A Biblioteca da Universidade de Macau conta com mais de 40.000 obras na sua colecção de livros raros. Os manuscritos incluem edições iniciais de livros ocidentais, livros chineses clássicos e obras com a assinatura do autor, que descrevem momentos históricos do Ocidente e do Oriente
Texto Nelson Moura
Fotografia Oswald Vas
À primeira vista, não parece haver muito em comum entre os “Elementos de Euclides” – um tratado matemático e geométrico escrito pelo matemático grego Euclides – e um manual de história publicado durante a dinastia Ming como livro de ensino para jovens imperadores. Mas há alguns detalhes que ligam estes dois manuscritos: foram os dois publicados nos finais do século XV e os dois fazem parte da colecção de livros raros da Biblioteca da Universidade de Macau (UM).
Segundo o vice-reitor da UM Rui Martins, são duas das peças mais valiosas da colecção de livros raros e documentos históricos da biblioteca da instituição, uma colecção que conta com mais de 40.000 livros – em chinês, português e outras línguas – com um valor total estimado em vários milhões de dólares americanos.
Numa visita guiada à colecção de livros raros, Rui Martins apresenta os muitos volumes armazenados e arquivados no acervo da instituição. Cerca de três funcionários trabalham a tempo inteiro no espaço aclimatizado, assegurando que as obras são devidamente preservadas.
As edições mais valiosas e antigas são mantidas em caixas-fortes especiais, tendo o espaço também salas de reparação de manuscritos.
“A Biblioteca da UM tem centenas de milhares de livros e tem mantido sempre uma boa colecção de livros raros, em inglês, chinês e português”, conta Rui Martins em entrevista à Revista Macau.
Preservar a história
Entre as aquisições mais recentes da biblioteca destaca-se um manuscrito que documenta a primeira embaixada enviada pelo Rei D. João V de Portugal ao Imperador Yongzheng da China, no século XVIII, visto como um importante testemunho para entender o contexto político, económico e social chinês da altura.
Foi uma oportunidade única que a UM não deixou passar, adquirindo, em 2022, uma obra que, segundo a instituição, certifica a “muito antiga relação entre Portugal e a China”. O manuscrito foi adquirido através da Fundação para o Desenvolvimento da Universidade de Macau.
O “Relatório Oficial da Embaixada de D. João V de Portugal ao Imperador Yongzheng da China em 1725-1728” retrata a visita a Beijing, via Macau, do embaixador Alexandre Metelo de Sousa e Menezes, em representação do rei D. João V de Portugal, ao Imperador Yongzheng da China, no século XVIII.

“É um livro que narra a primeira embaixada no tempo do rei D. João V, que levou vários presentes e uma carta ao Imperador Yongzheng”, explica Rui Martins. “Só existem dois manuscritos: um na Biblioteca da Ajuda, em Portugal, e este, pois no passado as cópias dos livros eram feitas à mão e sobre um determinado assunto faziam-se dois ou três manuscritos”, acrescenta.
Em resposta ao interesse suscitado pela aquisição, a biblioteca decidiu imprimir uma edição do manuscrito, que inclui uma reprodução fac-similada fidedigna do manuscrito original português, uma transcrição portuguesa e uma tradução chinesa realizada pelo professor e tradutor Jin Guoping. A transcrição e respectiva tradução em chinês foram publicadas em livro em Dezembro de 2023, com o título “Relação Oficial da Embaixada do Rei D. João V de Portugal ao Imperador Yongzheng em 1725-1728”.
“Esta obra é significativa, pois representa a primeira embaixada oficial de um rei de Portugal à China”, destaca o vice-reitor da UM. “Naquela época, a China mantinha relações diplomáticas apenas com Portugal e a Tartária, a actual Rússia.”
No total houve cinco viagens de embaixadas de reis de Portugal à China, com esta primeira viagem histórica a possuir uma ligação a Macau, onde a comitiva esteve alojada durante a viagem. “Há uma pequena rua, a Calçada do Embaixador, perto das Ruínas de São Paulo, que recorda essa passagem”, explica Rui Martins. “Portanto, nesse aspecto, é importante, não só porque é a primeira embaixada do Reino de Portugal à China, mas também uma embaixada que passou por Macau, e é descrito aqui. A aquisição deste manuscrito foi muito importante e deve ser um dos documentos mais antigos que existe em Macau de momento.”
Paralelo das civilizações
A instituição tem envidado esforços para adquirir e preservar documentos que relatam a história das relações diplomáticas e culturais entre a China e Portugal.
Recentemente, a Biblioteca da UM adquiriu uma edição antiga da obra de Luís de Camões, como parte das celebrações dos 500 anos do nascimento do famoso poeta e dramaturgo português.

