A iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”, lançada há uma década pelo Presidente Xi Jinping, conta actualmente com o envolvimento de 151 países, tendo estado na base, desde 2013, de vários projectos visando uma maior interligação entre as nações participantes. Macau também tem um papel a desempenhar no seio da iniciativa, fazendo uso das suas funções enquanto plataforma
Texto Marta Melo
Foi em Setembro de 2013 que o Presidente Xi Jinping propôs, no Cazaquistão, a criação de um novo corredor de desenvolvimento entre a China e os países da Ásia Central, que denominou de “Faixa Económica da Rota da Seda”. Através da construção de rotas terrestres – a que se somariam marítimas –, a China pretendia impulsionar uma maior ligação entre a Ásia, a Europa e a África, promovendo o comércio e os canais de transporte: estavam lançadas as bases da iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”, que celebra este ano uma década de existência.
A iniciativa tem um “carácter holístico de terra e mar”, a que se juntam também “corredores digitais”, observa Paulo Duarte, investigador na Universidade do Minho, em Portugal. Já na opinião da também académica portuguesa Fernanda Ilhéu, a iniciativa tem um grande enfoque nas infra-estruturas, com o objectivo de facilitar a circulação de pessoas e mercadorias a nível transnacional.
Neste contexto, explica Ricardo Siu Chi Sen, docente da Faculdade de Gestão de Empresas da Universidade de Macau, a Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) tem uma função, “em grande parte, de plataforma de comércio e serviços financeiros”. Tal, acrescenta, enquadra-se no papel do território no âmbito da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau e como plataforma de serviços para a cooperação comercial entre a China e os países de língua portuguesa.
Na direcção certa
A iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” é uma designação simplificada que abrange duas noções distintas: a “Faixa Económica da Rota da Seda” e a “Rota Marítima da Seda para o Século XXI”. O objectivo primordial da iniciativa é aproveitar as milenares rotas da seda partindo da China para promover uma articulação ao nível das estratégias de desenvolvimento dos vários países participantes, desde a Ásia à Europa, passando por África.
O conceito “Uma Faixa” envolve três corredores terrestres principais: da China à zona do Mar Báltico, na Europa, via Ásia Central e Rússia; da China ao Golfo Pérsico e ao Mar Mediterrâneo, através da Ásia Central e Ásia Ocidental; e da China ao Sudeste e Sul da Ásia e ao Oceano Índico. Já o conceito “Uma Rota” abrange dois corredores marítimos prioritários: dos portos do litoral da China via Oceano Índico à Europa, através do Mar do Sul da China; e dos portos do litoral da China ao Pacífico Sul, também através do Mar do Sul da China. No entanto, de acordo com as autoridades chinesas, a participação está igualmente aberta a países de outras geografias interessados em envolver-se na iniciativa.
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Um dos textos de referência para compreender o conceito “Uma Faixa, Uma Rota” foi publicado cerca de um ano e meio após o discurso de Xi Jinping no Cazaquistão. Em Março de 2015, a Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma, o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Ministério do Comércio da República Popular da China lançaram o documento “Visão e Acções para a Construção Conjunta da Faixa Económica da Rota da Seda e da Rota da Seda Marítima do Século XXI”, detalhando os princípios e enquadramento estratégico da iniciativa. Em 2017, num discurso proferido na cerimónia de abertura do Fórum para a Cooperação Internacional “Uma Faixa, Uma Rota”, Xi Jinping resumia o objectivo final como a criação de um caminho pacífico, próspero, aberto e inovador de interligação entre diferentes civilizações.
Em Janeiro deste ano, o Turquemenistão tornou-se o 151.º país a assinar um acordo de cooperação com a China subordinado à iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”. As parcerias envolvem também 32 organizações internacionais. “Tem-se expandido muito rapidamente”, observa Fernanda Ilhéu.
Os progressos, segundo Edmund Sheng Li, docente em economia política e políticas públicas da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Macau, têm sido “significativos”. “Na última década, a iniciativa ‘Uma Faixa, Uma Rota’ esteve envolvida em grandes investimentos de infra-estruturas como portos, estradas, ferrovias e aeroportos, bem como centrais eléctricas e redes de telecomunicações”, em diversos pontos do globo, afirma o académico.
De acordo com dados do Ministério do Comércio chinês, entre 2013 e 2020, o valor das trocas de mercadorias entre a China e os restantes países abrangidos pela iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” ascendeu a 9,2 biliões de dólares americanos. Durante o mesmo período, o investimento directo chinês nesses países cifrou-se em mais de 130 mil milhões de dólares americanos.
