Muito antes de se tornar ensejo e oportunidade, Macau era para Frederico Rato fascínio e deslumbramento. Nascido no Algarve, o advogado cresceu com o inusitado apelo da longínqua região encravado na alma. Quando os becos, as ruelas e os pátios se tornaram palpáveis, o encanto transformou-se em paixão e a cidade tornou-se casa
Texto Marco Carvalho
No princípio era o verbo. E o verbo era enunciado nos bancos da escola em tom recitativo e cadenciado, uma ladainha profana com o nome de terras longínquas no lugar dos santos. De tão repetidos, tornaram-se um mantra. Uma fórmula encantatória dotou estes e outros recônditos de uma existência incorpórea, com menos de real do que de imaginado, de modo que muito antes de se ter tornado um labiríntico emaranhado de ruas, de gentes e propósitos em transumância, Macau era para Frederico Rato o fascínio e o poder de uma ideia.
Quando, em 1984, o jovem causídico desembarcou em Macau, o Oriente que trazia consigo afigurou-se-lhe parco e ilusório, um esboço não conseguido do que estaria para vir. “Desde o meu ensino secundário, dos meus dias no Liceu Nacional de Faro, que eu imaginava Macau. Depois, com os pés no chão, esse fascínio transformou-se numa paixão”, reconhece o advogado.
“A realidade de Macau superou em muito o que na minha imaginação cabia. Diria que foi uma espécie de amor à primeira vista”, confidencia. “A própria cidade despertou-me imenso interesse e continua a despertar-me interesse, ao fim de quarenta anos. Senti desde logo que esta era a minha segunda terra. E continuo a sentir que esta é a minha segunda terra”, acrescenta.

Um museu a céu aberto, com figurações multisseculares, onde a encruzilhada de povos e culturas se consubstancia quase a cada esquina. A Macau pela qual Frederico Rato se deixou enredar há mais de quatro décadas transfigurou-se incontestavelmente, mas soube preservar o essencial: uma tessitura impalpável, que se projecta nos pequenos gestos do quotidiano e nos grandes rituais de sempre.
Natural de Lagos, no Algarve, o advogado assomou à cidade em meados da década de 1980 com uma missão bem definida: “Vim como advogado da Companhia de Electricidade de Macau […] para coordenar as tarefas mais prioritárias da reestruturação na parte normativa e na parte jurídica”, acrescenta o sócio-fundador da firma de advocacia Lektou.
Com o desempenho da função veio um pequeno privilégio, uma vista desassombrada para o coração palpitante da cidade. A sede da empresa estava, à época, situada em pleno Largo do Senado e a mais representativa praça de Macau ofereceu a Frederico Rato a oportunidade de absorver o ritmo e a efervescência da cidade em toda a sua plenitude.
“Quando vim para Macau, comecei a trabalhar no Largo do Senado, naquele edifício amarelo emblemático, em frente à Santa Casa da Misericórdia. Trabalhava, portanto, na sala de visitas da cidade. Havia uma paragem de autocarro em frente da Farmácia Popular e eu dava por mim, entretido, a ver o corrupio de miúdos que iam para a escola, de donas de casa a caminho do mercado”, recorda o advogado.

