João Caetano

“É de Macau que me sinto”

O artista procura reinventar a música portuguesa de raiz tradicional, dando-lhe novas roupagens
Percussionista, intérprete e produtor. O músico João Caetano, com carreira internacional, tem corrido o mundo e com ele tem levado o nome de Macau, de onde se orgulha ser. O seu mais recente projecto em nome próprio é lançado nas próximas semanas

Texto Catarina Brites Soares

É de pé, envolvido por bombos tradicionais portugueses – feitos por si –, e dividindo-se entre microfone e percussão, que João Caetano se apresenta em palco a solo. “Sou o único artista no mundo que toca bombos tradicionais portugueses, canta e é intérprete”, diz.

São estas características que fazem do músico, nascido em Macau em 1989 e filho de pais portugueses, original. Ao leque do que o distingue, João Caetano junta os 14 anos a viver em Londres, a capacidade de traduzir em música o que vai vivendo e a ligação a Macau. “A minha grande valência é ter nascido e crescido em Macau, ser um cidadão do mundo e estar rodeado de pessoas de todas as partes.” 

O músico, com percurso consolidado nos Incognito, banda britânica icónica no panorama do jazz-funk e acid jazz, decidiu, em finais de 2013, lançar-se a solo, inspirado em raízes portuguesas. Apresentou o primeiro álbum de longa duração no palco do mítico Ronnie Scott’s Jazz Club, integrado no EFG London Jazz Festival, em 2019. “Rhythm & Fado” – gravado nos Livingstone Recording Studios, em Londres, e que inclui uma variedade de sonoridades entre Ásia e Europa –, contou com o apoio do Instituto Cultural de Macau e da AWAL, editora ligada até 2021 à Kobalt Music Group (empresa que representa artistas como Beck, Foo Fighters, Lorde e Paul McCartney, entre outros nomes sonantes). O trabalho, produzido pelo próprio João Caetano, tem 13 temas, entre os quais se incluem um fado original e novas versões para composições de “gigantes” da música popular brasileira – “Corcovado”, de António Carlos Jobim, e “Como é duro trabalhar”, de Toquinho e Vinicius de Moraes.

João Caetano está agora a completar um novo projecto – o lançamento está previsto para o primeiro trimestre deste ano. “Estou ao lado dos grandes nomes da nata da música portuguesa, que acreditaram em mim e deram aval ao meu trabalho. Para mim, é tudo”, afirma.

O novo EP, explica, é a continuação de um trabalho de cinco anos que vinha a desenvolver com o reputado letrista Paulo Abreu Lima, falecido em Janeiro de 2021. É da autoria do poeta a versão portuguesa de “A Thousand Years”, de Sting, tema que o músico britânico interpretou com a fadista portuguesa Mariza, para o álbum dos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004.

A reinterpretação do fado “Loucura” por João Caetano será uma das novidades contidas no novo EP. “É uma afirmação do que faço: reinventar a música portuguesa de raiz tradicional, o fado e os instrumentos populares portugueses, numa roupagem nova que incorpora os bombos de Lavacolhos, a guitarra portuguesa e o acordeão.”

O seu trabalho é uma mistura de várias influências – não tivesse nascido e crescido em Macau. Em criança, fascinava-o o som dos panchões, bombos e tambores chineses, associado às danças do leão e do dragão, elementos que acabou por usar na música que compõe. “São sons que fazem parte da minha vida desde muito novo e é óbvio que mexem comigo e tiveram influência no que faço. Lembro-me de ser pequeno e de ver da minha casa, na Rua do Campo, os ensaios das danças do leão e do dragão no topo dos edifícios”, recorda.

“Preenchi três passaportes em dois anos”

Macau marcou-o por mais motivos, incluindo o de ser “um microcosmo de diversas culturas” e “a cidade – dos grandes casinos e hotéis, dos grandes negócios e apostadores – onde se sente que tudo é possível”, diz João Caetano. “Macau deu-me o luxo de poder viver quase tudo num dia: o desporto, a música, os amigos, o cinema, a escola. Esta é a memória que guardo da cidade.”

Fora há mais de uma década, João Caetano continua a dizer que Macau é especial para si. “Mantenho uma forte relação. A cidade está a mudar, mas as memórias de infância e de adolescente ficam para sempre. Embora já não viva aí, é de Macau que me sinto”, vinca.

E é assim que é apresentado cada vez que sobe ao palco: um artista de Macau que canta em português. “Há uma necessidade cada vez maior de reter as raízes e culturas que nos influenciaram. Cantar em português, representar as culturas portuguesa e de Macau, e também da China, através do que faço, passa muito por querer manter vivas essas raízes”, afirma.


