Inteligência artificial

A ascensão chinesa

O modelo DeepSeek-R1, lançado em Janeiro pela start-up chinesa DeepSeek, foi um sucesso à escala mundial
O inovador DeepSeek-R1, o QwQ-32B da gigante Alibaba ou o Kimi 1.5 da start-up Moonshot AI: são muitos os produtos de inteligência artificial lançados por empresas chinesas desde o início do ano. A China está cada vez mais na vanguarda do sector e vários analistas esperam um crescimento exponencial da tecnologia – e da relevância chinesa nesta área – ao longo dos próximos anos

Texto Viviana Chan

A evolução da China no campo da inteligência artificial (IA) tem sido marcada por um progresso sustentado, alimentado por uma robusta capacidade de inovação. Ainda assim, o lançamento do modelo DeepSeek-R1, em Janeiro, representou um salto qualitativo disruptivo. Em entrevista à Revista Macau, um conjunto diversificado de vozes – incluindo líderes empresariais, académicos e investigadores especializados – fala numa importante mudança em curso, com a China a tomar as rédeas no que toca ao futuro da tecnologia.

“A China chegou gradualmente à vanguarda tecnológica, tornando-se num contribuinte importante no que toca aos principais algoritmos disponíveis à comunidade e até mesmo impulsionando e liderando o desenvolvimento de todo o ecossistema”, afirma Du Lan, presidente da Associação da Indústria de Inteligência Artificial de Guangdong, província vizinha a Macau.

Nesse contexto, o modelo de linguagem de grande dimensão (“large language model”, em inglês) DeepSeek-R1, disponibilizado pela start-up chinesa DeepSeek, foi um marco importante, até pelo destaque que obteve a nível global. O sistema alcançou padrões de desempenho comparáveis àqueles dos modelos mais avançados internacionalmente, com custos de desenvolvimento bem menores, nota Du Lan, figura de destaque no sector e antiga vice-presidente sénior da empresa chinesa de produção de software inteligente de reconhecimento de voz iFlytek.

O DeepSeek-R1 “é um produto desenvolvido por uma equipa 100 por cento chinesa, que criou também um produto 100 por cento ‘made in China’”, destaca a especialista. Segundo nota, os principais “cérebros” por detrás do sistema foram formados nalgumas das melhores universidades chinesas.

De acordo com a organização sem fins lucrativos METR, sediada nos Estados Unidos e dedicada a avaliar modelos de IA, o desempenho deste tipo de ferramentas tem vindo a registar um progresso exponencial. Segundo um estudo publicado pela organização em Março, os modelos mais recentes obtiveram taxas de sucesso de quase 100 por cento na execução de tarefas que demoram a uma pessoa menos de quatro minutos a completar. Segundo a análise, a duração das tarefas – medida em “tempo humano” – que a IA consegue executar tem vindo a duplicar a cada sete meses ao longo dos últimos seis anos. A manter-se a tendência, em cinco anos, os modelos de IA serão capazes de realizar – de forma muito mais rápida – tarefas complexas que demoram dias ou semanas a serem concluídas por um ser humano, prevê a METR.

Competição internacional

Du Lan nota que a China e os Estados Unidos são hoje as principais potências no campo do desenvolvimento da IA. A especialista sublinha que o lado chinês foi capaz de resolver, entre outras questões, estrangulamentos que enfrentava ao nível do acesso a poder computacional de última geração. A impossibilidade de integrar nos centros de computação chineses os mais recentes chips ultra-rápidos norte-americanos levou as empresas do país a serem criativas, desenvolvendo soluções inovadoras. No caso do DeepSeek-R1, parte do segredo está na elevada eficiência dos processos computacionais utilizados.

Segundo dados da Academia Chinesa de Tecnologia da Informação e Comunicação, o diferencial ao nível da capacidade computacional total entre a China e os Estados Unidos é inferior a 5 por cento. “No que toca ao poder computacional inteligente, a China detém 45 por cento do total global, enquanto os Estados Unidos possuem 28 por cento”, isto apesar do lado chinês ter acesso limitado a chips de última geração norte-americanos, refere Du Lan, citando a mesma fonte.

A China tem também registado progressos significativos no que toca à inovação teórica fundamental para desenvolvimento de algoritmos para aplicação em modelos de IA, considera a especialista. E cita como exemplo o êxito obtido pela start-up chinesa HPC-AI Tech, responsável pelo sistema Colossal-AI, para treino de modelos de IA, utilizando técnicas avançadas de paralelização. A empresa criou o Open-Sora, para geração de vídeo a partir de texto com recurso a IA: a versão 2.0 foi lançada em Março e, de acordo com publicações especializadas, ombreia, em termos de capacidade, com rivais de topo internacionais, tendo sido treinada e optimizada por uma fracção do custo.

