Relojoaria tradicional

A resiliência do tempo

Houve uma época em que eram muitas, mas, hoje, as lojas tradicionais de relógios têm o seu papel diminuído, com os “smartwatches” a tomarem conta dos pulsos das novas gerações. Seguindo as passadas de quem ainda domina a arte de contar as horas e minutos de forma mecânica, a Revista Macau embarcou numa viagem no tempo para conhecer a história de duas destas lojas e dos seus mestres relojoeiros

Texto Vitória Man Sok Wa
Fotografia Cheong Kam Ka

Com 77 anos, Chong Pang Neng é o proprietário da relojoaria Chong Kei, negócio centenário de venda e reparação de relógios fundado pelo pai. O espaço é uma das lojas tradicionais de relógios que subsistem em Macau, sobretudo nas zonas antigas da cidade, e que, nalguns casos, ainda comercializam produtos dos anos 1970 e 1980.

Para a Chong Kei, tudo começou numa tenda localizada à frente do Templo de Lin Kai, no bairro de San Kio. Nos idos anos 1970, Chong Pang Neng e os irmãos tomaram conta do negócio: com as vendas a crescer, a tenda deu lugar a uma loja de pedra e cal. O que permaneceu inalterado, apesar da passagem do tempo, foi a perícia com que Chong Pang Neng excuta a delicada tarefa de reparar relógios mecânicos. O veterano profissional explica que conta já com 73 anos de experiência, uma aprendizagem que começou era ainda criança.

“Nunca fui à escola. Quando tinha quatro anos, comecei a ‘brincar’ com relógios e fui aprendendo com o meu pai”, conta, recordando que o pai recolhia, estudava e depois reparava relógios antigos – e os seus componentes –, para posteriormente os revender.

“Ele salientava sempre que a relojoaria era um trabalho manual seguro para ganhar a vida, e que, por isso, todos os filhos tinham de aprender a fazê-lo”, recorda Chong Pang Neng.

Desmontar relógios e conhecer os seus componentes e funcionamento eram a única forma de entretenimento para Chong Pang Neng durante a infância. Mas foi também uma importante escola: o agora mestre relojoeiro sublinha que talento, mas também perseverança, são essenciais para a profissão.

“Antes de tudo, tremores nas mãos não são permitidos: é preciso estar sempre muito calmo. Por um lado, é necessário examinar o interior do relógio ao detalhe, para conseguir descobrir a causa de um problema e para o resolver. Por outro, sempre que estamos a mexer num relógio, temos de ter atenção, para não o estragar.”

Anos 1980, década dourada

As reformas levadas a cabo por Deng Xiaoping, a partir de 1979, no Interior da China, tiveram o efeito de levar a uma maior abertura económica do lado de lá das Portas do Cerco. Tal tornou os relógios numa mercadoria muito procurada no Interior da China, dando um enorme impulso à indústria dos relógios em Macau e estimulando o seu rápido desenvolvimento, diz Chong Pang Neng. “Nessa altura, um relógio valia o mesmo que um anel de ouro no Interior da China”, recorda. “Alguns clientes meus ganharam muito dinheiro a revender relógios.”

Chong Pang Neng confessa que o sucesso que o negócio atingiu durante a década de 1980 lhe deu a oportunidade de investir em imobiliário. Hoje, com loja própria, pode continuar com o negócio sem preocupações com eventuais subidas de renda.

Contudo, o veterano mestre relojoeiro lamenta o declínio da arte e das lojas tradicionais de relógios em Macau. “Na década de ouro para o sector, havia muitas lojas de relógios e relojoeiros na zona da Avenida de Almeida Ribeiro”, lembra, acrescentando que várias fecharam portas. Para isso contribuiu o impacto do tufão Hato, que atingiu Macau em Agosto de 2017, levando a grandes inundações nas zonas antigas da cidade. “Muitas lojas de relógios foram afectadas e muitos relógios antigos e preciosos ficaram danificados”, diz.

Chong Pang Neng, proprietário da relojoaria Chong Kei

Um factor a afectar o sector da relojoaria tradicional é a crescente popularidade dos relógios inteligentes – também conhecidos como “smartwatches” –, aponta Chong Pang Neng. “Como consequência, a indústria está a encolher rapidamente.”

Apesar dos desafios, o negócio da relojoaria Chong Kei continua hoje, como no passado, a passar pela venda e reparação de relógios. No espaço, é possível encontrar relógios “vintage” novinhos em folha: são os chamados produtos “new old stock”, ou seja, itens originais – neste caso, das décadas de 1970 e 1980 – que nunca foram vendidos. Estes relógios fazem as delícias dos amantes da relojoaria “vintage”, usualmente oriundos de Hong Kong, que visitam a Chong Kei em busca de tesouros.