Se o Largo do Senado se prefigura como um hino à persistência da memória e um livro aberto para o passado de Macau, a alma da cidade – no que tem de mais puro e genuíno – exulta nas ruelas e nos pátios. Por detrás de portas fechadas e de janelas entreabertas, entre quatro paredes ou fora delas, a intimidade da vida privada escoa-se sem reservas e entorpece o espírito de quem passa.
O chocalhar ritmado das peças de mahjong, o perfume subtil de flores de kapok a enxugar ao sol, um molho de pivetes em demorada combustão num pequeno e anónimo altar impregnam as ruas de insofismável poesia, de um encantamento tão claro que não pode ser posto em causa.
“Para sentir o palpitar da cidade, gosto de embrenhar os meus amigos e quem me visita naquilo que é, de facto, o tecido urbano social de Macau: as ruelas. Nas ruelas, a vida faz-se meio em casa, meio na rua, quer esteja a chover, quer faça um calor abafador. Embrenhamo-nos naquelas ruelas que dão acesso à parte litoral de Macau, que é onde a vida borbulha”, explica, com indesmentível entusiasmo.
“É aqui que se sente que a cidade não é apenas uma cidade viva do ponto de vista do turismo. É também uma cidade que vibra na força de uma população que excede as 600 mil pessoas”, argumenta Frederico Rato.
O arrebatamento, tal como qualquer outra nuance do espírito, necessita de ser nutrido, renovado, revigorado. Especialista em Direito Comercial e Societário, o fundador do escritório Lektou regressa sempre que pode à zona envolvente do Jardim de Camões, para “fazer umas revisões e ver coisas que já viu”. Os penedos onde, à luz da tradição, o bardo escreveu o fulcro de “Os Lusíadas” são como que a espinha dorsal de uma parte da cidade desconsiderada tanto por turistas como por locais, mas onde subsistem idiossincrasias muito próprias.
“Continuo a fazer passeios, sozinho ou acompanhado, por partes da cidade que me fascinam ou de que gosto particularmente. Gosto muito de explorar – ou de reexplorar – a zona do Jardim de Camões, sobretudo a que desce dos penedos para o lado do Porto Interior. Há ali uma série de travessas interessantíssimas, nomeadamente a Travessa da Saudade, a Rua da Ribeira do Patane, a Travessa da Palanchica e a própria Travessa do Patane. Toda esta zona é bem típica do dia-a-dia, da cultura e da vivência chinesa, tal como ela se nos proporcionava há quarenta anos”, ilustra Frederico Rato.
Mais do que uma mera romagem de saudade, a redescoberta da selva urbana que se espalhou e agigantou de um e do outro lado do Jardim de Camões oferece a oportunidade de, tal como o poeta, descobrir e percorrer o mundo até às suas últimas distâncias, abraçar e celebrar a múltipla diversidade dos lugares e de quem os habita.
“Na Rua da Pedra, na Rua da Harmonia e na Rua da Alegria também temos magníficos exemplos de arquitectura e de urbanismo miscigenado, ainda que com predominância chinesa”, diz Frederico Rato. “É importante olhar para baixo e para cima e não apenas para onde os nossos pés estão pousados. É importante ter uma visão global do espaço onde estamos e da forma como o espaço está ocupado e é usado por diferentes pessoas, sejam elas chinesas, portuguesas ou filipinas. São elas que fazem de Macau este cadinho de culturas, de civilizações e de línguas, onde se vive placidamente, em harmonia e com segurança”, argumenta.

“Sempre gostei muito da continuidade entre o tecido urbano e o litoral, da passagem – seja mais harmónica, seja mais abrupta – entre a terra e o mar. Macau também me dá isso.” O mar, elabora o experiente advogado, é como que o espelho de onde Macau bebe as suas mais benignas qualidades.
“Os portugueses misturaram-se com toda a facilidade, mas não são só as pessoas que se misturam. São as próprias águas dos oceanos que se misturam, as do Atlântico com as do Índico, na passagem que os navegadores portugueses dobraram e, aqui em Macau, na passagem do Índico para o Pacífico. A existência do mar, o convívio e a constante relação entre o mar e a cidade são, para mim, algo altamente reconfortante e fazem parte do meu dia-a-dia”, reitera Frederico Rato.
A ubiquidade do mar foi um elemento fundamental na escolha do espaço que acolhe, desde finais dos anos 1990, a sede da Lektou. A vista, a partir de um dos andares cimeiros do edifício Landmark, abraça os Novos Aterros do Porto Exterior, zona onde a intenção de manter a cidade aberta ao mar foi sublimada, uma marca indelével de portugalidade que se insinua hoje como uma mais-valia para Macau.
“Os Novos Aterros do Porto Exterior foram concebidos com linhas arquitectónicas e com traços de planeamento urbanístico onde impera, digamos, a mão do arquitecto Siza Vieira. A modernidade das edificações, a diversidade das próprias linhas arquitectónicas e a simplicidade da traça urbanística não chocam com a essência de Macau. Muito pelo contrário. Proporcionam uma transição suave, harmónica e coerente com a zona tradicional de Macau”, argumenta o advogado.
“A marca portuguesa é hoje uma mais-valia de Macau, quer uma mais-valia de natureza paisagística e cultural, quer uma mais-valia turística. Muitas pessoas vêm a Macau para ver porque é que Macau é diferente. E porque é que Macau é diferente? Porque coexistiram modos de pensar, modos de viver, crenças, histórias, lendas, civilizações e valores que estavam, diria, nos antípodas, mas que tiveram a sabedoria e o bom senso de conseguirem mutuamente adaptar-se a uma vida comum, num espaço limitado, mas privilegiado, de convívio”, remata Frederico Rato.