Manuscrito

Um pedaço da história entre a China e Portugal

O documento detalha a chegada do embaixador português Alexandre Metelo de Sousa e Menezes a Pequim via Macau, no século XVIII
É um documento raro e consta agora do acervo da Universidade de Macau. A instituição adquiriu o relatório oficial da embaixada do Rei D. João V de Portugal ao Imperador Yongzheng da China, no século XVIII, visto como um importante testemunho para entender o contexto político, económico e social chinês da altura

Texto Sandra Lobo Pimentel

Surgiu como uma oportunidade que a Universidade de Macau não deixou passar. Um livro raro, como explicou o vice-reitor da instituição, Rui Martins, que, acima de tudo, certifica a “muito antiga relação entre Portugal e a China”.

Trata-se de um manuscrito com o relatório oficial da visita a Pequim, via Macau, do embaixador Alexandre Metelo de Sousa e Menezes em representação do Rei D. João V de Portugal, ao Imperador Yongzheng da China, no século XVIII.

Na apresentação do “Relatório Oficial da Embaixada de D. João V de Portugal ao Imperador Yongzheng da China em 1725-1728”, que decorreu na Biblioteca da Universidade de Macau, em Junho, Rui Martins explicou as circunstâncias que culminaram na aquisição deste raro documento. “O professor António Saldanha disse-me, há cerca de seis meses, que um livro raro que reportava a visita de uma embaixada de Portugal à China estava à venda no mercado internacional e discutimos a possibilidade de a Universidade de Macau adquirir este manuscrito.” 

O vice-reitor sublinhou o esforço financeiro levado a cabo pela instituição, relembrando que se trata de uma universidade pública e, por isso, com “uma política orçamental restrita”. No entanto, “a aquisição não é só importante para testemunhar a relação histórica entre Portugal e a China, mas também para a pesquisa dessas relações”, acrescentou. 

O documento será primeiro transcrito para português e traduzido depois para chinês, e mais tarde disponibilizado online, para aqueles que o quiserem consultar, garantiu Rui Martins, sublinhando que este trabalho pode representar também “o início de um processo de estudo e pesquisa deste tipo de documentos”.

O vice-reitor da Universidade de Macau, Rui Martins, destaca a importância do manuscrito para a pesquisa das relações entre Portugal e a China

O manuscrito foi adquirido através da Fundação para o Desenvolvimento da Universidade de Macau, havendo apenas mais um exemplar conhecido. O relatório da embaixada liderada por Alexandre Metelo de Sousa e Menezes foi feito, pelo menos, em duplicado, estando o outro exemplar na Biblioteca da Ajuda, no Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa. 

Momento “emocionante”

Na cerimónia de apresentação do manuscrito, que contou com a presença de vários elementos ligados à Universidade de Macau e do cônsul-geral de Portugal em Macau e Hong Kong, Paulo Cunha Alves, participou também, através de vídeo, o vice-director do Primeiro Arquivo Histórico da China, localizado em Pequim, Han Yongfu.

É nesse local que está, aliás, a carta do Rei D. João V, entregue pelo líder da embaixada, Alexandre Metelo de Sousa e Menezes, ao Imperador Yongzheng, em 1727. Na mensagem gravada para a cerimónia na Universidade de Macau, Han Yongfu destacou que a carta menciona os presentes enviados pelo rei português, incluindo armas de fogo e vinho tinto, e que o imperador chinês respondeu enviando para Portugal itens valiosos, como gengibre, chá e porcelana.

O mesmo responsável lembrou que o Primeiro Arquivo Histórico da China tem um acervo de mais de mil documentos históricos sobre os laços diplomáticos entre Portugal e a China, e destacou a importância do reaparecimento deste manuscrito como forma de desenvolver futuramente o estudo das relações sino-portuguesas.

Durante a cerimónia, António Vasconcelos de Saldanha, professor do Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Macau, destacou a oportunidade de resgatar o manuscrito, não só para conservação de um testemunho da diplomacia sino-portuguesa, mas, sobretudo, para contribuir para o desenvolvimento do estudo dessas relações centenárias.

O docente descreveu como “muito emocionante” o momento em que teve conhecimento que este manuscrito estava disponível para aquisição. “Era algo que tínhamos esperança de encontrar. É importante pela raridade e pelo contexto histórico em que se insere”, desde logo, explicou, pelo facto de o Imperador Yongzheng ter estado no poder por um curto período de tempo e por, também por isso, não ter recebido outras missões diplomáticas europeias.

Na sua apresentação, o professor do Departamento de História da Universidade de Macau falou sobre outras missões diplomáticas portuguesas à China, algumas das quais não passaram de tentativas, como a primeira, numa altura em que a presença portuguesa a Oriente era muito recente, e atravessara três gerações de monarcas portugueses e três gerações de imperadores chineses. 

Aproveitou ainda para revelar alguns pormenores históricos, por exemplo, o nome pelo qual Portugal era conhecido na China e referido em documentos oficiais: o grande reino do Oeste – “um aspecto importante”, considera António Vasconcelos de Saldanha.

O elo de ligação

O relatório oficial contém também muita informação sobre Macau, desde logo pelo facto de a missão acontecer via Macau e Cantão e só depois seguir para Pequim. O tempo que passavam no território e o contacto que tinham com os magistrados e oficiais locais proporcionou várias menções ao contexto e circunstâncias da altura, o mesmo sucedendo com documentos de outras missões diplomáticas. “Estes relatórios são muito ricos em informação e reportam, muitas vezes, exactamente as afirmações feitas nestas visitas”, enfatizou António Vasconcelos de Saldanha. 

O docente mostrou algumas imagens do manuscrito adquirido pela Universidade de Macau, e pormenores como a lombada do livro, muito semelhante ao que está conservado na capital portuguesa. “Eu digo que são quase gémeos, dada a semelhança. Tal como acontece nos dias de hoje, qualquer diplomata tem de fazer um relatório das suas visitas oficiais em duplicado ou triplicado, e foi o que sucedeu no século XVIII.” 

Em Lisboa, Cristina Pinto Basto, coordenadora da Biblioteca da Ajuda, e Fátima Gomes, especialista da instituição, também gravaram um vídeo para a apresentação, onde foi mostrado o outro exemplar do manuscrito agora adquirido pela Universidade de Macau. 

A coordenadora explicou que a Biblioteca da Ajuda era a antiga biblioteca real e, por isso, contém documentos muito importantes que testemunham a longa relação entre Portugal e a China. 

Na ocasião, também foi mostrada a carta que o Imperador Qianlong enviou ao Rei José I de Portugal, em 1753, documento que contém ainda a lista de presentes enviados para Lisboa, outro importante testemunho da relação centenária entre os dois países.