Vinte anos na lista da UNESCO

O património como identidade

As Ruínas de São Paulo são uma das edificações icónicas do Centro Histórico de Macau
A inclusão do Centro Histórico de Macau na Lista do Património Mundial da UNESCO, a 15 de Julho de 2005, teve impactos que vão muito para lá da conservação de edifícios e largos. Contribuiu para o desenvolvimento da economia e do turismo, estimulou actualizações legislativas e, sobretudo, elevou o orgulho da comunidade quanto às singularidades locais

Texto Emanuel Graça

A bom ritmo, é um percurso que se faz num par de horas a pé, mas que demorou cinco séculos a construir. O Centro Histórico de Macau, ligando o Largo da Barra às Ruínas de São Paulo, a que se soma a Fortaleza da Guia, está a comemorar 20 anos da sua inclusão na Lista do Património Mundial da UNESCO, acrónimo pelo qual é comummente conhecida a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.

Passadas duas décadas, este reconhecimento “tornou-se num factor distintivo e consensual em Macau”, avalia Nuno Soares, director do Departamento de Arquitectura e Design da Universidade de São José. “É algo de que todos na cidade nos orgulhamos e que achamos que é justo face à riqueza do património que temos”, diz o também arquitecto.

Desde 2005, houve bastante obra realizada por parte das autoridades da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) no campo da protecção do Centro Histórico, lançando as sementes para o futuro, reconhece Nuno Soares. A iniciativa mais recente foi a entrada em vigor, no ano passado, do Plano de Salvaguarda e Gestão do Centro Histórico de Macau, como definido na Lei de Salvaguarda do Património Cultural e após duas rondas de consulta pública, em 2014 e 2018. O documento estipula, entre outros aspectos, critérios para o restauro arquitectónico das edificações que fazem parte do Centro Histórico e a necessidade de assegurar a sustentabilidade a longo prazo deste património em relação ao desenvolvimento urbano em geral da cidade.

O próximo passo por parte do Governo inclui a anunciada construção de um “Museu do Património Mundial de Macau”, como notou o Chefe do Executivo, Sam Hou Fai, durante a apresentação, em Abril, das Linhas de Acção Governativa para o Ano Financeiro de 2025. O objectivo é que a infra-estrutura, a nascer nas imediações da Fortaleza do Monte, se torne numa importante instalação de salvaguarda, promoção, exibição e valorização do património de Macau reconhecido pela UNESCO.

1,23 km2
O Centro Histórico de Macau abrange um total de 1,23 quilómetros quadrados: as duas áreas principais têm, em conjunto, cerca de 0,16 quilómetros quadrados e a zona de protecção possui uma dimensão de 1,07 quilómetros quadrados.

22 edifícios e oito largos
O Centro Histórico é composto por 22 edificações e oito largos classificados, bem como pelas ruas que interligam os vários elementos, sendo estes núcleos rodeados pela zona de protecção.

500 anos
O Centro Histórico inclui elementos de diferentes períodos e estilos arquitectónicos, sendo o mais antigo datado de há mais de cinco séculos: trata-se do Pavilhão da Benevolência, parte do Templo de A-Má e cuja construção os especialistas pensam remontar a 1488.


Balanço positivo

“Se olharmos para estes 20 anos de inscrição na Lista do Património Mundial da UNESCO, o balanço é positivo – e isso é importante, porque reforçou a identidade de Macau como local de encontro de culturas, com história longa e rica”, sintetiza Nuno Soares. “Estas duas décadas dão-nos a confiança de que a população local valoriza o património que Macau tem e os turistas também.”

O especialista da Universidade de São José diz que o Centro Histórico “está bem preservado”, beneficiando de “uma regulamentação clara, que segue os melhores standards internacionais”, sendo que a sua protecção faz já parte do edifício legal local e do Plano Director da RAEM. O arquitecto recorda ainda que existe, desde 2022, uma unidade de monitorização do Centro Histórico, a qual “permite ter um diagnóstico em tempo mais real” de como é que está a sua preservação.

Nas imediações do Largo do Senado, existem vários edifícios parte do Centro Histórico, como a sede da Santa Casa da Misericórdia

Com a protecção da parte física assegurada, Nuno Soares argumenta que é tempo de olhar com mais detalhe para a interpretação. “É importante conhecermos melhor estes edifícios e largos, porque têm uma história longa”, afirma. “Temos que ir para além da imagem, além da fachada e além da mera classificação, e descobrir o que é que estes monumentos revelam mais.”

Nuno Soares diz que a passagem de 20 anos sobre a inscrição do Centro Histórico na Lista do Património Mundial da UNESCO já permite tirar algumas conclusões sobre o efeito desta distinção na cidade. “Tem valor cultural, bem como valor económico. Por esse motivo, é mesmo importante não ficarmos por aqui e sermos mais ambiciosos”, defende. “É importante, uma vez que já temos a atenção da população local e dos visitantes, adicionar mais camadas a esta base que já existe, que é uma boa base. Do nosso futuro de Macau, faz parte a valorização do nosso passado e isso é um processo que tem de ser contínuo.”

Valor excepcional

O Centro Histórico de Macau foi inscrito na Lista do Património Mundial da UNESCO durante a 29.ª Sessão do Comité do Património Mundial, realizada em Durban, na África do Sul, a 15 de Julho de 2005. Os relógios na RAEM marcavam 16h10 quando se deu a decisão favorável por unanimidade.

