Relações bilaterais

Macau, peça-chave na ligação China-Moçambique

Moçambique assinala, em Junho deste ano, o 50.º aniversário do estabelecimento de relações diplomáticas com a República Popular da China, tantos anos quantos aqueles que o país africano leva como nação independente. Na cooperação bilateral, Macau destaca-se no campo do ensino superior e pelo papel desempenhado pela sua comunidade moçambicana

Texto Marta Melo

Foi uma amizade que se forjou aos primeiros raios da alvorada moçambicana: as relações diplomáticas China-Moçambique foram oficializadas logo a 25 de Junho de 1975, no próprio dia em que o país africano proclamou a sua independência. As autoridades chinesas foram, aliás, dos primeiros parceiros internacionais a reconhecer Moçambique como Estado soberano. Desde então, o relacionamento tem-se aprofundado e, em 2016, alcançou um novo patamar com o estabelecimento de uma parceria estratégica global entre os dois lados.

“Ao longo de cinco décadas, a nossa relação de amizade, solidariedade e de cooperação evoluiu substancial e qualitativamente”, resume Maria Gustava, embaixadora de Moçambique na China, em declarações à Revista Macau. A interacção bilateral abrange hoje um amplo leque de áreas, da agricultura à energia, passando pelo comércio, investimento e educação.

A construção de infra-estruturas é outro sector onde a relação China-Moçambique tem dado frutos. Na lista de grandes obras públicas recentes construídas com apoio chinês está o Centro Cultural Moçambique-China, um dos maiores do género em África, localizado na capital, Maputo, além do Instituto Médio Politécnico de Gorongosa, no centro do país.

Nas trocas comerciais com a China, Moçambique ocupa o segundo posto entre os países africanos de língua oficial portuguesa. No ano passado, o comércio bilateral atingiu 5,19 mil milhões de dólares americanos, de acordo com dados da Administração Geral da Alfândega da China.

“A China é um parceiro estratégico e importante no processo de desenvolvimento socioeconómico de Moçambique”, assinala Maria Gustava. A diplomata destaca, nesse âmbito, a assinatura do acordo de parceria estratégica global entre os dois países. “Foi um marco histórico que serve de farol para a condução da cooperação bilateral nos próximos anos”, observa.

Um catalisador chamado Macau

No contexto dos laços China-Moçambique, a Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) é vista como tendo um papel fundamental. É uma “peça-chave”, que não só tem contribuído para o bom relacionamento bilateral actual, como também possui uma função a desempenhar no que toca ao “futuro promissor dessa relação”, assinala a investigadora Fátima Chimarizeni Papelo, especialista em relações internacionais ligada à Universidade Joaquim Chissano, em Maputo.

Como sede do Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa, conhecido como Fórum de Macau, a RAEM assume-se já como uma plataforma entre o lado chinês e o mundo lusófono. “A participação de Moçambique no Fórum de Macau tem facilitado positivamente a sensibilização das autoridades chinesas quanto ao incremento e consolidação da cooperação bilateral, tanto nos domínios económico como de investimento”, assinala a embaixadora Maria Gustava.

O Fórum de Macau é, na opinião da académica Fátima Chimarizeni Papelo, um “espaço económico de alto relevo”, através do qual potenciais projectos podem ser “conjuntamente identificados e implementados”. A investigadora acrescenta que é importante perceber quais são as prioridades chinesas no seio do Fórum de Macau, bem como quais os “desafios e oportunidades” encontrados na implementação de projectos em solo moçambicano.

Moçambique foi, paralelamente, a primeira nação com um projecto seleccionado para receber financiamento do Fundo de Cooperação e Desenvolvimento China-Países de Língua Portuguesa, há cerca de uma década. Tratou-se de um parque agrícola no sul do país, vocacionado para a produção de arroz, a cargo de uma empresa chinesa.


“A participação de Moçambique no Fórum de Macau tem facilitado positivamente a sensibilização das autoridades chinesas quanto ao incremento e consolidação da cooperação bilateral”

MARIA GUSTAVA
EMBAIXADORA DE MOÇAMBIQUE NA CHINA

As autoridades moçambicanas, adianta Maria Gustava, continuam a divulgar as potencialidades e o ambiente de negócios do país junto da China, incluindo através do Fórum de Macau. Por exemplo, Moçambique tem participado em várias feiras e exposições comerciais na RAEM. “A nossa expectativa é que haja um incremento de investidores em projectos concretos e estruturantes, que possam contribuir para o aumento da capacidade produtiva”, salienta a diplomata.

