta é hoje a referência mais sonante da primeira geração local de realizadores, mas houve tempos em que a dinâmica e o bulício de San Kiu estiveram no centro do seu universo pessoal. 

Antes de rumar à Universidade de Shih Hsin, em Taiwan, onde estudou Produção Cinematográfica, Tracy Choi viveu e conviveu com a Macau ofuscada pelo brilho dos grandes empreendimentos turísticos e é essa a cidade que se insinua nas obras que cria para o grande ecrã. O filme “Sisterhood”, que teve a sua estreia mundial no primeiro Festival Internacional de Cinema de Macau, em 2016, personifica a experiência vivida em bairros frenéticos, a fervilhar de gente, onde o tempo se escoa com um ritmo próprio.


Carlos da Maia, meu amor

Feliz e despreocupada. É esta a imagem que Tracy Choi preserva da infância e da adolescência. A realizadora, de 33 anos, estudou na Escola Secundária Pui Ching e foi na zona do antigo bairro de San Kiu que cresceu e que aprendeu a valorizar uma certa ideia de simplicidade. “Eu estudei na Pui Ching e vivia ali perto. Vivi naquela zona desde o jardim de infância ao ensino secundário e, sim, a minha infância foi muito feliz”, sublinha a cineasta. 

A memória dos primeiros anos, alegres e imperturbados, foi, para Tracy Choi, motivo suficiente para eleger a zona para morar após concluir os estudos, primeiro em Taiwan e depois em Hong Kong. A jovem realizadora diz sentir-se em casa nas ruas e vielas que desembocam na Rotunda de Carlos da Maia e é lá que continua a encontrar a Macau mais genuína. “Uma das áreas de que mais gosto em Macau é a zona que rodeia a Rotunda dos Três Candeeiros. Ali não existem casinos. É uma área com bastantes escolas e que se manteve quase como era. Há uma série de lojas novas e coisas desse género, mas as pessoas mantiveram o ritmo de vida”, sublinha. “A ideia que tenho é que o estilo de vida das pessoas naquela área é muito diferente e isso foi algo que me influenciou bastante, fez-me pensar no tipo de vida que eu queria ter”, complementa.


A luz que nos Guia

No incipiente panorama da indústria cinematográfica de Macau, Tracy Choi foi pioneira em mais do que um sentido. Os seus filmes abordam recorrentemente temas como o feminismo e a igualdade de género, mas também é possível vislumbrar neles um princípio de nostalgia, a saudade daquilo que Macau foi e já não é. E o contraste entre o que Macau era e aquilo em que se tornou em lado nenhum é mais evidente do que na Fortaleza da Guia, à sombra do primeiro farol erguido no Extremo Oriente.

“Gosto muito do que a vista nos devolve a partir do Farol. A partir de lá, conseguimos ver praticamente toda a cidade. Se subirmos até lá acima, conseguimos ver de um lado a Macau antiga e, do outro, a nova Macau, com todos os novos desenvolvimentos. Esta perspectiva, para mim, é muito especial”, afirma.

Mas mais do que o contraste entre a Macau de ontem e a de amanhã, a panorâmica que se alcança a partir da colina da Guia oferece também um vislumbre daquilo que é a verdadeira natureza de Macau. “Nem todas as cidades são assim. As outras cidades ou decidiram manter as partes antigas ou decidiram destruí-las por completo. Aqui em Macau está tudo misturado. Macau é uma mistura de tudo”, sublinha Tracy Choi.


Madre de Deus, a incontornável

Há arte em olhar uma segunda vez para o que nos rodeia. Em grande medida é isso mesmo que Tracy Choi faz quando filma. Mostrar a verdadeira riqueza do território e revelar a alma de Macau passa pela capacidade de ler para além do imediato, de expurgar a cidade de alguns dos estereótipos que dela se apoderaram e por mostrar o incontornável com uma nova roupagem.

“Do ponto de vista cinematográfico, Macau é muito especial. Temos os casinos e o património. Mas um dos desafios com que me deparei, por exemplo, em ‘Sisterhood’, foi o de procurar mostrar uma Macau que não fosse demasiado turística, defende a cineasta. 

“Um dos locais onde eu queria filmar era as Ruínas de São Paulo. As Ruínas de São Paulo são o tipo de lugar que todos os turistas visitam e o nosso propósito era o de mostrar as Ruínas de São Paulo como nós as vemos no nosso quotidiano. Decidimos que as iríamos filmar a partir de um dos becos que ali estão ao lado. Na história trata-se de um evento significativo, mas nós não mostramos as Ruínas integralmente”, recorda.

Depois de retratar o mais conhecido ponto turístico do território, falta ainda à realizadora alcançar uma velha ambição: “Há uma série de igrejas em Macau que são muito, muito bonitas e eu nunca escondi o desejo de poder filmar numa delas”.


Onde tudo começou

Centrado na história de amor que une duas jovens mulheres na incerta Macau do início da década de 1990, “Sisterhood” (“Irmandandade”, em português) teve estreia mundial no território no âmbito da primeira edição do Festival Internacional de Cinema de Macau, promovida em 2016. A primeira longa-metragem de Tracy Choi terminou o certame aclamada pela audiência e com a jovem realizadora, então com apenas 28 anos, a receber, no Centro Cultural de Macau, o Prémio para a Escolha do Público.

“Depois de me ter formado em Taiwan, regressei a Macau para trabalhar. Naquela altura, há cerca de dez anos, não havia cinema em Macau. Não havia produções locais a serem filmadas com regularidade. Isso não acontecia e nós aproveitámos a oportunidade que nos foi dada. Desafiei os meus amigos a juntarem-se ao concurso organizado pelo Centro Cultural, obter financiamento e filmar algo que tivesse um significado importante para nós”, sublinha a cineasta. 

“Foi também muito importante que a minha primeira longa-metragem pudesse estrear no Centro Cultural, porque foi algo que trouxe visibilidade à indústria cinematográfica local”, conclui Tracy Choi.