História

Turismo em Macau no século XIX: os primeiros hotéis modernos

Pintura panorâmica de Macau de meados do século XIX
Com mais de 130 estabelecimentos hoteleiros em operação e cerca de 43 mil quartos disponíveis, a Macau de hoje é um dos destinos turísticos mais apetecidos do mundo. Há 200 anos, o panorama era, no entanto, bem diferente: foi nessa altura que começaram a nascer no território os primeiros hotéis ocidentais de estilo moderno, lançando as bases daquela que é agora uma das principais indústrias da região

Texto João F. O. Botas
Jornalista, autor de vários livros sobre a história de Macau e criador do blogue Macau Antigo (macauantigo.blogspot.com)

Até meados do século XIX, Macau era a única porta de entrada na China para os ocidentais. Comerciantes, membros do clero, missionários, diplomatas e aventureiros, todos tinham de passar obrigatoriamente pela cidade para aceder ao império celeste. É neste contexto que nasce o primeiro estabelecimento hoteleiro moderno de tipo ocidental no território, a Macao Tavern, na Praia Grande.

Registos de 1807 relativos ao navio norte-americano “Arthur” referem o inglês John Budwell como proprietário do espaço. Para além de servir bebidas e refeições – almoço ou jantar custava uma pataca e meia –, o estabelecimento tinha quartos (uma pataca por noite) e ajudava a tratar das formalidades legais a que os comerciantes estrangeiros estavam obrigados para deslocar-se a Cantão, onde só podiam permanecer alguns meses por ano.

Na década de 1820, os donos da Macao Tavern eram Richard Markwick e Edward Lane, dois antigos empregados da Companhia Britânica das Índias Orientais. Estabelecem-se por conta própria, fundando a Markwick & Lane. A empresa cria hospedarias em Macau e Cantão e assegura o transporte marítimo de pessoas, carga e correio entre as duas cidades. 

Localização privilegiada

A Macao Tavern ficava “junto à extremidade leste da praia, duas portas à direita da Alfândega, onde as embarcações chinesas geralmente atracam”, segundo a imprensa da época. Numa ilustração da primeira metade do século XIX – da autoria do arquitecto e artista inglês Thomas Allom, a partir de um desenho feito in loco por Warner Varnham, do qual muito pouco se sabe em termos biográficos –, pode ver-se a localização do estabelecimento, correspondendo sensivelmente ao local onde actualmente começa a Rua do Campo.

O médico britânico Charles Downing visitou a China entre 1836 e 1837 e ao passar por Macau refere que “o único hotel inglês no local é grande e mantido por um homem chamado Marquick”. Na “Planta Topographica da Cidade de Macao” de 1838, é referida uma “hospedaria inglesa” junto ao “hopu” – a alfândega chinesa – da Praia Grande. Em 1840, na publicação “Description of a view of Macao in China”, de Robert Burford, que detalha uma imagem panorâmica da cidade desenhada pelo artista inglês, estão identificadas duas tabernas, a “Sandford and Mark’s Tavern” e a “Edward’s Tavern”, em edifícios contíguos junto à alfândega. Sandford terá sido um dos vários sócios de Markwick.

Durante o século XIX, é na Praia Grande que se situam os estabelecimentos hoteleiros de estilo ocidental

Após a Primeira Guerra do Ópio, que decorreu entre 1839 e 1842, cinco cidades portuárias chinesas foram abertas a negociar com o estrangeiro – Cantão, Xiamen (então conhecida por Amoy), Fuzhou (Foochow), Ningbo (Ningpo) e Xangai – e surge a colónia britânica de Hong Kong. Macau perde o exclusivo do comércio, mas continuará a ser porto de escala para aceder a essas cidades.

O médico britânico Archibald R. Ridgway visita Macau em 1843 e fica hospedado num hotel “situado no extremo norte” da Praia Grande. “Atravessa-se a porta para uma ampla sala, meio loja, meio armazém, que, quanto à variedade do recheio, tem uma semelhança considerável com uma loja de uma grande aldeia inglesa: vinhos, picles, chapéus, carnes em conserva, botas, presuntos e outras guloseimas (…)”.