Chong Pang Neng garante que os relógios antigos têm melhor qualidade do que os actuais modelos, devido aos processos de fabrico e componentes então usados. “Por exemplo, só o movimento de um destes relógios vale 800 patacas do preço total de 1000 patacas”, afirma.

A qualidade dos produtos, acredita, é mais um elemento que leva muitos turistas de Hong Kong à sua loja em busca de artigos “new old stock”. Mas o proprietário da relojoaria Chong Kei admite que faz uma “verificação de antecedentes” aos clientes: só os verdadeiros amantes de relojoaria têm acesso aos seus relógios mais antigos. Até, porque, sublinha, mais cedo ou mais tarde, o stock irá acabar.

Ligando Macau e Hong Kong

Embora tenha também herdado o negócio do pai e tenha crescido por entre relógios, Chao Kin Seng, de 67 anos e proprietário da Relojoaria Chong I, na Rua da Barca, possui uma experiência profissional distinta da de Chong Pang Neng.

O seu pai começou por ser professor. Foi um colega, relojoeiro amador de grande talento, que o expôs a esta arte, despertando nele uma grande curiosidade e interesse pelo mundo dos relógios. Mais tarde, o pai acabaria por fundar, na década de 1960, a Relojoaria Chong I.

“O meu pai foi muito democrático. Nunca pediu aos filhos para aprenderem relojoaria e incentivou-nos sempre a viver a vida da forma que mais gostássemos”, recorda Chao Kin Seng. Ainda assim, foi natural que ele começasse a aprender sobre relógios com o pai, quando ainda andava na escola primária.

Já no ensino secundário, Chao Kin Seng descobriu um interesse especial pelas disciplinas de mecânica e electrónica. Coincidentemente, um antigo aluno do pai era agora relojoeiro profissional em Hong Kong, abrindo a oportunidade para que Chao se mudasse para a cidade vizinha para aprender relojoaria com ele.

“A indústria relojoeira de Hong Kong é maior e mais desenvolvida do que a de Macau, mas mesmo assim é um grande apoio para Macau”, diz Chao Kin Seng. “Por exemplo, lá existem mais componentes e ferramentas para relógios, que são muito difíceis de encontrar em Macau, bem como mais fábricas e especialistas em relógios. A experiência em Hong Kong ajudou a elevar a minha reputação em Macau.”

Chao Kin Seng, proprietário da Relojoaria Chong I

Se, para Chong Pang Neng, a década dourada da indústria relojoeira de Macau está intimamente relacionada com a reforma e abertura económica no Interior da China, Chao Kin Seng defende que a mesma se ficou a dever ao facto de muitas fábricas de relógios electrónicos de Hong Kong terem aberto filiais em Macau nessa altura.

“Os relógios electrónicos tornaram-se populares nos anos 1980, mas a precisão necessária para repará-los era difícil de obter. A geração mais antiga de relojoeiros consertava apenas relógios mecânicos”, recorda. “Para mim, isso foi uma coisa boa, porque gosto de estudar produtos electrónicos, mas, para o negócio, consertar relógios electrónicos requer muito tempo e esforço e, por isso, não vale a pena.”

Na Relojoaria Chong I, tanto é possível colocar um relógio para arranjar, como comprar um novo. No entanto, o proprietário confessa que é complicado conciliar as duas vertentes do negócio.

“É muito difícil trabalhar em relojoaria e fazer vendas ao mesmo tempo. Quando estou a consertar um relógio, tenho de ficar muito concentrado e é difícil servir os clientes. Sobretudo porque há clientes que gostam de nos comprar relógios devido à confiança que depositam no nosso profissionalismo e no nosso serviço.”

Ainda assim, há também benefícios, admite Chao Kin Seng. “Há clientes que vêm cá consertar um relógio e acabam por comprar mais um enquanto esperam. Muitos dos nossos clientes tratam os relógios como se fossem o tesouro mais importante das suas vidas.” 

Os produtos da Chong I são todos importados de Hong Kong. Chao Kin Seng descreve a escolha do inventário como algo que pode ser arriscado. “Às vezes, tenho coragem e compro mercadoria com marcas e cores não convencionais. Não há muitas lojas que tenham coragem de importar estes produtos. No entanto, acabaram por se tornar muito populares em Macau”, garante.

Tal como Chong Pang Neng, Chao Kin Seng olha com mágoa para os efeitos do tufão Hato no sector da relojoaria em Macau, admitindo que muitos relógios “vintage” de maior valor comercial e sentimental se perderam. “Não quero falar sobre isso. Cada vez que me lembro disso, o meu coração parte-se”, desabafa.

Da paixão à colecção

Face à competição dos “smartwatches” e dos relógios electrónicos, as lojas tradicionais de relógios de Macau têm vindo a encontrar nos coleccionadores e nos apreciadores de artigos “vintage” um nicho de negócio.

