Giulio Acconci

O regresso às raízes e a poética da reminiscência

Giulio Acconci, músico e artista plástico
“É em Macau que me enraízo.” Giulio Acconci pode nem sempre intuir quem é, mas sabe perfeitamente de onde é. O músico e artista plástico regressou há três anos à cidade onde nasceu e pela qual, garante, continua apaixonado. Na Macau que o acolheu, os carros já não rugem com o clamor de outrora e a brisa raramente carrega o aroma adocicado dos frutos da “banyan”, mas foi à sombra de igrejas seculares e de modernos arranha-céus que reencontrou o que há muito procurava: sentido de pertença

Texto Marco Carvalho

Na viragem do milénio, ao lado do irmão gémeo Dino, deu corpo ao mais bem-sucedido projecto musical a ver a luz do dia em Macau em mais de quatro décadas, mas os dias em que os Soler enchiam salas de espectáculo em cidades como Hong Kong, Xangai e Chengdu fazem há muito parte do passado.

A música continua a ser fundamental no percurso de Giulio Acconci, mas outros valores se levantam. O músico e artista plástico regressou a Macau e diz, sem cerimónias, que voltou para ficar.  

A confidência chega sem mágoa e sem remorso, uma constatação desassombrada e nada mais. “Há espectáculos que fiz com o meu irmão, na qualidade de músico profissional, dos quais não me consigo lembrar”, admite Giulio Acconci. “Já as primeiras performances, no Santa Rosa de Lima, essas não as consigo tirar da cabeça.” 

Para o antigo vocalista dos Soler – duo que entre 2005 e 2012 encheu salas de espectáculo um pouco por toda a Ásia Oriental –, as memórias mais belas estão ancoradas na infância e, entre as primeiras e, porventura, mais nítidas, estão os anos passados no Colégio de Santa Rosa de Lima e as intermináveis horas de brincadeira e liberdade que se seguiam no Jardim de São Francisco, ali ao lado.

“A minha mãe sempre foi para mim uma referência, no sentido de que sempre me direccionou para um caminho que privilegiava a união em detrimento da divisão. E começou a inculcar-nos essa perspectiva, a mim e ao meu irmão, desde cedo, logo a partir do jardim-de-infância, no Santa Rosa de Lima”, sustenta Giulio Acconci. 

“O jardim, ali ao lado, era o nosso recreio. Mal os portões da escola abriam, nós corríamos para brincar lá, no parque infantil e no forte. Um dos aspectos mais interessantes sobre Macau é que, sendo pequena como é, a história está por todo o lado. Com nove ou dez anos, eu tinha perfeita noção disso. Tinha consciência do valor do que me rodeava”, assevera.

Jardim de São Francisco

Na Macau de finais dos anos 1970, na qual Giulio e Dino Acconci cresceram, sopravam já ventos de mudança, mas nem o passado se prefigurava um lugar distante, nem o futuro se adivinhava inexpugnável. Despido das hordas de turistas que se tornaram um marco da contemporaneidade em Macau e revestido por uma hoje impensável pacatez, o centro histórico era um amplo e solene recreio, onde bandos de miúdos em desmandada correria – os irmãos Acconci entre eles – enchiam as ruas de gargalhadas e de vida.

“Era o meu recreio. Se me perguntarem onde passei a infância, não há como não referir a Fortaleza do Monte. A fortaleza e a zona ali à volta, quando éramos crianças, era ali que brincávamos. Jogávamos às escondidas e à apanhada entre as Ruínas de São Paulo e a fortaleza”, recorda Giulio Acconci. 

Filho de pai italiano – o arquitecto e escultor Oseo Acconci – e de mãe de etnia Karen – um grupo étnico formado por diversas comunidades nativas do sudeste da Birmânia –, o músico cedo se deixou fascinar pela frágil solenidade do que resta da Igreja da Madre Deus e ainda hoje vislumbra nas Ruínas de São Paulo traços da verdadeira essência de Macau.