Comunidade como janela para o país

A promoção de Moçambique em Macau passa igualmente pela comunidade moçambicana radicada na cidade. Para Ângelo Rafael, presidente da Associação dos Amigos de Moçambique (AAM), grupo que reúne os moçambicanos a viver na RAEM, Macau possui “grande potencial” no que toca a promover as relações entre os dois países. “A acção tem que ser em pontos específicos”, defende.

Embora não sendo muito numerosos, os moçambicanos que têm a cidade como casa estão bem integrados no tecido social local. Por exemplo, são professores, gestores, funcionários públicos ou estão ligados ao sector hoteleiro.

A AAM, criada em Novembro de 1992, é particularmente activa na realização de actividades relacionadas com os saberes e tradições de Moçambique. “Temos sido um ponto de referência, tanto do Governo de Macau como do próprio Consulado de Moçambique, quando se quer fazer uma ligação com a comunidade moçambicana”, assinala Ângelo Rafael.

A associação participa em eventos anuais como o Festival da Lusofonia, a cargo do Instituto Cultural, ou a Semana Cultural da China e dos Países de Língua Portuguesa, promovida pelo Secretariado Permanente do Fórum de Macau, para além de organizar festivais de gastronomia de Moçambique. “A comunidade adere às iniciativas de promoção”, salienta Carlos Barreto, vice-presidente da AAM entre 2006 e 2017.

Aos moçambicanos a residir em Macau cabe o papel de estabelecer pontes entre o país natal e a China. Ângelo Rafael – que, para além de presidente da AAM, é também docente na Universidade de São José – exemplifica com a sua experiência: sempre que há alguma delegação visitante proveniente de Moçambique, ele é “um dos primeiros pontos de contacto”, afirma. “Ajuda sempre ter alguém moçambicano dentro da instituição que possa facilitar a comunicação.”


“Temos sido um ponto de referência, tanto do Governo de Macau como do próprio Consulado de Moçambique, quando se quer fazer uma ligação com a comunidade moçambicana””

ÂNGELO RAFAEL
PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DE MOÇAMBIQUE

Embora a vertente económica não faça directamente parte da missão da AAM, a organização pode ser uma janela para as oportunidades que o país oferece. Ângelo Rafael exemplifica com a exposição temática que a associação apresenta no seu stand a cada edição do Festival da Lusofonia: por lá já passaram temas como o turismo, a cultura e a economia moçambicanas. “É uma forma que encontrámos de partilhar um pouco do potencial, das oportunidades e do que é feito em Moçambique, através da associação. Algumas vezes temos recebido, por exemplo, contactos de pessoas ou de entidades que querem saber mais”, diz.

Carlos Barreto destaca a abertura do Consulado-Geral da República de Moçambique na RAEM, em 2014, como um momento importante no reforço dos laços bilaterais. O antigo vice-presidente da AAM sublinha o trabalho que a missão diplomática tem vindo a desenvolver no que respeita à dinamização de actividades comerciais e de promoção do investimento, bem como de intercâmbio cultural. “A AAM mantém um bom relacionamento com a equipa do consulado, fruto de um diálogo construtivo, integrando-se uma componente de promoção do país (turística, comercial, industrial) nos eventos organizados”, diz.

Formação como pilar de cooperação

No contexto das relações bilaterais China-Moçambique, Macau tem-se destacado no sector do ensino superior. Ao longo dos últimos anos, dezenas de moçambicanos obtiveram graus académicos em instituições da RAEM, muitos deles apoiados por bolsas de estudo locais. A lista inclui actuais altos quadros de Moçambique, como é o caso de Manuel Guilherme Júnior, reitor da Universidade Eduardo Mondlane, que obteve os graus de mestre e pós-graduado em Direito Comercial Internacional na Universidade de Macau. “É uma fonte de orgulho sempre que se fala desta cooperação e se usa o exemplo de profissionais bem-sucedidos”, salienta Ângelo Rafael, ele próprio antigo aluno de mestrado e doutoramento na Universidade de Macau.

A RAEM acolhe actualmente cerca de três dezenas de estudantes moçambicanos. Mahomed Aquil Ibraimo é um deles: frequenta a licenciatura em Administração Pública na Universidade Politécnica de Macau, usufruindo de uma bolsa de estudo destinada a alunos de países de língua portuguesa atribuída pela própria instituição.

A escolha pela RAEM prendeu-se com factores culturais, diz. “Macau permite compreender desafios como a governança intercultural [e] a gestão de serviços públicos em contextos diversificados”, assinala.

