A 29 de Outubro de 1992, um académico e investigador português ligado à microelectrónica chegava discretamente à Universidade de Macau, acompanhado pela esposa e três crianças. Três décadas depois, Rui Martins, agora vice-reitor, acaba de ser distinguido com o Prémio de Amizade do Governo Chinês. Pelo meio, a justificar o galardão, há um percurso ímpar ligado à formação académica, ao desenvolvimento tecnológico e à cooperação com os países de língua portuguesa
Texto Vitória Sok Wa Man
“Uma condecoração nacional, na China, para estrangeiros, e que reconhece o meu contributo para a Universidade de Macau, para Macau e, creio, também para as relações entre Macau, a China e os países de língua portuguesa, nomeadamente Portugal, de onde sou oriundo.” Era desta forma que, aos microfones da Rádio Macau, Rui Martins comentava, no início de Outubro, a sua distinção com a mais alta honra concedida pelas autoridades chinesas a cidadãos estrangeiros: o Prémio de Amizade do Governo Chinês.
O vice-reitor para os assuntos globais e professor catedrático de mérito (“chair professor”) da Universidade de Macau recebeu o galardão, na sua edição de 2025, ao lado de outros 49 laureados, numa cerimónia realizada no Grande Palácio do Povo, em Pequim, integrada nas celebrações do Dia Nacional da República Popular da China. A distinção reconheceu as contribuições excepcionais dos agraciados para o progresso económico, social e científico do País.
No caso de Rui Martins, é um prémio que reflecte não apenas um percurso académico singular, mas também o impacto estratégico da sua actuação. Desde que se radicou em Macau em 1992, o especialista na área dos circuitos integrados e da microelectrónica tem desempenhado um papel fulcral na promoção da inovação tecnológica, estimulando a capacitação de talentos locais. Sob a sua direcção, foi fundado aquele que é hoje o Laboratório de Referência do Estado em Circuitos Integrados em Muito Larga Escala Analógicos e Mistos, o primeiro do género fora do Interior da China. Além disso, tem ainda assumido um papel activo na promoção da cooperação entre a China e os países de língua portuguesa, fomentando parcerias académicas e científicas com instituições de Portugal, Brasil, Angola e Moçambique.
De Lisboa para Macau: uma decisão transformadora
Hoje com 68 anos de idade, Rui Martins nasceu em Lisboa, mas cresceu em Moçambique. Licenciou-se na área da Engenharia Electrotécnica no Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa, onde viria a leccionar durante 12 anos. Em 1983, projectou um chip com funções analógicas e, em 1991, tornou-se no primeiro investigador em Portugal a desenvolver um chip como parte de uma tese de doutoramento, também no Instituto Superior Técnico.

Após concluir os estudos pós-graduados, tinha pela frente uma carreira promissora na Europa. No entanto, em 1992, tomou uma decisão ousada: rumar para Macau, local que se preparava então para, em 1999, passar a ostentar o estatuto de Região Administrativa Especial da China.
Ao chegar à Universidade de Macau – que tinha tomado, no ano anterior, o lugar da Universidade da Ásia Oriental –, Rui Martins, então professor associado visitante, previa regressar a Portugal ao fim de dois anos. No entanto, porque havia vindo numa altura em que o semestre já estava a decorrer e, por isso, não tinha aulas para leccionar, decidiu ocupar-se com uma outra tarefa: saber mais sobre a Faculdade de Ciências e Tecnologia da instituição, o que daria origem a um relatório intitulado “Primeiras Impressões e Primeiras Propostas”, concluído em dois meses.
Em entrevista em 2021, a propósito dos 40 anos da Universidade de Macau, Rui Martins recordava: “Tinha apenas 35 anos. Hoje, com mais de 700 publicações efectuadas, ainda considero esse relatório como o melhor texto que produzi.” No documento, propôs novas áreas de investigação para a universidade e a criação de programas de pós-graduação, incluindo mestrados e doutoramentos.
As suas propostas foram acolhidas e o relatório serviria como um conjunto de linhas orientadoras para o desenvolvimento da investigação na Universidade de Macau ao longo das duas décadas seguintes. Durante esse período, Rui Martins exerceu os cargos de director da Faculdade de Ciências e Tecnologia, entre 1994 e 1997, e, a partir de 1997, de vice-reitor da universidade – foi vice-reitor para a investigação, de 2008 a 2018, sendo desde então vice-reitor para os assuntos globais.
