Se uma língua é o lugar donde se vê o mundo, a Livraria Portuguesa é, em Macau e no continente asiático, uma vitrina privilegiada para o sentir dos povos que se expressam em português. Há 40 anos instalado no coração da cidade, o estabelecimento é a pedra basilar de uma política de divulgação cultural gizada em meados de 1980, assumindo-se como um espaço de divulgação e de descoberta, uma plataforma com vista para a língua portuguesa
Texto Marco Carvalho
Criada, em 1985, por iniciativa do Instituto Cultural de Macau, a Livraria Portuguesa surgiu com um objectivo bem definido: o de ajudar a delinear políticas culturais, numa cidade onde a cultura era, até então, desconsiderada. Ao longo das últimas quatro décadas, Macau transfigurou-se e a Livraria Portuguesa, constata Ricardo Pinto, naturalmente mudou com Macau.
“A Livraria Portuguesa passou por três diferentes fases, desde a sua criação em 1985. Começou por ser uma emanação do Instituto Cultural de Macau e tinha como prioridade estimular a divulgação da língua e da cultura portuguesas numa perspectiva de execução da política da então administração portuguesa, numa altura em que se adivinhava para breve a devolução de Macau à plena administração chinesa”, recorda o actual concessionário da Livraria Portuguesa. “Em 1990, já com a meta definida para o regresso de Macau à China, no final do século, a Livraria Portuguesa passou para a alçada do Instituto Português do Oriente [IPOR], com responsabilidades partilhadas entre o Governo português e a Fundação Oriente, mas ainda com o envolvimento da Administração de Macau em matéria de financiamento”, acrescenta.
Segundo Ricardo Pinto, poucos anos depois do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), em 2003, a exploração da livraria foi concessionada a privados.
“Até 2010, a concessionária foi a AF Amagao Publicações. Desde 2010, é a PraiaGrande Artes e Letras. Julgo não ser segredo para ninguém que o negócio livreiro está há muitos anos em crise um pouco por todo o mundo, por razões que também não serão ignoradas pela maioria das pessoas e que se podem resumir nas diferentes expressões do conceito da digitalização”, salienta o também director do jornal Ponto Final e proprietário da PraiaGrande Edições, Lda.

Se o retorno de Macau à administração chinesa redimensionou os objectivos que originalmente norteavam o projecto da Livraria Portuguesa, a transformação dos hábitos de leitura e a perda de relevância do livro como instrumento cultural de referência obrigaram o espaço a reinventar-se. A difusão da língua portuguesa e das culturas dos países de expressão portuguesa no continente asiático continua a ser a principal missão do IPOR e, por inerência, da Livraria Portuguesa. Os responsáveis pela gestão do projecto viram-se, no entanto, obrigados a diligenciar outras formas de vender Portugal e de zelar pela viabilidade económica do espaço, sem colocar em causa a responsabilidade social a que o estabelecimento está contratualmente sujeito.
“A divulgação da língua e da cultura portuguesas é uma constante no dia-a-dia da Livraria Portuguesa. Faz-se através da venda de livros em português, que são em boa parte de autores dos países de língua portuguesa ou dirigidos ao ensino da língua. Faz-se também através da comercialização de produtos tradicionais portugueses, em particular de cerâmica e de artesanato, que são os que mais atraem à livraria os turistas do Interior da China. E faz-se ainda por via da realização de palestras, feiras do livro, exposições, concertos”, assinala Ricardo Pinto.
“Nos primeiros anos da actual concessão, a gestão da livraria foi quase sempre deficitária, tendência que se acentuou, naturalmente, nos anos da pandemia. As contas saíram finalmente do vermelho mais recentemente, mas temos de continuar a procurar novas formas de viabilizar as operações, já que as soluções entretanto encontradas não serão eternas”, assume.
Evoluir com os tempos
A necessidade de equilibrar serviço à comunidade e viabilidade económica, reinventando a oferta e o próprio papel da Livraria, não tem impedido que a instituição leve a bom porto a missão a que está contratualmente obrigada, garante Patrícia Ribeiro, directora do IPOR. Na qualidade de entidade proprietária da Livraria Portuguesa, o IPOR tem como principal incumbência garantir que os moldes em que o projecto é explorado se coadunam com os pressupostos nucleares da missão que se propõe alcançar.
“No contrato de concessão, uma das cláusulas que temos – e que é algo que é devidamente salientado sempre que organizamos um novo concurso – é o facto de a missão da livraria se manter nos mesmos padrões que presidiram à sua criação. Ou seja, permitir que tenhamos um espaço em Macau que promova não apenas a literatura em língua portuguesa e dos países de língua portuguesa, mas também que promova iniciativas e actividades que facilitem a afirmação e difusão da cultura portuguesa em Macau”, clarifica Patrícia Ribeiro.
“A própria gestão da livraria tem cumprido com os objectivos de manter uma oferta diversificada, que tem acompanhado a evolução dos tempos. Como é lógico, vai tudo mudando e a própria procura, os próprios interesses daqueles que procuram a Livraria Portuguesa alteraram-se ao longo dos tempos e houve, por parte da livraria, uma preocupação em manter esta continuidade, reinventando-se, procurando novas ofertas e novos artigos, e promovendo outro tipo de iniciativas”, sublinha a responsável.