O jovem acredita que um percurso académico na RAEM pode trazer-lhe mais-valias estratégicas. “A matriz curricular do curso em Macau inclui disciplinas alinhadas com alguns desafios que acho serem pertinentes no meu país”, realça, exemplificando com a gestão de infra-estruturas e a análise de políticas públicas.

Para Mahomed Aquil Ibraimo, estudar em Macau é “como ter um laboratório de globalização” em seu redor. “Aprendi, por exemplo, como uma cidade pequena pode ser um ‘hub’ internacional – algo que Maputo tem potencial para replicar”, diz.

A frequentar a licenciatura em Engenharia Electrotécnica e de Computadores na Universidade de Macau, Magne Dina Neves enfatiza que a experiência não só lhe tem trazido benefícios académicos, mas também a nível social e de rede de contactos. “Almejo imensamente retornar a Moçambique e aplicar de forma eficiente os conhecimentos técnicos e científicos, assim como as experiências adquiridas em Macau”, diz.

Para o jovem, na RAEM com uma bolsa de estudo atribuída pela Fundação Macau, esta é uma oportunidade única. “Não só amplia os meus horizontes, mas também cria oportunidades para levar inovação e progresso a Moçambique”, justifica. Magne Dina Neves assinala que tal é “indubitavelmente importante” para o país africano, uma vez que a formação de quadros “trará benefícios de longo prazo para o desenvolvimento socioeconómico” do povo moçambicano, à imagem do que sucedeu na China nas últimas décadas.

Além do ensino superior, a embaixadora Maria Gustava assinala uma outra área de cooperação, “não menos importante”: a troca regular de experiências entre a China e Moçambique ao nível de quadros superiores dos sectores público e privado, tendo Macau como palco. A esse respeito, destacam-se as acções levadas a cabo pelo Fórum de Macau, cobrindo áreas como as finanças, a medicina tradicional chinesa e o turismo, entre outras.

Futuro promissor

Para a embaixadora Maria Gustava, os resultados já obtidos no seio da cooperação entre a China e Moçambique são “positivos”. O país africano exporta para a nação asiática madeiras e produtos minerais, pesqueiros e agrícolas – uma das pretensões, segundo a diplomata, passa por alargar o leque de artigos agro-alimentares incluídos no cabaz de vendas.

O Governo moçambicano quer também “incrementar os investimentos” chineses na indústria do país, sobretudo no que toca ao processamento de matérias-primas, de forma a acrescentar-lhes valor. O objectivo, salienta Maria Gustava, passa também por “criar postos de trabalho” para os jovens.

Stand de Moçambique na feira de artesanato da edição de 2024 da Semana Cultural da China e dos Países de Língua Portuguesa

A embaixadora considera que o futuro das relações entre os dois lados é promissor. “Apesar das assimetrias no desenvolvimento, acreditamos que há espaço para consolidar os progressos alcançados” nos domínios político-diplomático, económico, comercial e do investimento, “cobrindo novos horizontes”, sustenta.

A investigadora Fátima Chimarizeni Papelo antevê “mais aprofundamento” no que toca à cooperação entre os dois países, nomeadamente na área das infra-estruturas, assim como a entrada de mais empresas chinesas em Moçambique, com destaque para os sectores das telecomunicações e da energia. Estas são áreas em relação às quais, recorda a académica, o Estado moçambicano já demonstrou interesse em captar investimento estrangeiro. Por duas razões: para a criação de emprego e porque são indústrias nas quais se vai jogar o desenvolvimento a longo prazo do país. “Constituem áreas que visam impulsionar o crescimento económico de Moçambique, com possibilidade de gerar rendimentos para investimento noutras áreas devidamente identificadas, como são os casos da educação e saúde”, justifica.

Fátima Chimarizeni Papelo antevê ainda que o investimento chinês se alargue a outras zonas do país. Isto porque, afirma, actualmente, ainda se encontra muito concentrado na região de Maputo.

Na visão do académico português Francisco Proença Garcia, com trabalho publicado no âmbito da presença económica da China em Moçambique, a formação de quadros locais é uma área importante para melhor aproveitar o potencial da relação bilateral e atrair mais investimento. O especialista refere-se não apenas a quadros com ensino superior, mas também à formação técnico-profissional. “Tendo essa mão-de-obra, já se pode ter fábricas de automóveis ou de baterias. Caso contrário, ficamos só nos recursos naturais”, alerta o investigador.