Serviços de apoio comunitário

Plantar sementes em Hengqin

Apoiar as famílias de Macau que optaram por se mudar para Hengqin é uma das razões que está a levar organizações de apoio comunitário da RAEM a estabelecer uma presença na ilha
A forte aposta no desenvolvimento de Hengqin está a tornar a zona cada vez mais atractiva aos olhos dos residentes de Macau, seja para viver ou apenas trabalhar. Acompanhando a tendência, organizações de Macau de apoio comunitário, como os “Kai Fong” e a Associação Geral das Mulheres, estão já a estabelecer uma presença na ilha

Texto Viviana Chan
Fotografia Ng Yuk Lin

Os serviços de apoio de cariz comunitário prestados por diversas associações de Macau têm vindo a registar um rápido crescimento nos últimos anos, com novas ofertas e uma rede mais ampla. Alguns grupos estão também a entrar em Hengqin, ao abrigo do modelo de “construção e administração conjunta” da ilha acordado entre a província de Guangdong e a Região Administrativa Especial de Macau (RAEM). O objectivo é não só servir os portadores de Bilhete de Identidade de Residente da RAEM aí a morar, mas também o resto da população.

A União Geral das Associações dos Moradores de Macau (UGAMM) – organização também conhecida por “Kai Fong” – opera actualmente um total de quatro centros de serviços comunitários em Hengqin: em meados do ano passado, todos os distritos de Hengqin já tinham acesso a algum tipo de serviço social prestado pela UGAMM. Também a Associação Geral das Mulheres de Macau estendeu os seus serviços de apoio familiar à ilha.

Foi há mais de uma década, em Agosto de 2009, que o Conselho de Estado da República Popular da China aprovou o “Plano de Desenvolvimento Geral de Hengqin”, nos termos do qual a ilha – na província de Guangdong, no município de Zhuhai – foi posicionada como uma área de demonstração de um novo modelo de cooperação entre Guangdong, Hong Kong e Macau. Essa integração entre Macau e Hengqin foi acelerada a partir de 2019, quando foram publicadas as “Linhas Gerais do Planeamento para o Desenvolvimento da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau”, pelo Comité Central do Partido Comunista Chinês e pelo Conselho de Estado. Seguiu-se, em Setembro de 2021, a promulgação pelo Governo Central do “Projecto Geral de Construção da Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin” – a zona reflecte uma iniciativa sem precedentes, rumo a uma maior integração regional, ocupando a área total da ilha.

Foi neste contexto de crescente proximidade que associações de Macau ligadas à prestação de serviços comunitários começaram a olhar para a oportunidade de estender o seu raio de acção a Hengqin. Com o nascimento da Zona de Cooperação Aprofundada, tudo se acelerou. O projecto geral referente à zona de cooperação salienta explicitamente o “reforço da cooperação” entre Guangdong e Macau no âmbito dos “assuntos sociais e da vida da população”, fazendo referência à articulação em áreas como a educação, saúde e serviços sociais, “alargando-se de forma eficaz o espaço de vida de boa qualidade” em Hengqin para os residentes de Macau. O documento menciona ainda a criação de um “mecanismo de cooperação de serviços sociais entre a zona de cooperação e Macau”, promovendo “a gestão comunitária e o desenvolvimento integrado de serviços” entre ambos os lados.

Papel pioneiro

A UGAMM tem estado na linha da frente no que toca a estender a outras cidades da Grande Baía os serviços de apoio comunitário que oferece em Macau. De acordo com o grupo, o objectivo é disponibilizar mais opções de acesso a quem procura a organização.

O primeiro gabinete da UGAMM na província de Guangdong abriu portas em 2018, altura em que a organização inaugurou o seu primeiro centro de serviços comunitários fora de Macau, nomeadamente em Sanxiang, na cidade de Zhongshan. Em Novembro de 2019, foi montado um outro centro, agora em Hengqin, funcionando como um projecto piloto. Seguiram-se mais três centros na ilha, inaugurados em 2021, antecedidos por um outro em Zhuhai, na área de Gongbei, junto às Portas do Cerco.

