Pataca digital

Transacções à distância de um clique

A primeira fase da pataca digital deverá estar concluída em 2025
Macau prepara-se para começar a testar o uso da pataca digital, no seguimento de iniciativas semelhantes no Interior da China e em Hong Kong. Além de revolucionar o sistema financeiro local e promover a integração regional, a medida traz uma série de benefícios em termos de inclusão, segurança e eficiência

Texto Nelson Moura

O lançamento do protótipo da nova pataca digital, ou e-MOP, foi anunciado pelas autoridades locais a 12 de Dezembro de 2024, marcando os primeiros passos de uma moeda digital centralizada na Região Administrativa Especial de Macau (RAEM).

No evento, o anterior Secretário para a Economia e Finanças, Lei Wai Nong, afirmou que o protótipo da pataca digital irá incentivar a transformação e modernização digitais, permitindo aos residentes de Macau e organizações públicas e privadas transacções financeiras mais convenientes e seguras.

Lei Wai Nong referiu que a nova moeda digital “irá melhorar a eficiência dos pagamentos”, “promover a inclusão financeira” e “estimular a transformação digital” em Macau. O desenvolvimento da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau, destacou, também “abre espaços amplos para a inovação financeira”, com a expectativa de “interligação e interconexão entre as suas moedas digitais”, particularmente a ligação entre a e-MOP, e-CNY e e-HKD, “pois trará maior comodidade e oportunidade aos pagamentos transfronteiriços”.

“Esperamos que, num futuro próximo, a e-MOP possa entrar na vida dos residentes de Macau e tornar-se numa importante ponte da RAEM para a cooperação financeira e económica com outros países e regiões, sobretudo com os países de língua portuguesa”, adiantou o responsável.

A Autoridade Monetária de Macau (AMCM), por seu lado, apontou que iria empenhar-se em apresentar aos países lusófonos os padrões técnicos da China no domínio das moedas digitais através do exemplo da e-MOP e, deste modo, apoiar a investigação e o seu desenvolvimento nos países de língua portuguesa.

Presente no evento em Dezembro, o Governador do Banco Nacional de Angola, Manuel Tiago Dias, afirmou, em declarações aos jornalistas, que Angola está numa fase inicial do desenvolvimento da moeda digital, procurando inspirar-se na experiência de Macau para lançar a sua própria moeda digital.

Na cerimónia de 12 de Dezembro, foi também lançado o “Livro Branco sobre a e-MOP da Região Administrativa Especial de Macau”, o primeiro documento explicativo sobre o processo de desenvolvimento da moeda digital da RAEM. O documento cita a definição de Moeda Digital de Banco Central (CBDC, na sigla em inglês) como uma forma digital do dinheiro fiduciário de um país, regulamentada pelo banco central ou autoridade monetária.

Segundo a AMCM, o Governo da RAEM, com o pleno apoio do Banco Popular da China, iniciou a investigação e o desenvolvimento da pataca digital, que irá constituir “uma nova forma de moeda com curso legal, em formato electrónico”.

Tal esforço deriva da necessidade de “acompanhar as tendências internacionais e a evolução dos tempos, assegurando, em simultâneo, a confiança contínua da generalidade do público na moeda com curso legal da RAEM nesta era digital, bem como salvaguardando o estatuto intrínseco da moeda da RAEM no ecossistema de pagamentos”, adianta a autoridade monetária.

A cerimónia de celebração da construção do Sistema de Protótipo da Pataca Digital de Macau decorreu a 12 de Dezembro de 2024

De acordo com a AMCM, com a evolução das tecnologias, como Big Data e inteligência artificial, “as formas monetárias e os modelos de circulação” tendem a tornar-se “cada vez mais ligados em rede”, verificando-se “a popularização dos pagamentos electrónicos”. Por outro lado, nota a AMCM, o surgimento de “criptomoedas” levou ao “lançamento de uma nova moeda legal digital por parte dos bancos centrais em todo o mundo”. “Esta evolução inovadora levou o Governo da RAEM a rever e a realizar pesquisas, a olhar para o futuro e a explorar o tipo de moeda e métodos de pagamento que permitam satisfazer as necessidades verificadas no desenvolvimento económico, cada vez mais electrónico e digital”, explica a entidade reguladora.