Ricardo Siu considera que o progresso da iniciativa está na “direcção certa”. O académico entende que a ideia central de melhorar a ligação entre a China e os restantes países participantes “está a ter avanços”, assim como há “progressos”, registados ao longo da última década, no bem-estar social e económico das nações abrangidas.
De Nairobi a Gwadar
As infra-estruturas abrangidas pela iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” são importantes para o desenvolvimento económico dos países envolvidos, referem os analistas ouvidos pela Revista Macau. Para Paulo Duarte, o continente africano é “um dos expoentes máximos do bom funcionamento” da iniciativa.
No caso de África, assinala Edmund Sheng, a iniciativa abriu portas para o financiamento de projectos necessários em muitos países, mas que não avançavam por falta de verbas. “Segundo o Fundo Monetário Internacional, o financiamento através da iniciativa ‘Uma Faixa, Uma Rota’ está a preencher muitas das lacunas de longa data do continente ao nível das infra-estruturas e com resultados positivos”, afirma o académico. Segundo acrescenta, disso são exemplo diversos projectos ferroviários na África Oriental: “as linhas ferroviárias Nairobi-Mombaça e Adis Abeba-Djibuti abriram um potencial para um fluxo internacional de investimento”.
O denominado “Corredor Económico China-Paquistão” é outro exemplo sublinhado por Edmund Sheng. O projecto – inicialmente avaliado em cerca de 62 mil milhões de dólares americanos – visa ligar a zona oeste da China ao porto de Gwadar, no Mar Arábico. “Para o Paquistão, as ligações rodoviária e ferroviária para Gwadar representam uma grande melhoria na rede de transportes e abrem inúmeras oportunidades para a indústria e o comércio no país. Afirma-se que a rede de ligações de transporte, de centrais eléctricas e fábricas ao longo do corredor criará até um milhão de empregos no país”, refere o académico.
Já do ponto de vista de Ricardo Siu, o “maior impacto” do investimento em infra-estruturas – como indicam vários estudos – “é baixar os custos do comércio” entre os países. “Por exemplo, a construção de melhores portos e sistemas de comunicação vai aumentar a eficiência (enquanto baixa os custos) do transporte e da informação.” Mas também “aumentará a qualidade de vida das pessoas” nos países participantes, aponta.
De acordo com um relatório do Banco Mundial, datado de 2019, espera-se que a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” ajude a tirar 7,6 milhões de pessoas da pobreza extrema e 32 milhões da pobreza moderada, até 2030. Edmund Sheng assinala que, pela sua dimensão e alcance, o projecto chinês tem potencial para aumentar o produto interno bruto mundial em até 7,1 biliões de dólares americanos por ano até 2040, reduzindo os custos do comércio global em até 2,2 por cento, segundo estudos internacionais. “A iniciativa ‘Uma Faixa, Uma Rota’ é um produto de cooperação compreensiva, não um instrumento de geopolítica”, sublinha o académico.
O papel de Macau
A participação de Macau na iniciativa “Uma Faixa, uma Rota” tem sido um dos desígnios do Executivo da RAEM. Em 2018, o Governo assinou com a Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma um acordo nesse sentido. O documento – denominado “Preparação para a participação plena de Macau na construção de ‘Uma Faixa, Uma Rota’” – refere áreas essenciais no que toca ao envolvimento do território na iniciativa, visando aproveitar as vantagens competitivas da RAEM.
Em Novembro do ano passado, na quarta reunião conjunta da Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma com o Governo da RAEM sobre a participação de Macau na construção da iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”, o director-adjunto da comissão, Lin Nianxiu, salientou então os resultados positivos já alcançados pelo território.
A “participação e apoio à construção de ‘Uma Faixa, Uma Rota’” merece um capítulo próprio no “2.º Plano Quinquenal de Desenvolvimento Socioeconómico da RAEM (2021-2025)”. Entre os trabalhos prioritários aí definidos, estão o reforço da cooperação na área fiscal com os países e regiões abrangidos pela iniciativa, bem como o enriquecimento da função de Macau enquanto plataforma de serviços financeiros entre a China e os países de língua portuguesa. É também referido o fortalecimento do intercâmbio e da cooperação cultural internacionais.
Ricardo Siu destaca o trabalho que tem sido feito pelo Governo para promover a RAEM como plataforma de comércio entre a China e os países de língua portuguesa. Um exemplo são as várias conferências, exposições e fóruns organizados para “facilitar o comércio e a comunicação entre os países”.
Em Junho, durante o Fórum Internacional sobre o Investimento e Construção de Infra-estruturas, evento anual que decorre em Macau, além do lançamento habitual do “Índice do Desenvolvimento de Infra-estruturas dos Países Abrangidos pela Iniciativa ‘Uma Faixa, Uma Rota’”, foi publicado, pela primeira vez, o “Índice de Desenvolvimento de Infra-estruturas dos Países de Língua Portuguesa”. Também em Junho, a Academia Fiscal de Macau no Quadro da Iniciativa “Faixa e Rota” organizou um curso em matéria fiscal com a participação de funcionários das autoridades tributárias dos países de língua portuguesa.