Do Albion ao Royal Hotel

Um comandante britânico de apelido Reynard, num artigo de 1853 na “The Nautical Magazine and Naval Chronicle”, refere que uma “banda militar tocou durante alguns minutos no desfile matinal em frente às janelas do hotel onde [ele] estava hospedado, o Albion, na Praia Grande”. Albion é o nome arcaico pelo qual se denominava a Inglaterra.

Anúncios publicados pelo fotógrafo itinerante sueco Cesar Von Düben a 26 e 27 de Abril de 1853 no jornal “The Friend of China and Hong Kong Gazette” referem a existência de um outro estabelecimento, o Macao Hotel. Diz Von Düben “que se acha estabelecido nesta cidade, na taberna chamada Macao Hotel, n.º 65, Praia Grande (…) e que terá muita satisfação em tirar retratos das pessoas que o quiserem honrar com a sua presença”.

Na década de 1860, também na Praia Grande, surge o Royal Hotel, com 14 quartos e uma varanda. O Royal começa por pertencer à empresa Bradstreet & Co. Em 1864, o dono é o inglês F. G. Reed, segundo um anúncio publicado num jornal de Hong Kong a 22 de Abril desse ano: “Este hotel familiar de primeira classe, situado na Praia Grande e contendo os quartos mais arejados e espaçosos, é recomendado com confiança para a acomodação de inválidos e pessoas que desejem um refúgio fresco e saudável no Verão”.

O Royal foi também o hotel onde ficaram hospedados os elementos do Corpo de Voluntários de Hong Kong de visita ao território no final de 1864. Segundo o “The London and China Telegraph”, “depois de desembarcarem, marcharam para a zona da Praia Grande onde, sob um sol tórrido, diante do palácio, saudaram o Governador” e depois “seguiram para o Royal Hotel”. Aí, “o Sr. Reed preparou todo o conforto possível e acolheu todos com cordialidade”.

Na década de 1860, surge em Macau o Royal Hotel (em primeiro plano, ao centro)

No Boletim do Governo de Macau e Timor de 18 de Fevereiro de 1867, referem-se hóspedes eminentes: os franceses Pierre Philippe Jean Marie d’Orléans, duque de Penthievre, acompanhado de Ludovic de Beauvoir, conde de Beauvoir, então dois jovens em viagem à volta do mundo. “Logo que S. Exa. o Governador soube da chegada de Sua Alteza (…), mandou ao Royal Hotel, aonde os ilustres viajantes eram alojados, cumprimentá-los e convidá-los para habitarem o Palácio do Governo a que Sua Alteza anuiu”, pode ler-se.

Entre 1868 e 1872, no âmbito de uma residência de quatro anos em Hong Kong, o fotógrafo escocês John Thomson visita Macau por várias vezes, fazendo diversos registos fotográficos da cidade. No livro “Illustrations of China and its People”, Thomson refere que “do bom hotel e da sua varanda pode-se apreciar a vista da baía”. 

Em Junho de 1872, um anúncio dirigido aos “ilustres cavalheiros desta cidade” informava que seriam servidos no Royal Hotel sorvetes às terças, quintas e domingos, depois das sete horas da tarde, com preços entre 20 e 50 avos.

Oriental Hotel: na Praia Grande e Porto Interior

O escocês John Patrick Martin terá sido o primeiro proprietário do Oriental Hotel, perto do cruzamento da Praia Grande com a actual Rua do Campo, junto ao Jardim de S. Francisco, já após a Primeira Guerra do Ópio. O segundo dono teria sido o britânico Frederick Duddell, segundo um anúncio em inglês publicado a 15 de Novembro de 1855 no “The China Mail”: “Hotel Oriental, Macau. O Sr. F. Duddel implora para informar o público que acaba de abrir o hotel acima referido”. A estadia de uma noite custava três dólares.

Duddel viria a morrer a 1 de Novembro de 1856. O hotel passa para as mãos de D. B. Vines, oriundo dos Estados Unidos, onde, a 3 de Abril de 1867, publica no jornal “Daily Alta California” o seguinte anúncio em inglês: “Hotel Oriental. Macau, China. Esta vetusta colónia portuguesa a três horas de Hong Kong em vapores americanos de primeira classe, é a estância de veraneio dos europeus residentes no sul da China; o proprietário deseja apresentar o estabelecimento acima ao público e aos viajantes da Califórnia, onde podem usufruir de instalações aumentadas, para visitar o Império Celeste, e espera ter o prazer de entreter muitos dos seus velhos amigos. D. B. Vines, Proprietário (antigo residente em S. Francisco)”.