Uma das prioridades dos centros da UGAMM em Hengqin são os serviços destinados à terceira idade

À Revista Macau, o director do Centro Principal de Serviços da UGAMM em Hengqin, Hun Sio Sang, recorda que a organização começou a prestar serviços de apoio comunitário em Macau durante a década de 1990, operando actualmente cerca de 30 unidades ligadas a este campo. Os diferentes serviços apoiam desde crianças com três anos de idade até cidadãos sénior.

“Sempre quisemos levar a nossa experiência para o resto da Grande Baía. Durante a exploração de possibilidades, descobrimos que as autoridades de Hengqin queriam muito este tipo de serviço”, recorda Hun Sio Sang. Segundo acrescenta o responsável, dois meses após uma visita de familiarização a Macau por parte de uma delegação de oficiais da ilha, para conhecer melhor as operações da UGAMM, os dois lados chegaram a um acordo. “Seis meses depois, nasceu o primeiro centro de serviços comunitários em Hengqin.”

Hun Sio Sang aponta que as instalações comerciais em Hengqin “têm melhorado bastante nos últimos tempos”, havendo hoje mais supermercados e restaurantes, por exemplo. “Devido à implementação de políticas de oferta de benefícios especiais, muitas pessoas de Macau estão motivadas a mudar-se para Hengqin”, acrescenta.

O Centro Principal de Serviços da UGAMM em Hengqin fica no interior de um complexo comercial no coração da ilha, rodeado de condomínios habitacionais. O centro possui sala de leitura, cantina e várias salas de actividade. Também são disponibilizados alguns serviços de saúde, como medição da pressão arterial, e acesso a aparelhos para realização de exercícios de fisioterapia.

O Centro Principal de Serviços da UGAMM em Hengqin inclui, entre outras valências, uma sala de leitura

Até meados de 2022, cerca de 200 residentes de Macau já se tinham inscrito como utentes dos centros da UGAMM em Hengqin. No total, as quatro unidades tinham na altura à volta de 1300 inscritos, incluindo não residentes de Macau, e providenciavam serviços, de forma directa e indirecta, a aproximadamente cinco mil moradores na ilha, de acordo com dados disponibilizados pela organização. Em termos acumulados, os centros registaram em 2021 aproximadamente 100 mil utilizações, incluindo por residentes de Macau e do Interior da China.

Atractividade em alta

No âmbito do 2.º Plano Quinquenal de Desenvolvimento Socioeconómico da RAEM (2021-2025), Hengqin surge definida como “um novo espaço de conveniência para a vida e o emprego da população de Macau”. O Governo da RAEM preconiza que a zona “irá oferecer novas oportunidades de inovação, empreendedorismo e emprego para a população”, sendo, por isso, “necessário estender gradualmente até Hengqin os diversos serviços de Macau”, como sejam os “apoios aos idosos, habitação, educação, assistência médica e seguro social”.

Nesse quadro, a construção em Hengqin do “Novo Bairro de Macau”, disponibilizando cerca de quatro mil apartamentos para residentes da RAEM a preços acessíveis, desempenha um papel essencial. O complexo, com funções integradas de habitação, saúde e educação, deve ficar pronto até ao final deste ano. É visto como um projecto pioneiro, desenhado para que as pessoas de Macau que optem por viver na ilha tenham acesso a serviços sociais e outros benefícios que têm como referência aqueles disponíveis em Macau.

Hun Sio Sang confirma que os centros da UGAMM em Hengqin registaram um “aumento de pedidos de informação por parte de residentes de Macau” desde que o Governo avançou com o projecto do Novo Bairro de Macau. “Os residentes querem saber a localização do projecto, os requisitos para a candidatura”, menciona. Na sua opinião, “o Projecto Geral de Construção da Zona de Cooperação Aprofundada e o Novo Bairro de Macau elevaram significativamente a atractividade de Hengqin junto dos residentes de Macau”.