Em 1993, foram lançados os primeiros programas de mestrado da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Macau, incluindo um mestrado em Engenharia Electrotécnica e Electrónica, coordenado pelo próprio Rui Martins. Contudo, o caminho não foi isento de desafios. Houve quem se opusesse ao programa, recordaria Rui Martins anos mais tarde. “Era alegado que era impossível fazer investigação em electrónica em Macau, que apenas grandes empresas como a IBM ou a Intel tinham essa capacidade.” Os anos seguintes provariam o contrário.
O pai dos chips “made in Macau”
Apesar de algum cepticismo, o caminho fez-se. Sob a orientação de Rui Martins, e apesar dos recursos limitados, foi desenvolvida com sucesso, em 1994, a primeira geração de chips desenhados na Universidade de Macau.
Motivado por estes avanços, Rui Martins dedicou-se à formação de uma equipa de investigação em microelectrónica no seio da Universidade de Macau. Em 1997, foi inaugurado o primeiro programa de doutoramento nesta área, tendo U Seng Pan e Tam Kam Weng como os dois primeiros doutorandos. Em 2001, Tam Kam Weng fundou o Laboratório de Investigação de Comunicações Sem-Fios na Universidade de Macau, seguido pela criação, em 2003, do Laboratório de Investigação em Circuitos Analógicos e Mistos, co-fundado por Rui Martins e U Seng Pan. O laboratório em circuitos analógicos e mistos cresceu rapidamente e, em Novembro de 2010, foi elevado a Laboratório de Referência do Estado, tornando-se o primeiro fora do Interior da China nesta área a receber a distinção.
Em mais de quatro décadas de investigação, Rui Martins publicou, em co-autoria, uma dezena de livros, contando com 26 patentes registadas no Interior da China e 42 nos Estados Unidos. Os artigos em revistas científicas superam as várias centenas. Além disso, apoiou a incubação na Universidade de Macau de diversas start-ups tecnológicas ligadas a projectos de antigos alunos da instituição, incluindo a empresa de biotecnologia Digifluidic Biotech e o grupo Silergy, ligado à área dos circuitos integrados – este último é liderado pelo seu antigo aluno e colega U Seng Pan, que, no ano passado, foi seleccionado pelo Chefe do Executivo, Sam Hou Fai, para integrar o Conselho Executivo.
Um legado de pontes e progresso
Para lá da microelectrónica, Rui Martins tem sido uma figura-chave na promoção da cooperação académica entre a China e os países de língua portuguesa. Em representação da Universidade de Macau, desempenhou vários cargos na Associação das Universidades de Língua Portuguesa (AULP), onde foi presidente entre 2014 e 2017. É actualmente vice-presidente da organização. Em Setembro de 2021, foi nomeado membro honorário da AULP, honra concedida apenas a um punhado de personalidades em todo o mundo.
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Rui Martins tem sido um dos responsáveis pelo aprofundamento da colaboração bilateral entre a Universidade de Macau e instituições de ensino superior do mundo de língua portuguesa, nomeadamente na formação de quadros qualificados e na investigação científica. Em Portugal, manteve a ligação ao Instituto Superior Técnico, no qual é membro do corpo docente desde Outubro de 1980, sendo actualmente professor catedrático da instituição.
Ao longo da sua carreira, foi distinguido pelo Governo por três ocasiões, sendo a mais recente em 2021, quando lhe foi atribuída a Medalha de Mérito Educativo. Recebeu também o Prémio Nacional da Ordem dos Engenheiros, em Portugal, na área de Engenharia Electrotécnica, em 2024, na edição inaugural do galardão. Em Julho de 2010, foi eleito, por unanimidade, membro correspondente da Academia das Ciências de Lisboa, tendo sido posteriormente elevado, em 2022, a membro efectivo, sendo o único português membro da academia a trabalhar e a viver na Ásia.
Em entrevista à Revista Macau no ano passado, Rui Martins recordava as muitas mudanças que a Universidade de Macau tinha vivido ao longo dos últimos 25 anos, desde o retorno da cidade à Pátria. “Eu já era vice-reitor em 1999. A universidade tinha à volta de 3000 alunos e eu era o único vice-reitor. Neste momento, a universidade tem cerca de 15.000 alunos – sendo metade de cursos de licenciatura e metade de mestrados e doutoramentos – e cinco vice-reitores”, afirmava então.
“Profundamente honrado” com a atribuição do Prémio de Amizade do Governo Chinês, Rui Martins pretende continuar a contribuir para o futuro da cidade, sublinhou um comunicado da Universidade de Macau, pouco depois de o académico ter recebido o galardão. A meta já foi traçada pelo próprio: transformar a distinção “numa força motivadora para continuar a contribuir para o futuro da China e o bem-estar do seu povo”.