Edmund Sheng vê Macau como um “importante centro de transportes e um importante centro logístico” no âmbito da iniciativa chinesa. Para o académico, os laços históricos, culturais e económicos de Macau com Portugal “colocam a região numa posição única para servir de ponte entre a China e os países de língua portuguesa na Europa, África e América Latina”.
Na construção da plataforma de cooperação entre a China e os países de língua portuguesa, Edmund Sheng considera que Macau alcançou “resultados de sucesso”, mas o académico evidencia também o papel da RAEM enquanto “porta de entrada da medicina tradicional chinesa para o mundo e, especialmente, para os países ao longo da iniciativa ‘Uma Faixa, Uma Rota’”. O académico destaca o Parque Científico e Industrial de Medicina Tradicional Chinesa para a Cooperação entre Guangdong-Macau, em Hengqin, e a sua função em ajudar empresas do sector “a levar os seus produtos de medicina tradicional chinesa e ‘know-how’ para os países de língua portuguesa”.
Motor de diversificação económica
Além da ligação à lusofonia, Ricardo Siu destaca também a função da RAEM como um porto franco entre a China e o mundo. Acresce ainda o facto de Macau, “apoiada pelo Governo Central, estar a ser desenvolvida como uma das cidades nucleares no seio da Grande Baía”.
É no contexto da Grande Baía que Fernanda Ilhéu identifica o papel da RAEM em relação à iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”. A académica aponta o caminho: “Macau tem que ser ágil, se preparar, desenvolver talentos e oportunidades para criar um espaço próprio onde o território seja único, melhor”. Segundo acrescenta, Macau deve “aproveitar” o desenvolvimento da ilha vizinha de Hengqin “para introduzir outro tipo de actividades”, não só para diversificar e tornar a economia da RAEM mais sustentável, mas para criar “oportunidades de desenvolvimento humano” em novas áreas.
Com vista ao crescimento económico sustentável, Edmund Sheng afirma que “é crucial” para Macau evoluir estruturalmente para uma “economia diversificada”. A participação na iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” pode ajudar o território “a melhorar ainda mais o seu ‘status’ internacional como um local global para conferências e congressos e poderia, até certo ponto, contribuir para uma diversificação adequada da economia”.
Sobre o papel de Macau, Paulo Duarte entende que o lazer, mas também a educação, além da economia da Grande Baía, “seriam efectivamente pontes interessantes” para o território no seio da iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”. No entanto, o académico considera que estas áreas “estão subaproveitadas” e dá uma sugestão: a Universidade de Macau, fazendo uso do seu campus “enorme” em Hengqin, “poderia ser canalizada no âmbito de ‘Uma Faixa, uma Rota’ para construir sinergias e inclusive outros investigadores estrangeiros, e não só da China, poderem ir aí trabalhar”.
Os desafios e o futuro
O Presidente Xi Jinping sublinhou, em 2018, que “a iniciativa ‘Uma Faixa, Uma Rota’ é uma ideia da China, mas as respectivas oportunidades e resultados vão beneficiar o mundo”. Na altura, o dirigente enfatizou que “a China não tem quaisquer motivações geopolíticas” subjacentes à iniciativa, “não impondo compras e vendas” às outras partes.
Edmund Sheng defende que é “importante” para a China, no âmbito da iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”, promover o desenvolvimento de infra-estruturas verdes e sustentáveis. Tal visa “minimizar eventuais impactos ecológicos, reduzir a poluição e melhorar a eficiência energética, de forma a enfrentar os desafios da mudança climática global”.
Edmund Sheng considera que, quanto mais tempo passar, “mais sistematicamente estará a iniciativa ‘Uma Faixa, Uma Rota’ vinculada às prioridades nacionais”. Já no contexto externo, o académico antevê que seja “provável que haja uma competição crescente” com outras estratégias similares ocidentais.
No entanto, o conceito “Uma Faixa, Uma Rota” é uma iniciativa que Fernanda Ilhéu diz ser “progressiva” e que espelha também o “comportamento muito passo a passo e muito pragmático” da China. O que significa que, à medida que vai desenvolvendo os projectos, o Governo Central “vai vendo quais são as áreas por onde pode avançar, aquelas em que não pode avançar e aquelas onde tem mais problemas e como os contornar e resolver”. “Vai criando e procurando soluções.” E remata: “Será sempre uma iniciativa que não está concluída e que vai sendo construída”.