Outro caso referido por Du Lan é o do chatbot “Kimi”, um assistente virtual da chinesa Moonshot AI. A versão 1.5, apresentada em Janeiro, é capaz de suportar entradas de texto – os chamados “prompts” – de até 2 milhões de caracteres chineses.

Três pilares de desenvolvimento

Du Lan atribui a rápida popularização da IA no mercado chinês à confluência de três factores: apoio das autoridades à adopção desta tecnologia, procura do mercado e maturidade tecnológica.

No âmbito político, o Governo Central tem vindo a prestar atenção a este sector desde, pelo menos, 2017, altura em que o Conselho de Estado aprovou o “Plano de Desenvolvimento da Inteligência Artificial de Nova Geração”. O apoio governamental ao sector tem-se, entretanto, intensificado: exemplo disso foi um simpósio, em Fevereiro, do Presidente Xi Jinping com empresários privados chineses de topo nas áreas da computação e tecnologia. Em Março, foi anunciada a criação de um fundo estatal focado no desenvolvimento de tecnologia de ponta, que prevê atrair cerca de um bilião de renminbi nos próximos 20 anos.

“Estas políticas fornecem uma garantia robusta para a investigação e desenvolvimento no campo das tecnologias de IA, além de sinalizarem um direccionamento dos recursos políticos para as áreas da alta tecnologia”, observa Du Lan.

O poder de computação inteligente da China registou um crescimento exponencial nos últimos anos

No que diz respeito à procura do mercado, a estratégia de “código aberto” seguida pelos modelos de IA chineses – isto é, tornando os códigos de programação acessíveis gratuitamente a terceiros – é vista como um trunfo. Du Lan refere o caso do DeepSeek-R1, que se alinha com os padrões linguísticos e hábitos de pensamento da comunidade chinesa: a estratégia de “código aberto” permite que outros o possam modificar e integrar em programas e soluções informáticas próprios.

Du Lan acredita que esta opção traz uma mudança de paradigma: a IA deixa de ser um “jogo apenas entre gigantes” para entrarmos numa era de “IA para todos”. As pequenas e médias empresas vêem as barreiras de entrada e os custos de desenvolvimento de novas aplicações baixar significativamente: podem utilizar directamente os módulos principais do DeepSeek-R1, focando-se em criar ferramentas para usos específicos.

A maturidade tecnológica do país é o motor mais directo para a popularidade da IA na China, considera Du Lan. A especialista nota como o DeepSeek-R1 se tornou no programa do género com mais downloads em diversas plataformas. “Nenhum produto de IA [chinês] tinha alcançado tal feito anteriormente”, destaca, sublinhando que para tal contribuiu a facilidade de utilização do sistema.

Olhando para o futuro, Du Lan antevê que a indústria da IA global avance para um estado de diversificação e especialização. As principais empresas estão já a focar-se cada vez mais no desenvolvimento de modelos com aplicação prática empresarial e industrial, altamente especializados, ao invés de modelos mais genéricos, aponta.

“A nossa competição já não se centra na IA, mas sim na ‘IA+’”, enfatiza a especialista. Aqui, a China tem uma vantagem competitiva face ao resto do mundo, com um mercado interno e cadeias industriais já altamente informatizados e digitalizados, diz, facilitando a integração de soluções de IA empresariais. Tal pode levar a um ciclo virtuoso, com “feedbacks” positivos para o desenvolvimento e aperfeiçoamento contínuo dos modelos. “É na parte ‘+’ que as vantagens do nosso mercado interno começam a manifestar-se”, diz Du Lan, defendendo que a indústria chinesa de IA desempenhará um papel cada vez mais importante no cenário global.

Na linha da frente

Para o académico Derek Wong Fai, “a China já alcançou a vanguarda global em inovação de inteligência artificial”, sendo líder mundial em pedidos de patentes de IA generativa. O professor associado da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade de Macau há muito que acompanha o sector: é reconhecido o seu papel pioneiro no campo da tradução automática, tendo desenvolvido o primeiro sistema do género chinês-português do mundo, há já 25 anos.

A indústria de IA chinesa está avaliada em quase 600 mil milhões de renminbi, envolvendo mais de 4500 empresas, segundo um relatório divulgado em Fevereiro pelo Centro de Informações da Rede de Internet da China. De acordo com dados da província de Guangdong, o valor estimado do sector da IA a nível provincial fixou-se em mais de 220 mil milhões de renminbi em 2024, sendo líder a nível nacional e contando com a participação de mais de 1500 empresas especializadas.