Ao longo da década de 1860 existem referências a outro Oriental Hotel, mas localizado na Praça de Ponte e Horta, no Porto Interior. Viria a fechar depois de um incêndio em 1869.

Em Janeiro de 1877, é inaugurado o Macao Hotel. Propriedade de Joaquim Pereira Campos, situa-se na então Rua da Praia Grande, perto do Palácio do Barão do Cercal (actual Sede do Governo). Na primeira página do “The China Mail”, um anúncio em inglês informa: “Hotel Macau, Praia Grande, Macau. No dia 20 será inaugurado um hotel de primeira classe, sob o nome acima mencionado, em instalações espaçosas, acolhedoras e bem mobiladas na Praia Grande. Toda a atenção será dada ao conforto dos visitantes. Apenas fornecemos vinhos, bebidas espirituosas e comida da melhor qualidade. Preços moderados. J. P. de Campos, Proprietário. Macau, 8 de Janeiro 1877”.

Em Maio de 1879, no âmbito de uma viagem à volta do mundo, Ulysses S. Grant, que havia sido Presidente dos Estados Unidos entre 1869 e 1877, visita Macau. É saudado por cerca de 3000 pessoas e dorme uma noite no Macao Hotel, “onde de uma grande janela em arco olhando para leste [se tem] uma bela vista do mar”.

Hing Kee Hotel, primeira morada de Pessanha

Um anúncio em inglês serve de carta de apresentação do Hing Kee Hotel: “Fundado em 1878 – Macau – Este famoso estabelecimento de primeira classe está agradavelmente situado no centro da Praia Grande, virado a sul, com uma encantadora vista para o mar à sua frente. Quartos confortáveis e bem mobilados. Cozinha excelente. Atendimento imediato. Preços muito moderados”.

Pedro Leong Hing Kee, também conhecido por Peter, cidadão chinês nascido no sudeste asiático, chegara a Hong Kong poucos anos antes e depressa se tornou num dos mais bem-sucedidos homens de negócios locais, com interesses na hotelaria, imobiliário e transportes marítimos. Desde 1875 tinha em Macau um “billiard room” (salão de bilhar) e sob o seu nome passa também a ter um hotel, junto aos Correios e ao Palácio das Repartições (na zona onde está actualmente o Hotel Metrópole).

Numa edição de 1882 do boletim da Société Royale Belge de Géographie, refere-se o Hing Kee como um “excelente hotel dirigido pelo chinês Hing-Kee, um bom homem, falando inglês e português fluentemente”. Em Setembro de 1883, o militar e engenheiro civil português Adolpho Loureiro está em Macau para efectuar estudos para as obras do porto do território e fica no hotel de “Pedro Hing Kee, um china muito rechonchudo e prazenteiro”.

O Hing Kee Hotel (na imagem) foi a primeira morada em Macau do poeta português Camilo Pessanha

Registos da época dizem que, em 1885, o Hing Kee acolhe “o Sr. Ignacio Cabrall da Costa Pessoa, ajudante de campo de S. Exa. o Governador”, e “o Sr. Horta e Costa, capitão de engenharia e director das obras públicas d’esta província”, e que seria mais tarde também ele governador de Macau. Nesse ano, o norte-americano George Moerlein, a viajar pelo mundo, fica no “Hingkee Hotel, de frente para o mar”, onde o “proprietário serviu uma refeição elegante e [lhes] providenciou belas camas pelas quais [lhes] cobrou um bom preço à taxa de quatro dólares cada por dia”. A primeira morada do poeta português Camilo Pessanha em Macau, em 1894, será o Hing Kee, pagando 40 patacas por mês, pelo quarto e refeições, excluindo o vinho.

A jornalista e autora norte-americana Margherita Arlina Hamm passa por Macau como turista em 1895. Segundo ela, o hotel ficava ligeiramente afastado da linha costeira já que, “entre o edifício e o muro que o cerca, há um grande jardim onde figueiras-de-bengala e bananeiras, limoeiros e laranjeiras, goiabeiras e oliveiras transformam a luz do sol forte em sombra refrescante”. As pinturas e as fotografias da época confirmam a descrição.

