Arte urbana

A criatividade desceu à rua

Graffiti produzido com a participação de Thomas Lo, também conhecido por MCZ, e Pat Lam, que assina com a “tag” PIBG
São cada vez mais os murais e graffitis que decoram as ruas de Macau. Produção de artistas locais, contam histórias da cidade e reflectem novas tendências criativas, servindo igualmente para atrair visitantes a zonas fora dos roteiros turísticos tradicionais

Texto Cherry Chan

A arte urbana, enquanto fenómeno cultural, tem registado, nos últimos anos, um claro crescimento em Macau. Os murais de grande dimensão, espalhados por diversos bairros, tornaram-se uma forma de expressão artística popular, atraindo o interesse e a atenção tanto de locais como de turistas. Mais do que servir apenas para embelezar as ruas da cidade, são obras que reflectem histórias locais, traduzem identidades e espelham novas formas de criatividade.

As autoridades de Macau têm desempenhado um papel de relevo na dinamização da arte urbana. Desde 2021, o Instituto Cultural (IC) tem colaborado com diversos artistas na criação de murais temáticos em vários bairros, visando “promover o turismo cultural e o desenvolvimento económico”, de acordo com o organismo. Estas obras – que podem ser encontradas, por exemplo, na parede exterior dos Armazéns da Nam Kwong, na Rua do Almirante Sérgio, ou na Escada do Coxo, na Taipa – tornaram-se já “pontos de fotografia famosos nas redes sociais”, refere o IC.

O mais recente mural produzido com apoio governamental, concluído em meados de Abril, nasceu na escadaria de pedra da Rua de Tomás da Rosa, no Bairro da Horta da Mitra. Fruto de uma parceria entre o IC e a Associação Cultural da Vila da Taipa, foi concebido por seis artistas locais. A obra “retrata a história das mudanças na zona ao longo de um século, descrevendo vários símbolos culturais icónicos e traços típicos”, como o bosque de bananeiras que aí existiu no passado e as danças do leão associadas ao Templo de Foc Tac do Bairro da Horta da Mitra, explica o IC.

Anteriormente, as autoridades locais tinham já também incentivado a produção de graffitis na zona do Anim’Arte NAM VAN, junto ao Lago Nam Van. Na altura, e a partir de 2016, o IC convidou diversos artistas locais e estrangeiros para conceberem obras no local, que ainda hoje podem ser apreciadas.

No início, era o spray

No âmbito da arte urbana contemporânea local, Thomas Lo Si In e Pat Lam Ka Hou são nomes incontornáveis, cujos trabalhos começaram a surgir nas paredes da cidade muito antes da actual leva de novos artistas. Nascido em 1988, Thomas Lo, mais conhecido pelo nome artístico MCZ, foi um dos fundadores do grupo GANTZ5 – criado em 2004, viria a afirmar-se como um dos principais colectivos de Macau no campo do graffiti, embora esteja hoje inactivo. Pat Lam, outro dos fundadores, começou a colocar a sua “tag” PIBG pela cidade ainda nos finais da década de 1990, época que, nas suas palavras, marcou “o início do graffiti, dos murais e da arte de rua na Ásia”.

Thomas Lo, com um percurso artístico multidisciplinar, nota que a arte urbana oferece grande liberdade criativa. “Não é o mesmo que desenhar, onde é preciso ter um lápis. Tudo o que tivermos connosco pode ser a nossa ferramenta para criar, só precisamos de algum espaço”, explica.

Os dois artistas estabelecem uma distinção entre o graffiti e o mural, embora ambos sejam formas de arte de rua. Na opinião de Pat Lam, que foi um dos artistas envolvidos na produção do mural na escadaria de pedra da Rua de Tomás da Rosa, este tipo de obra possui um objectivo mais comunitário. Já o graffiti, diz, é uma criação mais pessoal, que exprime emoções e sentimentos individuais.

A dupla recorda os primórdios do graffiti em Macau, quando, há mais de 20 anos, criavam obras nos telhados das casas de amigos ou em edifícios devolutos. “Havia parques dentro dos quais existiam paredes onde podíamos pintar”, aponta Pat Lam, notando que actualmente faltam espaços do género.

A escadaria de pedra da Rua de Tomás da Rosa ganhou este ano um mural alusivo ao património cultural da zona

No entanto, hoje, a arte de rua goza de uma melhor aceitação da comunidade, reconhecem ambos. Se, anteriormente, havia algum preconceito social, associando os graffitis e murais a actos de delinquência juvenil, agora o seu valor criativo já é reconhecido. “Tenho ensinado arte de rua em algumas escolas como actividade extracurricular”, diz Pat Lam. “É óbvio que hoje em dia os pais estão mais abertos e conseguem compreender melhor esta forma de arte.”

A contribuir para isso estão eventos como o “!Outloud International Street Art Festival”. A sexta edição decorreu em Dezembro passado, na Praça de Ponte e Horta. A iniciativa – da qual Pat Lam é um dos organizadores – tem como objectivo promover a arte urbana em Macau e estimular o intercâmbio cultural, trazendo à cidade artistas estrangeiros de renome.

Talento de nível internacional

Na opinião de Felipe Wong, designer e artista multidisciplinar também conhecido nos meios culturais como FEW ou FEWONEZ, “Macau tem talentos e profissionais, tem também pessoas com muita experiência” no campo da arte urbana. Com uma carreira já com mais de duas décadas, do design gráfico à ilustração, passando pela arte de rua, Felipe Wong começou por trabalhar na Costa Rica, de onde é natural, passou por Hong Kong e hoje desenvolve a sua actividade em Macau.

