Christine Choi

Périplo pela irrefutabilidade da memória

Christine Choi, presidente da Associação de Arquitectos de Macau
Formada em arquitectura pela University of New South Wales na Austrália, Christine Choi regressou a Macau em 2010 e encontrou uma cidade em metamorfose constante, muito diferente daquela em que cresceu. Mas a actual presidente da Associação de Arquitectos de Macau redescobriu também um tecido urbano onde ainda sobrevivem registos, elementos e espaços onde a identidade cultural de Macau permanece viva. É esse legado que, em conjunto com o marido – o também arquitecto Jimmy Wardhana –, se propõe salvaguardar

Texto Marco Carvalho

“Aquilo que procuro fazer nos meus dias de folga é encontrar, em Macau, espaços onde possa respirar”, diz Christine Choi, que cresceu a acompanhar o desenvolvimento veloz de Macau. “Os locais que costumo frequentar têm, em grande medida, essas qualidades; são locais onde bebo a cultura de Macau, onde mergulho nas raízes de Macau e que, ao mesmo tempo, me transmitem uma sensação de paz e de tranquilidade”, acrescenta.

A Macau de Christine Choi é feita de pedra, taipa e memória, mas também – e sobretudo – do subtil rumor dos dias, ancorado em ecos inefáveis de um tempo pretérito. Não se esgota na solenidade secular dos monumentos, na quietude dos mangais e das veredas ou na nostálgica simplicidade dos pátios, de que se mostra uma acérrima defensora. Tem, isso sim, uma tessitura intangível, na qual as impressões do passado são os inestimáveis fios com que se urde o futuro. 

Não há identidade sem memória e poucos espaços moldaram a identidade de Macau como o pequeno promontório onde Oriente e Ocidente se tocam com maior cumplicidade como o esqueleto da Igreja da Madre de Deus em íntima comunhão com o templo do deus-criança Na Tcha. Tão singular exemplo de cumplicidade permeia também o percurso de vida de Christine Choi, nascida a dois passos de distância, entre paredes e costumes seculares.

“Eu nasci naquela zona, na rua por detrás daquela área. Passava por ali praticamente todos os dias para ir para a escola”, explica. “É uma zona que desperta em mim muitas memórias de infância e, mesmo hoje em dia, é um lugar onde regresso com bastante frequência. Há uma ligação especial entre a Igreja e o templo”, considera a presidente da Associação dos Arquitectos de Macau. 

Mas os encantos da zona não se esgotam na muda voz das pedras e nas histórias que têm para contar. Há um património vivo – que urge preservar – que sobreviveu às hordas de turistas e à vertigem dos dias. “Mesmo ao lado do templo, por detrás daquele troço das antigas muralhas, está o Pátio do Espinho, que é uma aldeia dentro da cidade. Reflecte bem aquilo que Macau costumava ser”, argumenta Christine Choi. 

“Era neste pátio que moravam muitos dos trabalhadores e artesãos japoneses que construíram a Igreja. Ao preservar o pátio, preservamos a memória das pessoas que ali moraram. Mesmo do ponto de vista do tecido urbano, é uma zona muito interessante. Os edifícios têm um ou dois andares, o que permite ter noção da escala das relações de vizinhança que se moldavam nos pátios”, salienta.

Templo de Na Tcha, junto às Ruínas de S. Paulo

Se um nome tinha, há muito que o perdeu. O outeiro onde a fachada da antiga Igreja da Madre de Deus se ergue é hoje um mero prolongamento das encostas que levam ao topo da Colina do Monte, um dos espaços a que Christine Choi regressa com frequência para respirar, para mergulhar no passado e projectar o futuro. 

Instalada no topo da colina desde o início do século XVII, a Fortaleza do Monte é, para a arquitecta, como que uma varanda que se abre para um outro tempo e um outro mundo. “Gosto de subir até à fortaleza através daquelas escadas-rolantes. É como entrar numa máquina do tempo que nos leva a uma outra Macau”, ilustra. 

“Costumava subir até lá acima muitas vezes quando era criança e a vista era muito diferente da que alcançamos hoje. Quando lá regresso, não é bem uma observadora que me sinto. É mais como se fosse uma terceira pessoa, a olhar para aquilo que Macau era e para o ponto onde nos encontramos agora”, acrescenta.