“É uma fachada, mas, apesar de ser apenas uma fachada, há tanto que evoca em nós. Estou convencido de que haveria indignação generalizada se alguém se lembrasse de dizer: ‘Necessitamos do espaço. Vamos demolir as Ruínas de São Paulo’. É apenas uma fachada, mas é a fachada na nossa persona, da nossa identidade”, remata.


“Se sinto falta da Macau da minha infância? Sinto, é claro que sinto. Há sons e cheiros que ainda transporto comigo”, admite Giulio Acconci. Frescos na memória, o exótico e agora raro perfume dos frutos da figueira-de-bengala que atapetavam a marginal de Sai Van, entre a Praia Grande e a Meia Laranja, e o rugido dos carros que os esmagavam e empastavam contra o asfalto.

“É uma das memórias mais fortes que tenho de Macau. O cheiro que emanava do chão, misturado com a chuva e com a humidade, era um cheiro exótico e penetrante. Lembro-me bem dele”, assegura o músico. 

“Costumava viver a curta distância da Pousada de São Tiago e desenvolvemos o hábito de assistir à chegada dos juncos todos os dias. Uma das melhores memórias que guardo dos primeiros anos da infância é essa: ver os juncos regressarem após a faina, os pescadores a levantarem as redes. É uma experiência totalmente diferente daquelas que Macau tem para oferecer e fico muito feliz por ter passado por tudo isso”, sustenta. 

Em 1989, menos de um ano após a morte do pai, Giulio Acconci parte para a Europa. Tinha 15 anos e teve discernimento e presença de espírito para perceber que a cidade onde nasceu se iria alterar irremissivelmente.

“Estava convencido de que quando voltasse a Macau, a cidade estaria completamente diferente. Passei dois dias a deambular pelas ruas. Fiz a marginal, fui ao Largo do Senado, à Fortaleza do Monte, à Guia”, recorda. “O último local onde fui foi à Praia Grande e sentei-me ali mais de uma hora a olhar para o mar. Lembro-me de dizer a mim próprio: ‘Um dia, tudo isto vai mudar. Fotografa-o com a tua mente’”, complementa.


Do pai, Giulio Acconci herdou a curiosidade e o gosto pelo conhecimento, mas também – e sobretudo – o sentido de pertença a uma terra onde nunca se sentiu estrangeiro, apesar de muitas vezes ser visto como tal. “Quando andávamos na escola, éramos os miúdos ítalo-birmaneses”, recorda.

No pai, com quem percorreu a cidade e aprendeu a admirar a sua história, o antigo vocalista dos Soler encontrou também a sua primeira e mais duradoura referência, em termos de capital humano e intelectual.

“Tenho muito respeito pelo que ele fez, pela obra que ele deixou. Penso que o projecto que melhor expressa a sensibilidade do meu pai é a igreja em Ká-Hó, que ele concebeu e construiu praticamente sozinho. É a obra que melhor o define. É uma obra na qual colocou muito do seu empenho e do seu tempo”, defende Giulio Acconci. “É inacreditável, porque aquela Igreja apenas daria para escrever toda uma tese de doutoramento. Fui lá com o meu pai por várias ocasiões, ainda o espaço era uma leprosaria, e sempre que lá íamos ele contava-me algo novo, sobre a razão pela qual ele concebeu este detalhe ou aqueloutro. Foi um edifício que sempre me fascinou”, admite o músico, de 50 anos.

É esse fascínio, transposto para muitas outras facetas de Macau, que explica em parte a razão pela qual Giulio Acconci trocou, há três anos, Hong Kong pela cidade onde nasceu. “Se me sinto mais europeu ou mais asiático? Se me vejo a mim próprio como macaense? Pensei nisso durante muitos anos e diria que sou tudo isso e muito mais. Racionalmente falando, acho que sou livre de todos esses constrangimentos. Sentimentalmente, sou como uma árvore que necessita de raízes e é em Macau que me enraízo”, remata.

Igreja de Nossa Senhora das Dores