A introdução da CBDC “não só́ ajudará a aumentar a frequência da utilização de moeda sem risco, emitida pelo Governo da RAEM para pagamentos diários”, como também contribuirá “para o desenvolvimento da economia digital e das finanças modernas”, frisa a AMCM.

O regulador financeiro, no entanto, alertou também que a implementação da moeda digital apresenta riscos e desafios para a estabilidade financeira de Macau, exigindo do Governo um planeamento prudente e uma execução prática à medida que o projecto evolui.

“A AMCM tem adoptado uma atitude rigorosa na sua avaliação científica e na tomada de decisões prudentes a todos os níveis da concepção do sistema da e-MOP, de modo a prevenir eficazmente tipos de riscos que possam surgir, eventualmente, no decurso do funcionamento da e-MOP, bem como a assegurar a segurança e a estabilidade do sistema monetário da RAEM”, lê-se no Livro Branco.

A AMCM assegura também que a pataca digital “só será plenamente lançada quando a base jurídica para a e-MOP estiver prestes e os operadores tiverem realizado testes exaustivos em diferentes situações para assegurar o controlo de todos os riscos”.

Implementação gradual

As CBDCs são categorizadas em dois tipos: o primeiro utilizado principalmente por instituições financeiras regulamentadas para transferências interbancárias e liquidações de transacções; o segundo a funcionar como moeda física ou dinheiro em espécie utilizado principalmente para pagamentos por parte dos consumidores.

As autoridades de Macau planeiam primeiro permitir que a pataca digital funcione juntamente com as ferramentas de pagamento existentes em áreas específicas para as pequenas e médias empresas e depois explorar como o uso da e-MOP se poderá estender a pagamentos internacionais.

A e-MOP será integrada nas plataformas de pagamento existentes, facilitando transacções e acelerando o fluxo de fundos, com a AMCM também a explorar a sua articulação com o e-CNY e o e-HKD para melhorar pagamentos transfronteiriços e os fluxos de capitais na Grande Baía, promovendo a construção de um sistema financeiro digitalizado de alta qualidade nesta região.



A curto prazo, o desenvolvimento e a implementação da e-MOP centrar-se-ão nos pagamentos a retalho. No entanto, a médio e longo prazo, quando as infra-estruturas e tecnologias financeiras incorpóreas e corpóreas relevantes “estiverem maduras”, a AMCM desenvolverá e promoverá a sua utilização a nível grossista.

“Sendo uma moeda com curso legal em formato digital, a e-MOP pode proporcionar aos residentes e turistas serviços de pagamentos eficientes, cómodos e de baixo custo”, indica o estudo da ACMC. “Em simultâneo, a e-MOP também pode abranger outras situações de aplicação além dos pagamentos de retalho em Macau, como transportes públicos, parques de estacionamento e até assuntos de governação electrónica, o que ajudará a promover o desenvolvimento da cidade inteligente”, acrescenta o documento.

Ainda de acordo com o regulador, a longo prazo, a e-MOP poderá resultar numa diminuição das taxas de pagamento e “proporcionar aos turistas uma experiência de pagamento eficiente e cómoda”, “consolidando o posicionamento estratégico de Macau como ‘Centro Mundial de Turismo e Lazer’”. O projecto, acrescenta o organismo, também criará oportunidades de emprego e levará à “formação de talentos profissionais locais” em áreas relacionadas com a tecnologia e finanças.

Entretanto, a e-MOP coexistirá com a pataca física, com a sua emissão a ser “coerente com as notas e moedas de patacas existentes”, e será emitida pelo Governo da RAEM.

“Quando a pataca física for convertida em e-MOP, os bancos reduzirão o número da pataca física e aumentarão o número da e-MOP ao mesmo tempo, o que, em princípio, não afectará a quantidade da moeda em circulação geral da RAEM”, aponta a AMCM.

O caminho para a e-MOP

A ideia da pataca digital surgiu no final de 2019, numa altura em que o Banco Popular da China havia já anunciado que a e-CNY começaria a ser testada em várias cidade e províncias do país após anos de preparação.