O presidente da Associação dos Coleccionadores de Antiguidades de Macau, Augusto C. A. Gomes, é um ávido apreciador de relógios “vintage”. Possui uma colecção com cerca de 100 relógios, alguns deles já com mais de 100 anos, fruto de quatro décadas de coleccionismo.

O coleccionador diz que, na década de 1970, os relógios eram vistos como algo de muito relevante para as pessoas. E ele não foi excepção. “Quando comecei a trabalhar, comprei um relógio para me motivar”, conta. “Acabei por descobrir que esse relógio era muito importante para mim. Aos poucos, poupei dinheiro e comprei um relógio mais caro. Deste modo, acabei por desenvolver um amor por relógios, e, ainda hoje, os continuo a coleccionar.”

Augusto C. A. Gomes, presidente da Associação dos Coleccionadores de Antiguidades de Macau

Augusto Gomes recorda que, então, os salários não eram muito elevados. Por isso, aos fins-de-semana, o entretenimento de muitos passava por fazer uma “caça ao tesouro” na zona da Travessa do Armazém Velho, onde existia uma das feiras de antiguidades mais populares de Macau, na qual era possível encontrar relógios em segunda mão. Desta forma, as visitas ao mercado contribuíram para consolidar o seu interesse por relógios antigos.

Se a aventura de coleccionar relógios “vintage” começou na Travessa do Armazém Velho e passou depois para as lojas de antiguidades e lojas de penhores, hoje, o canal mais usado pelo coleccionador – também para se informar – é a Internet. A maioria dos seus relógios foram adquiridos em Macau e Hong Kong, mas possui modelos comprados no Japão, Taiwan e outras paragens.

Para Augusto Gomes, o valor de um relógio não passa pela marca nem pelo preço, mas sim pela atracção que desperta. “Além disso, deve verificar-se também o ano e as informações disponíveis sobre o relógio, para ver se se trata de uma edição limitada, verificar o preço original e comparar com o valor actual”, explica.

Paixão é paixão e Augusto Gomes garante que nenhum relógio da sua colecção está à venda. “Comprar relógios para revender é investimento, não é coleccionismo”, afirma.

De resto, o coleccionador mostra-se preocupado com a falta de sangue novo entre os relojoeiros locais, o que dificulta a manutenção da actividade a longo prazo. “Para se tornar num mestre relojoeiro, uma pessoa precisa de começar a aprender esta arte desde jovem e adquirir muita experiência. Tem de se saber consertar qualquer modelo e estar familiarizado com todos os tipos e marcas de relógios”, explica. “Antigamente, para ajudar financeiramente a família, muita gente precisava de começar a trabalhar quando tinha 15 ou 16 anos. Agora, ninguém quer trabalhar em relojoaria.”

Tanto Chong Pang Neng como Chao Kin Seng confirmam o cenário: as gerações mais novas das respectivas famílias não planeiam continuar a tradição. “Para se ser relojoeiro é preciso talento. Antes de mais, o relojoeiro tem de ter sensibilidade nas mãos. Depois, precisa de ter um nível de inteligência emocional elevado, porque é necessário manter a calma e ser-se firme. Não é toda a gente que tem capacidade para a relojoaria”, refere Chong Pang Neng.

Já Chao Kin Seng sublinha a experiência que é necessário acumular até atingir a excelência. “Leva pelo menos três anos para aprender esta prática, antes de alguém se tornar num relojoeiro júnior. Depois, são precisos, pelo menos, dez anos para essa pessoa se tornar num mestre respeitado.”

Na Relojoaria Chong I, há relógios “vintage” de diferentes marcas e modelos

Ambos os relojoeiros acrescentam que, como o salário não é elevado e a profissão implica tempo, talento e esforço, existem hoje poucos jovens de Macau a dedicar-se a esta área. Uma das excepções – mas proveniente do Interior da China – é Mo Jinlong, funcionário da Relojoaria Chong I.

“Comecei como vendedor numa empresa de relógios em Zhuhai. Aos poucos, desenvolvi um forte interesse pela área da relojoaria e comecei a sentir-me orgulhoso por poder ajudar os clientes com o meu conhecimento sobre os modelos”, conta. “Além disso, esta é uma profissão que não requer muito esforço físico. Por isso, comecei a aprender relojoaria.” Foi por indicação do seu antigo chefe em Zhuhai – amigo de Chao Kin Seng – que acabou na Chong I em Macau.

Chong Pang Neng mostra-se satisfeito com o facto de a relojoaria estar a crescer no Interior da China. “Há muitos jovens que vivem em aldeias e gostariam de aprender relojoaria para ganhar a vida nas cidades, especialmente porque esta é uma profissão que não requer muito esforço físico. Gosto de ver vídeos sobre relojoaria no TikTok: os jovens relojoeiros chineses são muito profissionais”, diz o septuagenário, acrescentando que, para um relojoeiro, independentemente da idade, é importante acompanhar a evolução dos tempos.