Os principais modelos de IA a nível global concentram-se na China e nos Estados Unidos: este ano, além do DeepSeek-R1, também o QwQ-32B da gigante tecnológica chinesa Alibaba recebeu ampla atenção internacional. Derek Wong nota que os Estados Unidos têm, sobretudo, sido pioneiros em termos de desenvolvimentos disruptivos, fruto de uma vantagem competitiva em sectores como a investigação em ciência fundamental ou o desenvolvimento de chips de alto desempenho.

Do lado chinês, o académico considera que os trunfos se jogam em três frentes. “A China demonstra uma competitividade única nos cenários de aplicação da IA, na infra-estrutura de poder de computação e na coordenação de políticas”, afirma.

Derek Wong salienta que, em 2024, o poder de computação inteligente da China atingiu já um nível de liderança internacional significativo. Segundo um relatório da consultora International Data Corp, produzido em parceria com a empresa chinesa Inspur Information, registou-se um crescimento anual de 74,1 por cento na China a este nível, importante para apoiar eficazmente o treino de modelos avançados de IA, bem como para responder às necessidades de aplicação industrial.

O especialista recorda um projecto iniciado pela China em 2022, visando a criação de grandes centros de armazenamento de dados nas zonas ocidentais do país, mantendo os centros de computação nas regiões orientais. Através da optimização da distribuição da infra-estrutura, pretende-se elevar o poder de computação global da China, enquanto se promove um desenvolvimento doméstico equilibrado e uma gestão mais eficaz do consumo energético.

Derek Wong enfatiza o significado estratégico que teve o lançamento do DeepSeek-R1. “O modelo de ‘código aberto’ demonstra que a China pode compensar limitações de hardware através da inovação ao nível dos algoritmos, proporcionando um caminho tecnológico de IA ‘leve’ para países em desenvolvimento e países com recursos limitados”, sublinha. O especialista acredita que esta estratégia não só facilita o acesso a tecnologias de IA, como também atrai empresas de todo o mundo para participarem no desenvolvimento de aplicações práticas, acelerando a integração tecnológica.

Educar para inovar

Enquanto docente universitário, Derek Wong nota que “as principais universidades chinesas estão a aumentar significativamente o número de estudantes no campo da IA, o que não só responde às necessidades estratégicas nacionais, como também se adapta ao padrão de competição tecnológica global”.

O Ministério da Educação chinês quer popularizar a educação utilizando inteligência artificial nas escolas primárias e secundárias

Já no que diz respeito à educação não-superior, as autoridades estão a explorar diferentes abordagens. Trata-se, por um lado, de integrar ferramentas de inteligência artificial no sector para optimizar o ensino, e, por outro, de oferecer componentes pedagógicas que permitam tornar os alunos fluentes no uso deste tipo de tecnologia.

“Pequim exige que as escolas primárias e secundárias da cidade comecem a oferecer, a partir deste Outono, educação em conhecimentos ligados à IA, com um mínimo de oito aulas por ano lectivo”, nota Derek Wong. “Macau também incluiu programação e IA no currículo escolar, o que corresponde ao objectivo do Ministério da Educação de popularizar a educação utilizando inteligência artificial nas escolas primárias e secundárias até 2030.”

O académico avisa, porém, que se devem equilibrar as aplicações tecnológicas com outras considerações. “É crucial orientar os alunos mais jovens para evitar a dependência excessiva das ferramentas de IA e garantir que as suas capacidades básicas não sejam prejudicadas”, diz.

As empresas e a IA

Shen Yujing, subdirectora do Departamento de Investigação Macroeconómica do Instituto Chongyang para Estudos Financeiros da Universidade Renmin da China, considera que “estamos a passar da era da digitalização, impulsionada pela penetração da internet, para a era da IA”. E acrescenta: “Todas as empresas precisam de aumentar o investimento e a aplicação em tecnologias de IA, acelerando a sua respectiva transformação, a fim de se adaptarem às mudanças do mercado e às necessidades dos clientes.”

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A investigadora destaca que sectores verticais como a saúde e as finanças – bem como as indústrias ligadas ao sector transformador – devem aproveitar a revolução em curso, acelerando o desenvolvimento de modelos especializados, com maior integração de IA. Ao mesmo tempo, os fornecedores de serviços tecnológicos precisam de começar a oferecer soluções integradas com valor acrescentado, passando da simples entrega de software para o conceito de “IA como serviço”.

À medida que os cenários de aplicação das tecnologias de IA se expandem, a procura deverá crescer significativamente, refere Shen Yujing. No entanto, tal também apresenta desafios, especialmente no que diz respeito à privacidade e segurança dos dados, nota. Segundo diz, é essencial que as empresas protejam tanto os dados dos clientes quanto os seus próprios, adoptando tecnologias avançadas e estabelecendo normas e funções adequadas. Além disso, destaca a importância de ter planos de emergência para lidar com eventuais incidentes.