“A minha grande valência é ter nascido e crescido em Macau, ser um cidadão do mundo e estar rodeado de pessoas de todas as partes”

JOÃO CAETANO
MÚSICO

Se os sons de Macau lhe chegaram da rua, os de Portugal foi por influência dos pais. Amália Rodrigues, Zeca Afonso, Fausto e Sérgio Godinho eram vozes habituais em casa e que acabaram por germinar o interesse pela música tradicional portuguesa, marcadamente presente no que haveria de fazer a solo. Antes de se aventurar sozinho – o primeiro EP, intitulado “João Caetano”, saiu em 2016 –, estreou-se com os Incognito.

Pete Ray Biggin, baterista do grupo e de artistas como a falecida cantora Amy Winehouse, foi quem o apresentou a Jean-Paul ‘Bluey’ Maunick, à frente da banda britânica. Assim começava em 2012 uma relação que dura até hoje e a carreira de João Caetano aos 21 anos como percussionista e elemento residente da equipa de produção, gravação e composição. “O ‘Bluey’ apostou em mim. Aprendi muito. Durante praticamente quatro anos, vivi no estúdio dos Incognito. Dormia, comia e fazia tudo ali”, lembra.

Com a banda fez já quase duas mãos cheias de tours mundiais e participou em diversos álbuns, além do single “Uma Só Voz”, um dueto com ‘Bluey’. “Preenchi três passaportes no espaço de dois anos e dei mais de 800 concertos pelo mundo. Esta rodagem e visão, através de aeroportos, concertos, plateias e festivais, deram-me uma perspectiva do mundo que pouca gente tem. Já toquei em quase todos os palcos do mundo”, orgulha-se.

Em Setembro passado, embarcou em mais uma tour com a banda britânica. No Verão, neste caso a solo, actuou no Festival de Flamenco y Fado de Badajoz, em Espanha, ao lado da cantora sevilhana Alba Molina. “São estes momentos que nos fazem crescer e perceber melhor o que nos rodeia”, sublinha. “Nesta fase da minha vida e depois de ter conhecido o Paulo Abreu Lima, sinto-me mais um observador que canta sobre relações e sentimentos do que um cantor de intervenção, como me definia no início.”

Bom filho a casa retorna

A ligação à música portuguesa e ao fado, continua, vem dessa necessidade de cantar os sentimentos, o amor, a tristeza, a felicidade, e de lembrar as pessoas de que mais gosta. “O Tasco da Mouraria” – com letra de Abreu Lima, música de Rui Veloso e interpretado por Mariza – é a letra que mais o comove.

João Caetano também colaborou com estrelas internacionais como Chaka Khan, Mario Biondi, Anastasia, Leona Lewis, Jessie J e Dione Bromfield, além de nomes grandes da música portuguesa. Rui Veloso, Dino D’Santiago, Jorge Fernando, Tatanka, Ângelo Freire, Diogo Clemente, André Dias e Rui Pedro Pity são alguns dos que enumera.

Para lá das referências do mundo da música, o artista vai igualmente beber inspiração à literatura. Fernando Pessoa é o primeiro nome que diz sem hesitar. “A grande beleza do que faço é estar sempre à procura e a aprender com as pessoas de que mais gosto.”

O tempo acabou por dar razão ao instinto. Se dúvidas havia, artista e família ficaram convencidos de que a música seria o destino quando recebeu o Prémio Revelação da Escola Portuguesa de Macau em 2007. 

Depois de concluir em Macau o ensino secundário e o Conservatório – que começou aos quatro anos na disciplina de violino –, João Caetano rumou a Inglaterra, com 18 anos, para estudar música. Com uma bolsa, ingressou na vertente de percussão, na Universidade de Chichester.

Hoje divide-se entre a capital inglesa e Lisboa, em Portugal, mas não esquece Macau. Anseia voltar aos palcos locais e continua a apostar na Macau Records, editora que criou. “O objectivo é divulgar o nome da região e dar a conhecer o que tem de melhor”, explica o artista, que acumula o trabalho de músico com o de produtor. “Tenho vindo a desenvolver uma série de contactos ao nível da música, da fotografia e do vídeo. Agora estou mais focado na minha carreira a solo, mas a editora existe e é real. É uma questão de tempo para concretizar ideias”, ressalva.

A produção do primeiro trabalho discográfico da cantora de jazz Maria Monte, lançado em 2021, marcou o início da Macau Records que, entre outras aspirações, pretende trazer à região nomes da música internacional e estabelecer parcerias entre artistas locais e de fora. “No fundo, tentar criar uma ponte real entre Macau, artistas de Macau e o que Macau tem de melhor com o exterior. Esta é a ideia”, remata João Caetano.