Mas mais do que uma romagem de saudade e de reminiscência, as incursões à colina que resguarda o coração pulsante de Macau ajudam Christine Choi a perspectivar o futuro da cidade onde nasceu. “Regressei há pouco mais de uma década e a verdade é que a cidade mudou muitos em alguns aspectos. Este momento de pausa que a Fortaleza do Monte me permite ajuda-me a viver mais profundamente esta cidade, a reflectir, a interrogar-me sobre o que se segue para Macau”, sublinha.


Se a península de Macau, onde Christine Choi viveu os verdes anos de infância, é uma janela aberta para o passado e para o tipo de relações humanas que ajudaram a fazer do território um ponto de convergência de culturas, a Taipa e Coloane são, para a arquitecta, como que um miradouro para o futuro. Ou, pelo menos, para o futuro que a arquitecta deseja e perspectiva para os seus filhos.

“Vivo na Taipa agora e, por vezes, quando sinto necessidade de escapar às multidões, vou até à Avenida da Praia e passeio com os meus filhos por aquela área de terras húmidas que ali há. A zona foi reactivada, um passadiço foi construído e esta experiência é interessante e é importante”, admite. 

“Há alturas em que me parece que Macau está a avançar depressa demais e nós, de certo modo, perdemos noção de onde estamos, de quem somos e daquilo que verdadeiramente importa. Locais como este, como as Terras Húmidas da Avenida da Praia, são muito relevantes para uma cidade como Macau, porque oferecem a quem cá vive um espaço onde se pode afrouxar e respirar”, sustenta Christine Choi. 

As áreas como Coloane, as colinas da Taipa Grande e da Taipa Pequena e as zonas de mangais da orla costeira têm o condão de sensibilizar as novas gerações para o que verdadeiramente importa. “Por exemplo, há bastantes pássaros em locais como estes. É um bom local para os ouvir cantar. São pequenos estímulos que são muito importantes para as crianças, para as novas gerações ou até para nós. Tornam-nos mais humanos”, assume.

Passadiços ecológicos na Taipa

Os resorts integrados que se tornaram num símbolo incontornável da nova Macau – e que servem de pano de fundo à bucólica quietude das zonas húmidas da Taipa – mantêm residentes e visitantes ancorados à realidade do território, mas na ilha-pulmão de Coloane há ainda recantos onde a imersão na Natureza é quase total. 

Os trilhos que atravessam a ilha são paragens frequentes no planisfério sentimental de Christine Choi e é ali, à sombra da estátua monumental da deusa A-Má, que a essência de Macau se faz mais tangível, em conivência com outra deusa e outro ícone. 

“Percorro muitas vezes os trilhos com os meus filhos e paramos muitas vezes naquela zona da estátua. É muito diferente da estátua da Deusa da Misericórdia que está na frente ribeirinha de Macau. Ainda assim, aquilo que sinto é que estas estátuas sintetizam bem aquilo que é Macau”, defende a arquitecta. “Quando olhamos para a estátua da deusa Kun Iam, apercebemo-nos de que tem um semblante ocidental, mas a vibração que ela emana é muito pacífica”, realça.

Construído na recta final do período de administração portuguesa, o Centro Ecuménico Kun Iam nunca chegou a atingir o potencial turístico que a determinada altura lhe foi antecipado, mas para Christine Choi o facto de a meta não ter sido alcançada não se prefigura necessariamente um aspecto negativo. “Quando o Centro Ecuménico foi construído, não estava a viver em Macau. Quando regressei, apercebi-me da estátua, mas só muito mais tarde me apercebi que havia um espaço museológico por baixo. Sempre que lá vou sinto-me como se tivesse descoberto um local secreto e isso é muito interessante”, conta.

“Nesse sentido, não me incomoda nada que as pessoas não conheçam este local. Ou que não conheçam alguns dos pátios. Se Macau conseguir preservar alguns locais como estes, é bom para a cidade e é bom para as pessoas. Nem todos os locais precisam de ser como o templo de A-Má ou o Largo do Senado”, conclui.