Trata-se de uma edição rara e anotada, publicada em Portugal, em 1613, e que contém aquela que é considerada a primeira biografia de Luís de Camões, da autoria de Pedro de Mariz, quase contemporâneo do poeta. Este manuscrito é considerado um valioso recurso de investigação sobre o dramaturgo português, representando também uma mais-valia para o intercâmbio académico e cultural entre a UM, outras instituições de ensino superior e as comunidades chinesa e portuguesa.
O período da vida de Camões compreendido entre 1553, ano do embarque para a Índia, e 1569, data do regresso a Lisboa, só muito imperfeitamente tem sido descrito pelos biógrafos, mas acredita-se que o poeta passou pela China e até por Macau. N’Os Lusíadas, Camões elogiou a vastidão e a riqueza do império chinês, ficando maravilhado com a Grande Muralha da China – ou “muro”, como se referiu n’Os Lusíadas –, algo que considerou “inacreditável”.
Mas a extensão do acervo da UM vai além das relações entre a China e Portugal e fazem também parte da colecção de livros raros obras que reflectem o desenvolvimento paralelo das civilizações ocidental e oriental.
Um desses exemplos é “O Incunábulo de 1491 dos Elementos de Euclides”, uma das peças mais preciosas da colecção da UM e o único incunábulo dos Elementos existente na China, segundo a instituição. Trata-se de um tratado matemático e geométrico escrito pelo matemático grego Euclides em Alexandria por volta de 300 a.C.
O original, impresso em 1491, está em exibição na Sala de Manuscritos na Biblioteca da UM.
“A engenharia e a matemática são também áreas importantes da UM e, também com o apoio da Fundação para o Desenvolvimento da UM, pensámos em adquirir um desses livros”, explica o vice-reitor.
A edição dos Elementos de Euclides foi adquirida pela Biblioteca da UM a uma livraria dinamarquesa. A autenticidade da obra foi certificada por um especialista americano em incunábulos.
Trata-se de uma versão revista baseada em traduções latinas anteriores e em novas traduções de várias fontes árabes. É uma reedição impressa pelo editor Leonardus de Basilea e Gulielmus de Papia em Vicenza, Itália, em 1491. Distingue-se pela mudança do tipo de letra, gótico para romano, bem como pela substituição dos motivos decorativos árabes por figuras de Cupido, plantas e animais.
Jeremy Norman, especialista em livros raros, certificou a importância desta aquisição, observando que apenas 84 bibliotecas no mundo possuem esta edição de 1491.
“Numa carta que nos escreveu, [Norman] diz que tem mais de 60 anos a lidar com este tipo de livros e que leu várias versões da primeira edição de 1482, mas que da segunda edição de 1491 há muito poucas e são muito raras”, conta Rui Martins.
“Este manuscrito chegou há cerca de dois ou três meses aqui à universidade e estamos a digitalizá-lo para depois ser acessível online. Há cerca de menos de 20 incunábulos na China e [até agora não havia] nenhum Elementos de Euclides”, acrescenta.
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Durante a conversa, o bibliotecário da UM, Wu Jianzhong, apresenta o que considera ser o seu livro chinês favorito na colecção de obras raras: um manual de história usado para ensinar imperadores na sua juventude.
O livro, escrito durante a dinastia Song, descreve a história da China desde cerca de 400 a.C. até ao ano 959, tratando-se de um manual de anotações e interpretações sobre o “Espelho Abrangente para Auxílio no Governo”, uma obra pioneira na historiografia chinesa compilada pelo famoso historiador chinês Sima Guang. A edição na posse da UM foi publicada no século XVI, durante a dinastia Ming.
“Esta edição está em bom estado e é interessante porque esteve na posse dos descendentes do 13.º filho de Kangxi da dinastia Qing. Pertenceu também ao empresário Ho Yin, que a doou à Universidade de Macau”, conta Wu Jianzhong.

Além da aquisição de obras, uma grande parte da colecção de livros raros da UM foi doada à instituição por personalidades de Macau.
Entre os tesouros literários da instituição encontram-se também três livros raros da dinastia Ming que foram seleccionados para o Directório Nacional de Obras Antigas Raras da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau, também doados pelo conhecido empresário de Macau Ho Yin. Estes livros estão cuidadosamente preservados e são de grande importância para o estudo da documentação histórica. Em 2010, as obras já tinham sido incluídas no Segundo Directório Nacional de Livros Antigos Raros por decisão do Conselho de Estado e pelo Ministério da Cultura e Turismo. Para garantir a acessibilidade, a biblioteca digitalizou estes volumes antigos, juntamente com dezenas de outros livros chineses e ocidentais, promovendo-os para fins de investigação e educação pública.
“Estamos a preparar um livro que deverá sair durante 2025, que contém precisamente a informação de todos os livros raros ou mais importantes que possuímos”, conta Rui Martins.