A sua mulher, a também artista Anny Chong Wai, concorda que a arte urbana está em franco desenvolvimento a nível local. “Há em Macau quem esteja a lutar para que este tipo de arte se torne popular, para que um maior número de pessoas possa compreender esta forma de cultura”, diz.

Pintar murais não foi amor à primeira tentativa para Anny Wong, nascida em Macau e também conhecida pelo pseudónimo artístico de ANHZ. “Antes de o começar a fazer, pensava que era fantástico: ter um conjunto de mãos a trabalhar para fazer murais tão grandes. No entanto, pintar ao ar livre é quente e pode ser muito sujo e cansativo”, admite, ao recordar as suas primeiras impressões.

Primeiro estranhou, mas depois este tipo de arte entranhou-se-lhe. “Sou uma pessoa introvertida e fazer murais é, na verdade, uma forma de me relacionar com os outros”, explica. “Quando tenho um tema em comum com alguém, quando posso conhecer pessoas que pensam da mesma forma que eu, é divertido e acho que foi por isso que comecei a fazer murais.”

Anny Chong e Felipe Wong formam hoje a dupla artística AAFK. O seu trabalho pode ser encontrado também além-fronteiras, de Hong Kong ao Interior da China, passando por outros pontos do globo, da Indonésia ao Reino Unido.

Obra urbana da autoria do casal Anny Chong e Felipe Wong, que formam a dupla artística AAFK

Felipe Wong admite que, no passado, a arte de rua era incompreendida e vista socialmente de forma negativa, mas muito mudou nos últimos anos – também em Macau. “Agora, é aceite de forma mais aberta, já é encarada como uma forma de arte universal, mas penso que ainda requer dedicação” por parte dos seus defensores e promotores, diz. E dá o exemplo de Hong Kong, onde as pessoas parecem demonstrar um maior interesse em interagir com os artistas quando estes estão a trabalhar na rua.

Para o casal, os murais e graffitis são formas de arte mais próximas da população, que a acompanham no seu dia-a-dia, sem responder aos formalismos de uma galeria de arte. A este respeito, Anny Chong destaca os diferentes apoios fornecidos pelo Governo ao desenvolvimento da arte urbana: por exemplo, a artista e o marido foram convidados pelo IC, em 2020, para realizarem um graffiti na zona do Anim’Arte NAM VAN.

Anny Chong nota também as oportunidades de trabalho disponibilizadas por empresas locais de maior escala, incluindo ligadas à indústria do entretenimento e lazer. Estas comissões artísticas servem para mostrar a capacidade da comunidade criativa local, “mas ainda temos as nossas próprias histórias para contar, as nossas próprias criações para fazer”, sublinha.

Novas perspectivas

Vitorino Vong e Jane Ieng seguem, nas suas palavras, uma vertente artística de maior formalismo académico no que toca à sua arte de rua: ambos são licenciados em Artes Visuais pela actual Faculdade de Artes e Design da Universidade Politécnica de Macau. A dupla é responsável pelo mural na escadaria de pedra da Travessa da Boa Vista, perto da antiga Fábrica de Panchões Iec Long, na Taipa. A obra, concluída em 2021 e fruto de uma parceria da Associação Cultural da Vila da Taipa com o IC, apresenta casas de campo de cores vivas em estilo do sul da Europa, que se integram com as pequenas moradias em redor do mural.

Vitorino Vong iniciou-se na arte urbana há mais de uma década, ainda estudante do ensino secundário. “Ia para alguns edifícios industriais fazer graffitis com os meus colegas”, conta. Depois, surgiram as pinturas nos típicos portões metálicos de correr utilizados para encerrar as lojas locais. Já na universidade, apareceu a pintura de murais.

Segundo explica, anteriormente, o meio mais comum ao dispor dos artistas de rua eram os portões metálicos de lojas. Entretanto, os trabalhos em paredes, inclusive interiores, como forma de decoração contemporânea, começaram a ganhar popularidade. “Nos últimos anos, há cada vez mais murais, penso que por causa do esforço do Governo, o que ajuda na promoção e desenvolvimento das indústrias culturais e criativas.”

Vitorino Vong e Jane Ieng são os autores do mural que decora a Escada do Coxo, na Taipa

Para Jane Ieng, os primeiros dois murais surgiram em 2020, já com Vitorino Vong, e foram realizados, respectivamente, na Travessa da Assunção e no Largo do Pagode da Barra, também sob uma parceria da Associação Cultural da Vila da Taipa com o IC. “Em termos de técnica, não é assim tão difícil, mas a área é muito maior e as ferramentas são diferentes” das utilizadas na pintura tradicional, afirma.

O parceiro artístico reconhece as dificuldades logísticas de criar murais, em particular em zonas antigas da cidade. Por vezes, os muros alvos de intervenção estão localizados em ruas estreitas, são bastante altos e requerem a utilização de plataformas elevatórias móveis. Além disso, “precisamos de conhecer a estrutura da parede, temos de testar, experimentar as ferramentas que podemos utilizar, ver o resultado e afinar o trabalho pouco a pouco”, diz Vitorino Vong.

A tudo isto soma-se um desafio característico de Macau: o clima. A arte urbana faz-se na rua e isso significa estar à mercê dos fenómenos climatéricos, sejam os dias de muito calor ou de chuvas intensas.

Olhando para o futuro, os artistas ouvidos pela Revista Macau mostram-se confiantes, apesar dos desafios, quanto à afirmação da arte de rua na cidade. No entanto, defendem, é preciso dar espaço – e oportunidades – a quem pinta com as cores de Macau. “Temos muitos e excelentes criadores nesta área”, garante Anny Chong, acrescentando que o talento local não deve “servir de ilustração de fundo”, mas antes ser personagem principal na decoração urbana da cidade.