Os trabalhos preparatórios para a nova moeda digital da RAEM começaram em Setembro de 2022, com a AMCM e o Instituto de Estudos de Moeda Digital do Banco Popular da China a criarem um grupo de trabalho para estudar as condições para implementar este projecto.

Em 2023, o Governo actualizou o seu quadro jurídico que rege a emissão de moedas, concedendo um estatuto legal à moeda digital equiparado a moedas fiduciárias.

Ao contrário das criptomoedas privadas comuns, a e-MOP é uma moeda com curso legal em formato digital e, nos termos da Lei n.º 10/2023, que estabelece o “Regime jurídico da emissão monetária”, dispõe do mesmo estatuto jurídico conferido à pataca física, incluindo notas e moedas, com o mesmo valor monetário. A nova moeda tem também poder liberatório, com risco de crédito zero e foi classificada como um activo de segurança do nível mais elevado.

Em Abril de 2024, a AMCM e a subsidiária integral do Instituto de Estudos de Moeda Digital do Banco Popular da China celebraram o “Contrato para a Construção do Projecto Financeiro da Cidade Inteligente de Macau (Fase I)”, marcando o início do desenvolvimento do sistema da primeira fase da e-MOP.



Segundo o AMCM, a primeira fase – que deverá estar concluída em 2025 – consiste no desenvolvimento das infra-estruturas e do sistema central, de modo a verificar a escalabilidade dos operadores e a interligação e interconexão entre organizações. Tal tarefa inclui a concepção da e-MOP, o planeamento das actividades e o desenvolvimento de estudos e investigação sobre as funcionalidades, bem como a preparação da versão principal e básica da aplicação do sistema das actividades, com base no centro de dados de Macau.

A segunda fase do desenvolvimento da pataca digital envolve testes em ambiente regulatório controlado com o sistema protótipo, para explorar as situações de aplicação da e-MOP e avaliar os diversos tipos de riscos.

Paralelamente, serão concretizados trabalhos em quatro áreas, nomeadamente em termos de legislação complementar, formulação de directivas de supervisão relevantes, introdução de novos operadores e construção de um centro de dados adicional.

A terceira fase reside na realização de um teste público em grande escala, através do qual serão incluídos gradualmente cenários simulados adicionais, possibilitando uma integração ordenada da e-MOP nas situações de aplicação de pagamentos do público.

Rumo à eficiência

Para Robby Kwok, presidente executivo da Associação de Interfluxo de Ativos Digitais de Macau, a apresentação do protótipo da e-MOP representa um avanço significativo no panorama financeiro da RAEM.

Segundo Robby Kwok, a iniciativa oferece vários benefícios potenciais, incluindo para os esforços de diversificação adequada da economia, além de simplificar os processos de pagamento, tornando as transacções mais eficientes e seguras.

“Esta melhoria pode levar a uma maior inclusão financeira ao proporcionar serviços financeiros acessíveis a elementos da população sem banco ou com serviços bancários reduzidos”, diz o responsável em comentários à Revista Macau.

O especialista em serviços financeiros que se diferenciam pelo uso de tecnologia – também conhecidos como “FinTech” – acredita que a introdução de uma moeda digital centralizada poderá ajudar Macau a reduzir a dependência da economia da indústria do entretenimento e lazer. “Ao fomentar o crescimento em sectores como serviços financeiros e digitais, a mudança está alinhada com a estratégia do Governo para uma diversificação adequada da economia”, adianta o dirigente associativo.

Ao mesmo tempo, a e-MOP pode ajudar a construir uma economia mais resiliente e sustentável, bem como simplificar os pagamentos transfronteiriços, particularmente na Grande Baía. “Ao permitir transacções rápidas com moedas digitais como a e-CNY e a e-HKD, podemos reforçar o papel de Macau como um centro financeiro”, acrescenta.

Uma moeda digital centralizada fornece às autoridades melhores ferramentas para monitorizar transacções financeiras, com este aumento da capacidade de supervisão a criar um “ambiente financeiro mais transparente e seguro”, aumentando a “confiança dos investidores e atraindo diversos empreendimentos comerciais”, defende Robby Kwok.

