Pioneiro e impulsionador da ‘Macaulogia’, campo abrangente do saber que incide sobre Macau e as suas circunstâncias, Wu Zhiliang fez do território a sua casa adoptiva há quase 40 anos, mas a voz das pedras de Macau – as narrativas que contam e os episódios que escondem – continua a reverberar com o mesmo fascínio e a mesma sedução. Numa cidade resiliente, mas em constante transmutação, há um manancial quase infinito de histórias, contadas e por contar, argumenta o historiador
Texto Marco Carvalho
Fotografia Cheong Kam Ka
Na Macau de Wu Zhiliang cabem templos e fortalezas seculares, mas também torres hodiernas que se erguem sem vertigem rumo ao firmamento. Cabem as sendas da memória e os trilhos do progresso, mas é na provecta majestade de monumentos como o Templo de A-Má e as Ruínas de São Paulo ou de espaços como a Casa do Mandarim ou o Jardim de Lou Lim Ieoc que o historiador e presidente do Conselho de Administração da Fundação Macau se sente mais em consonância com a essência plural e multifacetada do território.
Para Wu Zhiliang, o essencial é invisível aos olhos. Não que as pedras que adornam os templos e as igrejas, as fortalezas e os cemitérios não tenham histórias para contar. Têm e não são poucas. Mas as narrativas que contam estão, em grande medida, eternizadas: um friso, um altar, uma lápide tumular são janelas inequívocas para o passado, mas, por vezes, o que mostram, oculta o que têm para dizer.
O que interessa ao historiador, mais do que a lacónica eloquência do granito, são as histórias – contadas e por contar – que Macau preserva e que importa descobrir, redescobrir e interpretar.
“No meu entender, para melhor compreender a história de Macau, temos que conhecer ou, pelo menos, ter uma ideia geral de todos os patrimónios do território, porque é no seu conjunto que se reflectem as múltiplas facetas da nossa história e cultura”, argumenta. “Como muita gente diz, não há segredos em Macau, mas muitas histórias, contadas e por contar. O problema é pesquisar sistemática e profundamente as fontes e arquivos e contar bem a história, tanto dos monumentos e edifícios, como dos acontecimentos históricos”, acrescenta o estudioso.
Ao património tangível e aos impulsos que estilhaçaram a monotonia dos dias, acrescem todos aqueles que mudaram o mundo, ou pelo peso da espada ou pela força da pena. Como Zheng Guanying: “A Casa do Mandarim é, para mim, um local muito especial, por causa do seu dono, que escreveu ‘Palavras Amargas de uma Época Próspera’, a obra que influenciou profundamente Mao Zedong na formação dos seus pensamentos revolucionários”, reconhece Wu Zhiliang.
Nascido em 1964 em Lianping, localidade da província de Guangdong no Interior da China, Wu Zhiliang licenciou-se em português na Universidade de Estudos Estrangeiros de Pequim, numa altura em que o regresso de Macau à administração chinesa, não sendo propriamente uma miragem, se prefigurava ainda uma incerteza.
O actual responsável pela Fundação Macau, organismo a que preside desde 2010, fixou-se no território em 1985, com 21 anos acabados de fazer, e logo se deixou fascinar pela natureza polissémica e multicultural da cidade, os pagodes e as Igrejas em perfeita comunhão. Quase quarenta anos depois, o deslumbramento em que se viu enredado mantém-se vivo, com dois dos maiores ex-líbris da cidade a pontificarem no topo das preferências: “O templo de A-Má, ligado à origem do nome de Macau, e as Ruínas de São Paulo, com as suas facetas multiculturais”, aponta o académico.
A voz das pedras, qual canto de sereia, lançou o seu feitiço e, após uma breve passagem por Lisboa, onde aprofundou o domínio do idioma de Camões e de Pessanha, Wu Zhiliang fixou-se em definitivo numa cidade que aprendeu a amar e da qual se tornou um dos mais completos intérpretes, antes ainda do grande entusiasmo que sempre nutriu pela história o ter conduzido à obtenção de um Doutoramento pela Universidade de Nanjing.
“Muitos monumentos, edifícios e locais têm o seu significado na história de Macau. Qualquer desses locais é recordado por mim com particular afeição. E, no seu conjunto, tiveram uma influência muito pessoal, sobretudo na formação do meu amor e paixão pela cidade e pela sua história”, confidencia.
Um oásis no âmago da cidade, um mergulho essencial nos valores mais nobres da cultura chinesa ou uma oportunidade para refazer os passos de uma das mais fascinantes figuras da história da China. “O Jardim de Lou Lim Ieoc recebeu o primeiro presidente da República, Dr. Sun Yat-sen, que partiu de Macau para estudar nos Estados Unidos e regressou ao território para exercer a sua profissão no Hospital Kiang-wu”, recorda Wu Zhiliang.
Para o historiador, o idílico jardim mandado construir por Lou Cheok Chin é, hoje, mais do que nunca, um refúgio no coração da selva de betão, mas também uma bolsa de resiliência numa cidade em constante e incerta transformação. O presidente da Fundação Macau admite que a nova Macau – a dos aterros, do arco-íris de néones do Cotai e das torres habitacionais que se propulsionam ao céu – conquistou aos poucos um lugar na sua geografia sentimental, mas confessa que a primeira e mais imediata reacção à forma voraz como o território cresceu ao longo das últimas décadas foi de contida apreensão.
“À primeira vista, preocupava-me o impacto sobre a Macau antiga, as suas tradições e costumes seculares. E, de facto, as influências são evidentes, no seu sentido negativo”, alerta. “Ainda bem que a Macau antiga é bastante resistente e o essencial dos nossos valores fica conservado. Por isso mesmo, temos de estudar e promover com mais esforço a nossa história e a nossa cultura, para que se possa adaptar às novas correntes e conjunturas, tanto internas, como externas”, argumenta Wu Zhiliang.
E porque o mundo é feito de mudança e, para além dos tempos, também se mudam as cidades, o fado da reinvenção constante que sempre caracterizou o território não assusta, nem demove Wu Zhiliang. Em Macau, nem o futuro ameaça o passado, nem o passado boicota o futuro, como bem atesta a por vezes dissonante convivência entre torres modernistas e palácios e fortalezas de antanho.
Para se entender plenamente a cidade e as suas circunstâncias, convivência é, de resto, um conceito-chave para uma abordagem que se quer o mais ampla, mais completa e o mais abrangente possível. Uma abordagem, de resto, da qual Wu Zhiliang foi pioneiro e um dos impulsionadores.
“Para mim, a Macaulogia é a congregação de todos os conhecimentos sobre Macau, produzidos e transmitidos em Macau. O objectivo de promover a Macaulogia é recolher, organizar, tratar e estudar todos os conhecimentos locais e, ao mesmo tempo, construir uma estrutura e um sistema que possa explicar, de forma científica, o nosso saber, para compreendermos melhor a história e a cultura de Macau e fomentarmos o amor pela cidade em que vivemos”, ilustra o académico.
A exemplo da cidade a que se reporta, a Macaulogia é um campo em expansão, em reinvenção, em transformação constante. Tal realidade, porém, não assusta, nem demove o historiador, mesmo que por vezes o entendimento exija clareza e silêncio. Mas, mesmo nesses momentos, é na exígua grandeza de Macau que está a resposta: “Coloane, à beira do mar, à procura de tranquilidade espiritual”, responde Wu Zhiliang quando lhe perguntam onde se refugia quando a azáfama do quotidiano se torna um fardo.