As incumbências da Livraria Portuguesa não se esgotam na promoção da língua, da literatura e da cultura portuguesas. O espaço é também um instrumento fundamental para quem se propõe aprender, em Macau, o idioma de Camões, ao complementar – e completar – o trabalho desenvolvido pelo IPOR. “Procuramos dar sempre ferramentas extra aos nossos formandos, para que possam complementar as suas aprendizagens e consolidar e diversificar aquilo que aprenderam connosco. A Livraria Portuguesa é um instrumento fundamental. No IPOR, os formandos aprendem o básico para poderem dominar a língua, mas, depois, a Livraria Portuguesa – dispondo da oferta que tem e das iniciativas que desenvolve – permite consolidar as aprendizagens que são adquiridas aqui”, salienta Patrícia Ribeiro.
“Enquanto a Livraria Portuguesa estiver sob a alçada do IPOR, há uma mensagem fundamental que tencionamos transmitir aos nossos associados. A mensagem de que é fundamental manter esta livraria em Macau. As organizações têm os seus ciclos, há momentos melhores e há momentos piores, mas compete-nos também a nós arranjar soluções e estratégias para que se mantenha e se preserve não apenas a língua, mas também a Livraria Portuguesa”, assume a directora do IPOR.
Sob o espectro da incerteza
Em 40 anos de altos e baixos, o mais crítico terá sido atingido no final de 2008, quando a alienação das instalações onde a Livraria Portuguesa sempre funcionou foi preconizada pela Fundação Oriente, o maior dos associados minoritários do IPOR. Instalada desde meados de 1985 na esquina onde a Rua de São Domingos e a Travessa do Bispo confluem, a dois passos do Largo do Senado, era originalmente constituída por três pisos de exposição e um apartamento no mesmo prédio para apoio.
Nos meses que antecederam o regresso de Macau à administração chinesa, as valências foram adquiridas pelo IPOR por cerca de 900 mil patacas com o objectivo de garantir a viabilidade económica do projecto a longo prazo e impedir que a sobrevivência da livraria ficasse refém das flutuações do mercado imobiliário.



Ao longo dos anos, foram várias as exposições de arte organizadas na Livraria Portuguesa
Concessionado pela primeira vez a privados em 2003, o espaço esteve na iminência de desaparecer menos de seis anos depois, quando o proprietário do projecto sugeriu que, no âmbito do processo de venda das instalações, a livraria fosse transferida para um prédio sem elevador e distribuída por quatro andares. A decisão de alienar o espaço gerou forte descontentamento junto da sociedade civil, com a oposição ao processo a ser liderada pela Casa de Portugal em Macau, e a venda do icónico espaço acabou por não se concretizar.
“Na altura, um dos associados do IPOR queria vender […] e o negócio esteve apalavrado. Foi o movimento cívico que se gerou em torno da defesa da manutenção da livraria [nas actuais instalações] que permitiu que esse processo não fosse por diante. A livraria ficou onde estava, a propriedade continuou a pertencer ao IPOR e assim ficou até aos nossos dias”, recorda Amélia António, presidente da Casa de Portugal em Macau.
Conhecer o passado
A atitude prática de considerar a Livraria Portuguesa como uma realidade que não pode ser posta em causa por estar já consolidada e assente é um dos desafios que o IPOR e a PraiaGrande Artes e Letras terão necessariamente de dirimir. O espaço é, desde há quatro décadas, parte insofismável da paisagem cultural de Macau, sem que muitas vezes o mérito seja reconhecido. Por lá passaram ao longo dos anos vultos incomparáveis da literatura e das artes, de Portugal e do mundo.
“Recordo-me de ter convidado Eugénio de Andrade em 1990 ou em 1991 e de termos feito uma sessão no Leal Senado e uma outra na Livraria Portuguesa, dado o grande entusiasmo que a vinda do poeta a Macau suscitou. Eugénio de Andrade era um crónico candidato ao Prémio Nobel da Literatura. Mas lembro-me de outras figuras de vulto como Natália Correia, como o arquitecto canadiano-macaense Gustavo da Roza ou a médica sino-belga Han Suyin, que alcançou grande notoriedade como escritora com o livro ‘A Colina da Saudade’”, recorda Carlos Marreiros, arquitecto e antigo presidente do Instituto Cultural de Macau.
Com um percurso profissional umbilicalmente ligado à génese da Livraria Portuguesa, Carlos Marreiros foi responsável pela concepção arquitectónica do espaço e por todas as grandes intervenções de que o estabelecimento foi alvo ao longo dos últimos 40 anos. Com os pés vincados no coração da cidade, a Livraria Portuguesa podia, no entanto, ter tido desde o berço uma feição completamente distinta.

“Em 1984, trabalhei no primeiro projecto para a Livraria Portuguesa. Constava apenas do rés-do-chão e da cave. Na cave funcionava o depósito dos livros e o rés-do-chão era a livraria propriamente dita. A sobreloja ainda não era utilizada. O espaço é inaugurado pelo governador, o Contra-Almirante Almeida e Costa, em Junho de 1985, mas o projecto inicia-se efectivamente em 1984. Antes desta versão da livraria para o local onde ela se encontra, houve um projecto, feito também por mim e depois descontinuado, para que a livraria ficasse situada na actual Biblioteca Sir Robert Ho Tung, no Alto de Santo Agostinho”, revela Carlos Marreiros.
Em 1985, pouco depois de a livraria ter sido inaugurada, “foi criada uma galeria de artes no andar de cima e a versão de 1984 vigorou sem alterações nenhumas até 1997, quando era presidente do IPOR a Dra. Ana Paula Laborinho”, refere Carlos Marreiros. “Estávamos a dois anos da transferência de soberania e ela pediu-me para conceber uma versão mais portuguesa, até porque a versão anterior era inspirada na tradição arte déco de Macau, que é uma tradição miscigenada. Foi ela que sugeriu que fosse aplicada calçada à Portuguesa no interior. Desde 1984 que fui o arquitecto de interiores da Livraria Portuguesa. Fui, assim, como que um co-parteiro daquele bebé”, remata, com indisfarçável orgulho, o arquitecto macaense.