Sem relação a criptomoedas

Oriol Caudevilla, director do Global Impact FinTech Forum, explica ser preciso sublinhar repetidamente que as moedas digitais emitidas por bancos centrais ou autoridades monetárias não devem ser confundidas com criptomoedas, visto que são vinculadas a moedas fiduciárias dos próprios governos.

Ultrapassada a ressalva, o especialista em FinTech destaca que a e-MOP pode oferecer várias vantagens em comparação com moedas fiduciárias tradicionais, ajudando mais pessoas a estarem integradas no sistema financeiro, especialmente as que não possuem contas bancárias, e assim promover a inclusão financeira. Além disso, salienta, a digitalização dos pagamentos pode modernizar o sector financeiro da RAEM, melhorando a tecnologia e incentivando a inovação.

A implementação de uma CBDC pode também facilitar a monitorização de transacções, ajudando a combater actividades ilícitas e, portanto, contribuindo para a prevenção de crimes financeiros. Para Oriol Caudevilla, a pataca digital poderá também reduzir custos no sector financeiro e aumentar a velocidade das transacções.

No entanto, apesar dos benefícios, a adopção da moeda digital em Macau enfrenta desafios. Oriol Caudevilla diz que um primeiro desafio terá que ver com a “adopção massiva” pela população e empresas após o lançamento oficial da e-MOP.

“De facto, podem surgir múltiplas barreiras à adopção [da moeda digital], como a falta de consciência pública e confiança, preocupações com a protecção da privacidade, e, em qualquer caso, para que as moedas centrais ganhem adopção generalizada, os comerciantes e empresas em larga escala precisam de as aceitar como forma de pagamento”, ressalva.

O anterior Chefe do Executivo, Ho Iat Seng, assiste a uma breve apresentação sobre o projecto de protótipo da e-MOP

Daniel Farinha, docente da Faculdade de Letras e Humanidades da Universidade de São José, refere que “a grande maioria do dinheiro em circulação já só existe em formato digital no sistema financeiro”.

O especialista em tecnologias da informação explica que projectos como a e-MOP visam substituir o dinheiro físico que ainda resta e competem com sistemas de pagamento já populares como o “WeChat Pay” e “AliPay”.

“Os projectos já anunciados (e-CNY, e-HKD e e-MOP) prometem introduzir alguns avanços tecnológicos interessantes, tal como permitir pequenos pagamentos offline, o que é importante em casos de emergência quando as redes de telecomunicações não estão disponíveis”, aponta Daniel Farinha.

Estes sistemas, diz o docente, também vão permitir uma maior monitorização do sector económico, “servindo de ferramenta na luta contra a corrupção e outras actividades criminosas”.

No entanto, a privacidade dos utilizadores terá de ser um tópico a ter em consideração, visto que as moedas digitais retiram a “privacidade que ainda existia com a utilização de dinheiro em espécie”, diz Daniel Farinha.

Robby Kwok reconhece que a implementação da pataca digital requer uma consideração cuidadosa destes desafios. “Devemos garantir a privacidade do utilizador, estabelecer medidas robustas de cibersegurança e gerir a transição para as empresas e o público”, afirma o dirigente associativo, avisando que abordar estas questões será crucial para uma adopção alargada e a eficácia da moeda digital da RAEM.

Segundo a AMCM, foram estabelecidos três grandes sistemas de segurança, nomeadamente em termos de tecnologia, operação e gestão, bem como dois grandes suportes, designadamente, a nível de recursos e capacidades, os quais permitem garantir a segurança das transacções e da operação da e-MOP.

Estes sistemas incluem o uso de certificados electrónicos, assinaturas electrónicas e armazenamento encriptado, criando assim as “características próprias da moeda, consubstanciadas em pagamento não repetível, impossibilidade de duplicação e falsificação ilegais e não adulteração e antifiabilidade das transacções, para garantir a segurança total do ciclo de vida da e-MOP”.

No domínio da segurança da informação, tanto a AMCM como os operadores serão obrigados a estabelecer sistemas de protecção de dados pessoais e mecanismos de controlo interno e de gestão, segundo as disposições legais aplicáveis, aponta o Livro Branco sobre a e-MOP.