Hun Sio Sang explica que, ao estender as suas operações para Hengqin, a ideia inicial da UGAMM era “prestar apoio a residentes de Macau, residentes de Hengqin e migrantes” provenientes de outras zonas do Interior da China. Nesse sentido, foram disponibilizados quatro tipos de serviços, nomeadamente para idosos, crianças, jovens e famílias.

O responsável admite que, para a UGAMM, não foi tarefa fácil começar a implementar-se do zero em Hengqin. “Distribuímos folhetos aos residentes e, ao mesmo tempo, criámos grupos de ‘chat’ em aplicações para smartphones, para juntar os moradores. Nesse aspecto, a generalização das aplicações para smartphones nesta zona favoreceu a promoção dos serviços.”

Hun Sio Sang sublinha que o apoio providenciado à UGAMM pelas autoridades de Hengqin foi “proveitoso”. E acrescenta: “Não foi só a cedência de espaço, mas também ouviram a nossa opinião para o design dos centros. Por exemplo, o centro principal usa muito a madeira como elemento decorativo e as salas principais foram decoradas utilizando a árvore como tema, porque queríamos transmitir uma mensagem de que os elementos de Macau se vão implementar como árvores em Hengqin”.

O dirigente reconhece que um dos principais desafios enfrentados pela UGAMM em Hengqin foi a necessidade de se adaptar aos modelos de gestão pública em vigor no Interior da China.  Segundo Hun Sio Sang, os prestadores de serviços sociais de carácter comunitário necessitam de participar em concursos públicos anuais, para renovar os respectivos contratos com as autoridades locais, o que é diferente do que acontece em Macau. O responsável acrescenta que os protocolos celebrados são fruto de fiscalização pormenorizada, com a monitorização a cargo de uma entidade terceira, contratada pelos governos locais. “Isto é algo totalmente novo para nós, pelo que é preciso algum tempo de adaptação”, diz.

Combinar saberes e experiência

Tong Man Wai é director do Centro de Serviços Comunitários do distrito de Hetang, na Vila de Hengqin, na parte antiga da ilha. A unidade, gerida pela UGAMM, ocupa um prédio de três andares que fica junto aos órgãos administrativos de Hengqin.

Segundo dados obtidos pelo centro, existem na Vila de Hengqin cerca de 200 habitantes que são portadores de Bilhete de Identidade de Residente de Macau. À volta de 20 por cento dos utentes dos serviços de apoio comunitário disponibilizados pelo centro enquadram-se nesse grupo, enquanto os restantes são do Interior da China.

Uma parte significativa da população da localidade é composta por idosos, muitos dos quais vivem em edifícios sem elevador. Por isso, o centro dedica especial atenção aos cidadãos sénior com dificuldades de mobilidade. Além disso, também disponibiliza um programa de cantina comunitária para idosos, o qual oferece refeições completas a preços que podem ser tão baixos como dois renminbis. Este tipo de mecanismo tem vindo a ser promovido pelas autoridades do Interior da China: no Centro de Serviços Comunitários do distrito de Hetang, uma média de 60 a 70 idosos por dia fazem uso do programa.

O Centro de Serviços Comunitários do distrito de Hetang, a cargo da UGAMM, disponibiliza um programa de cantina comunitária para idosos

Ligado ao sector dos assuntos sociais em Hengqin há cerca de três anos, Tong Man Wai elogia a gestão das instituições no Interior da China. Na sua opinião, o regime em vigor do outro lado das Portas do Cerco é bastante completo. “A gestão dos centros comunitários é vertical. Os nossos trabalhos não são só avaliados pelas autoridades de Hengqin, mas também pelos governos de Zhuhai e até da província de Guangdong. Existe um mecanismo de fiscalização vertical para que os trabalhos correspondam às exigências.”

O responsável continua: “Diferentes distritos têm condições diferentes. Não é possível prestar serviços sociais iguais em todos os centros; apesar disso, a existência desse mecanismo [de fiscalização] exige o melhor de cada centro comunitário, de acordo com as suas características próprias”.