No jardim exterior, continua Margherita Arlina Hamm, “junto a uma das paredes do hotel, há uma grande caixa da qual emanam rugidos”. “Quando nos afastamos, um criado chinês bem vestido abre a caixa e solta dois filhotes de tigre.” No interior do estabelecimento hoteleiro, há um “belo bar, com uma bela exibição de decantadores e garrafas de cristal lapidado; a sala de bilhar e a sala de jogos parecem ter vindo directamente de Londres; as salas de jantar e de estar e os dormitórios são semelhantes aos que existem nos resorts da costa de Nova Jersey”.

Em 1897, surge um novo Hing Kee, segundo um anúncio em inglês publicado no “The Tourist’s Guide to Hong Kong” desse ano: “Hing Kee Hotel, Macau – Um edifício totalmente novo – 30 quartos – Situado numa posição central na Praia Grande – A cinco minutos do cais dos vapores – Um hotel familiar confortável – Tudo do melhor – Preços muito moderados”. Este edifício pode ver-se em vários postais ilustrados da altura, onde é possível ler o nome Hing Kee no topo da fachada.

E nasce o Boa Vista

Quase a terminar o século XIX, é inaugurado o Hotel Boa Vista, que mudaria de nome para Bela Vista em 1936 e cujo edifício serve actualmente de residência oficial do Cônsul-Geral de Portugal em Macau. Na edição de 1 de Julho de 1890, o jornal local “O Correio Macaense” informa que é “um edifício construído expressamente para hotel em uma situação linda”. Mas não terá sido bem assim, já que o edifício remontava a 1870 e fora construído para residência da família Remédios. O que teve foi obras de adaptação para hotel depois de ser comprado pelo inglês William Edward Clarke, capitão de um dos navios que faziam a ligação entre Macau e Hong Kong. Apesar da compra, a família Remédios manteve-se a residir no edifício, assegurando a gestão do hotel, já que o novo proprietário continuou a trabalhar para a empresa Hong Kong, Canton and Macao Steamboat Co., como comandante do vapor “Heungshan”.

O jornal “Hong Kong Daily Press” de 4 de Julho de 1890 refere ser “uma importante contribuição para as instalações hoteleiras de Macau (…) o belo e novo edifício com 20 quartos, situado na Baía do Bispo”. Um anúncio no livro “A Handbook for Travellers in Japan”, publicado em 1891, garante tratar-se de “um lar confortável para famílias e senhores que desejem desfrutar do sossego benéfico e de uma mudança de ares no Verão ou no Inverno”.

O Hotel Boa Vista mudaria de nome para Bela Vista em 1936

Duches de água quente e fria, mesa de bilhar, sala de leitura, uma ampla sala de refeições e uma praia logo em baixo são os grandes trunfos do Boa Vista, cujos proprietários fazem uma aposta forte na publicidade (em inglês e em português), facto pouco habitual na época. O fragmento seguinte é de um anúncio de 1890: “Este hotel está situado à beira-mar numa das melhores e mais saudáveis zonas de Macau e oferece uma vista admirável virada a sul. O seu alojamento é inigualável no Extremo Oriente. Todo o conforto é proporcionado aos visitantes com uma excelente cozinha e vinhos, bebidas espirituosas e licores de malte das melhores marcas”.

Entre os hóspedes ilustres que se alojam no Hotel Boa Vista nos primeiros anos contam-se o então Governador de Hong Kong, Sir William Robinson (em 1892), e o almirante e diplomata brasileiro José da Costa Azevedo, Barão de Ladário (1894).

No final do século XIX, existiu ainda o Hotel Nacional, localizado no n.º 34 da Rua Central e propriedade do português António Jorge, mas este nome não surge referido no “Mappa dos Estabelecimentos Industriaes e Fabris, portuguezes e estrangeiros”, publicado no Boletim Oficial a 12 de Fevereiro de 1897. O documento menciona 16 “hospedarias” chinesas (não se referem nomes) e duas “hospedarias” de tipo ocidental: o Hing Kee Hotel e o Hotel Boa Vista. 

NOTA: Este artigo é uma versão resumida e adaptada de uma investigação mais ampla sobre o turismo em Macau no século XIX, que aguarda publicação.