O Instituto Cultural leva a cabo várias actividades para promover o Centro Histórico junto dos mais jovens

Na altura, o comité reconheceu que o Centro Histórico, ao abranger um conjunto de bens imóveis e espaços públicos classificados, permite “uma compreensão clara da estrutura” da antiga cidade portuária. “Com as suas ruas históricas, edifícios residenciais, religiosos e públicos de raiz portuguesa e chinesa, o Centro Histórico de Macau oferece um testemunho único do encontro entre influências orientais e ocidentais a nível estético, cultural, religioso, arquitectónico e tecnológico, testemunhando o primeiro e mais duradouro encontro entre a China e o Ocidente”, notou o organismo.

De acordo com a avaliação feita na altura pelo Comité do Património Mundial da UNESCO, “a identidade multicultural única de Macau” é evidenciada no Centro Histórico “pela presença dinâmica, lado a lado na cidade, do património arquitectónico ocidental e chinês, podendo a mesma dinâmica ser frequentemente encontrada na concepção de edifícios individuais, onde elementos de estilo chinês figuram também em edifícios de estilo ocidental e vice-versa, como, por exemplo, caracteres chineses integrados nos elementos decorativos da fachada barroca das Ruínas de São Paulo”.

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Algo sublinhado aquando da inscrição é que o valor universal excepcional da área “não consiste apenas na sua arquitectura, estrutura urbana, gentes e costumes, mas também na mistura simultânea de todos estes elementos”. De acordo com o Comité do Património Mundial, é “a coexistência de legados culturais de origem oriental e ocidental, assim como as suas tradições vivas”, que “definem a essência do Centro Histórico de Macau”.

Visão de conjunto

Carlos Marreiros estava no Palácio do Povo, em Pequim, quando, em Novembro de 2005, o então Chefe do Executivo da RAEM, Ho Hau Wah, recebeu oficialmente o certificado da inscrição do Centro Histórico de Macau na Lista do Património Mundial, entregue pela UNESCO ao Governo Central. O arquitecto, que fazia parte de uma delegação de 80 individualidades locais convidadas para testemunhar o momento, sublinha que o reconhecimento do Centro Histórico foi “muito importante” para a cidade.

A distinção “ajudou a que Macau tivesse protegido esta área de forma significativa”, nota. Os respectivos edifícios e largos estão “muito bem tratados, como é visível”, e isso tem funcionado como “um atractivo para o desenvolvimento do turismo local”, afirma.

O início da ligação de Carlos Marreiros à preservação do património da cidade remonta a mais de quatro décadas atrás. Arrancou quando regressou a Macau em 1983, após os seus estudos universitários na Europa, para trabalhar na área do património no então recém-criado Instituto Cultural. Segundo recorda, foi durante a década de 1980 que se começou a actuar em Macau no restauro e protecção de vários edifícios históricos, algo em que esteve também envolvido. Em 2010, assinou as placas de sinalização e informação colocadas junto de cada edifício e largo que compõem o Centro Histórico.

Para ajudar à divulgação do Centro Histórico, as autoridades têm vindo a adoptar métodos inovadores – um exemplo é a exposição de realidade virtual “Visitando as Ruínas de S. Paulo no Espaço e no Tempo”

Carlos Marreiros advoga que as Ruínas de São Paulo são, “indiscutivelmente, a peça de melhor qualidade” – quer “em termos de arquitectura, quer em termos de trabalho de escultura” – do património de Macau reconhecido pela UNESCO. Já outras edificações, admite, representam mais uma “arquitectura de transgressão, que não seguiu os cânones, porque não era feita por eruditos, mas por curiosos, como padres ou militares”. Daí que concorde que o valor patrimonial primordial do Centro Histórico se prenda com uma visão de conjunto dos edifícios e do percurso que “começa no encontro entre chineses e portugueses no século XVI na zona da Barra e que se desenvolveu no eixo que vai até às Ruínas de São Paulo”, espinha dorsal da cidade antiga.

Olhando para o futuro, Carlos Marreiros sugere a introdução de melhorias no que toca ao acesso aos monumentos que constam da Lista do Património Mundial, muitas vezes dificultado pelo estacionamento na via pública. Além disso, o arquitecto diz que é essencial que se protejam e classifiquem localmente outros imóveis de valor de construção mais recente, nomeadamente da segunda metade do século XX, para assegurar um futuro a esse património. Esta é uma visão partilhada por Nuno Soares: “É importante em Macau não ficarmos só pelo Centro Histórico.”

Pedras de uma identidade

Miguel de Senna Fernandes, presidente da Associação dos Macaenses, nota a importância, para a identidade comunitária, da inscrição do Centro Histórico na Lista do Património Mundial da UNESCO. A população passou a assumir este conjunto de edifícios e largos – uns de origem ocidental, outros de matriz oriental – como “um todo” e parte do “seu” património comum. “Isto foi importante e ainda bem que ocorreu”, afirma.

Vários edifícios do Centro Histórico mantêm a sua função original como espaços de culto religioso

O também advogado acrescenta que são várias as vantagens para a cidade da inscrição na Lista do Património Mundial. Por exemplo, o reconhecimento “gera atracção turística e, logo, receitas para Macau”. No entanto, enfatiza, é importante não secundarizar a vertente intangível associada ao património. “Nós temos de defender a nossa identidade – isto é fundamental.”

Miguel de Senna Fernandes constata que garantir a protecção do Centro Histórico de Macau enquanto se responde às necessidades de desenvolvimento da malha urbana em redor, isto num local de dimensões reduzidas como a RAEM, é, de alguma forma, “tentar conciliar duas realidades aparentemente inconciliáveis”. No entanto, sublinha que é possível encontrar soluções que não periguem a salvaguarda dos monumentos, até porque “o património continua a ser a mais-valia mais importante da RAEM”.