O Centro de Serviços Comunitários do distrito de Hetang emprega assistentes sociais provenientes de Macau a trabalhar lado a lado com colegas do Interior da China. Tong Man Wai afirma que a experiência “corre bem”. Até porque, nota o responsável, o modelo de comunicação com as autoridades locais em Hengqin é diferente daquele existente em Macau: “Os problemas sociais em Macau são comunicados às autoridades através de vários canais, tais como a comunicação social, e o Governo vem falar com as associações. No entanto, aqui comunica-se com o Governo primeiro”, nota.

Tong Man Wai explica que não existe no Interior da China um sistema automático de reconhecimento das habilitações profissionais dos assistentes sociais de Macau e Hong Kong. “Aqui, funciona um regime próprio e não é necessária uma licenciatura na área de assistência social, mas é antes preciso passar num exame para obter autorização para exercer esta profissão”, refere. Actualmente, há um processo especial que já possibilita aos assistentes sociais de Macau exercer a sua profissão do outro lado da fronteira, mediante autorização, que é depois renovada periodicamente. Tong Man Wai refere que a ambição é que o mecanismo possa ser aperfeiçoado, oferecendo um reconhecimento de carácter mais permanente.

Fórmula de sucesso

A Associação Geral das Mulheres de Macau levou para Hengqin o conceito do seu popular Centro para Crianças e Famílias. As instalações foram inauguradas em Dezembro de 2021, sendo a primeira unidade do género a abrir portas na ilha.

A directora, Tong I Wan, assistente social proveniente de Macau, nota que a maioria dos serviços sociais existentes em Hengqin estava focada no apoio à terceira idade. “Tomámos a iniciativa de trazer os nossos serviços para Hengqin, que é considerada como um ‘novo lar’ para os residentes de Macau.”

O Centro para Crianças e Famílias de Hengqin-Macau localiza-se junto à Vila de Xiacun, numa zona que vai acolher no futuro um centro de serviços públicos. O espaço tem uma área de 760 metros quadrados, dividida por dois andares. “O seu design segue o do Centro para Crianças e Famílias em Macau, incluindo várias divisões para diversas actividades”, diz a responsável.

As famílias que vivem na zona da Vila de Xiacun compõem a maioria dos utentes da unidade. “No início, como o centro é novo, foi difícil criar laços com os locais”, reconhece Tong I Wan. “As pessoas pensavam que íamos cobrar uma tarifa para participarem nas actividades. Depois de lhes explicarmos o nosso funcionamento, as actividades começaram a ganhar popularidade.”

O Centro para Crianças e Famílias de Hengqin-Macau, a cargo da Associação Geral das Mulheres de Macau, abriu portas em Dezembro de 2021

Antes de começar as suas funções no centro em Hengqin, Tong I Wan trabalhou durante seis anos nas instalações em Macau da Associação Geral das Mulheres, no apoio a vítimas de violência doméstica. “A cultura entre Macau e Hengqin é diferente. Os residentes daqui não estão tão conscientes dos apoios existentes; ou seja, as pessoas não costumam pedir ajuda quando têm alguma dificuldade”, nota.

Além disso, a responsável admite que é necessário tempo para os funcionários provenientes de Macau se habituarem ao ambiente de trabalho no Interior da China. “O ritmo aqui é mais rápido e a exigência é diferente”, refere.

A equipa do centro inclui assistentes sociais de Macau e do Interior da China. Nas palavras de Tong I Wan, a fórmula tem provado ser eficaz. “Por um lado, o treino dos assistentes sociais provenientes de Macau é mais sistemático: por exemplo, os casos de apoio são acompanhados de forma distinta. Porém, os assistentes sociais do Interior da China conhecem melhor a sociedade de Hengqin e, assim, podem contribuir com a sua experiência para a organização das actividades”, diz.

Olhando para o futuro, a Associação Geral das Mulheres de Macau tem planos para disponibilizar os seus serviços de apoio às famílias no projecto do Novo Bairro de Macau. De acordo com os seus dirigentes, a organização está também a trabalhar com a Associação Geral das Mulheres de Zhuhai, de forma a explorarem opções sobre como integrarem melhor os respectivos serviços, para apoiar a comunidade de residentes de Macau a viver no município vizinho.