Ensino superior

“O nosso foco é a interdisciplinaridade”

A Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau celebra este ano o seu jubileu de prata. Estabelecida em 2000, a instituição está apostada em apoiar a RAEM na promoção da diversificação adequada da economia e na internacionalização do ensino superior local. Quem o diz é o reitor Joseph Hun-wei Lee, em entrevista à Revista Macau

Texto Cherry Chan

Enquanto instituição de ensino superior multidisciplinar, quais são as principais características da Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau (UCTM)?

A UCTM começou com quatro faculdades: Medicina Chinesa, Direito, Tecnologia de Informação e Administração e Gestão. Ao longo dos últimos 25 anos, evoluímos para uma instituição de ensino superior de carácter abrangente e hoje temos cerca de uma centena de programas académicos acreditados e reconhecidos pelo Governo. Existem actualmente na UCTM nove faculdades e unidades académicas equiparadas, distribuídas por quatro domínios do conhecimento: ciências físicas e engenharias; biomedicina e saúde; negócios, gestão e turismo; e artes, humanidades, línguas e ciências sociais.

Ao longo dos últimos anos, reagrupámos as nossas competências nos campos das ciências da computação, engenharia de sistemas, ciência dos materiais, física espacial, matemática, ciências do ambiente e engenharias, sob a Faculdade de Engenharia e Inovação. Esta reorganização facilitou significativamente as sinergias multidisciplinares e um planeamento académico mais coeso – o que levou à criação de novos programas em áreas como a inteligência artificial.

No domínio da biomedicina e saúde, temos vários programas únicos, no âmbito de Macau, nas áreas da medicina chinesa e da farmacêutica. A UCTM oferece, de forma pioneira na cidade, uma licenciatura em medicina e cirurgia, seguindo o sistema “MBBS” [do inglês “Bachelor of Medicine and Bachelor of Surgery”] do Reino Unido e de Hong Kong, a qual é alvo de avaliação externa. A primeira turma deste programa – o primeiro grupo de médicos formado localmente, 80 por cento dos quais são residentes de Macau – acabou a sua formação agora mesmo em Junho, após seis anos de formação.

Quanto às humanidades, oferecemos programas ligados ao design, às belas-artes, jornalismo e comunicação, artes performativas, arquitectura e media digitais interactivos e, no ano passado, lançámos novas formações na área da música. Os estudantes podem, alternativamente, seguir estudos em história, línguas estrangeiras – incluindo português e espanhol – e educação. Uma ampla gama de programas em negócios e finanças, contabilidade, turismo e gestão de lazer é igualmente oferecida no âmbito do domínio dos negócios, gestão e turismo.

Recentemente, criámos uma outra oferta única: um módulo obrigatório em inteligência artificial para todos os estudantes de licenciatura. Todos têm de frequentar esta disciplina – é leccionada a 1500 estudantes por semestre. Conseguimos implementar este projecto no âmbito da parte de formação geral do nosso currículo e a disciplina é leccionada em equipa por docentes de todas as faculdades, não apenas das áreas das engenharias. Queremos que os estudantes aprendam, desde cedo, sobre o poder e as limitações da inteligência artificial e que compreendam as suas aplicações nas ciências, artes, saúde, sustentabilidade e direito. Trata-se de um esforço multidisciplinar, com contributos de todas as faculdades.

Em suma, os nossos valores estão centrados na qualidade e na inovação. À medida que avançamos, procuramos antecipar as necessidades da sociedade — como, por exemplo, na denominada “economia aeroespacial de baixa altitude”, na cibersegurança ou nas finanças digitais — e desenvolver programas nessas áreas.

O Chefe do Executivo, Sam Hou Fai, participou na cerimónia de graduação 2025 da UCTM, que decorreu em Junho

Qual o actual rácio entre o número de docentes e estudantes na UCTM?

Actualmente, temos cerca de 23.000 estudantes – aproximadamente 14.000 de licenciatura e 9000 de pós-graduação – e temos um total de 1300 funcionários a tempo inteiro. Em termos de ensino, combinamos um contingente de docentes a tempo inteiro com investigadores e professores convidados, seguindo um modelo semelhante ao aplicado por universidades internacionais de topo. O rácio docente-aluno ronda 1:18, mas o valor varia consoante a área de estudo: uma aula de economia pode ser dada por um único professor a uma turma maior, ao passo que, na medicina e cirurgia, é essencial um acompanhamento mais próximo de cada estudante. Continuamos a recrutar docentes altamente qualificados em todo o mundo, contribuindo de forma vigorosa para a política de internacionalização do ensino superior, da investigação e da inovação preconizada pelo Governo.

Encaramos o ensino superior como uma missão visando formar talentos, estimular a diversificação adequada da economia e, ao mesmo tempo, proporcionar programas académicos de qualidade internacional não só à região, mas também para o País. Prevemos que, sob a política governamental de alargar o número de estudantes universitários internacionais em Macau, teremos mais alunos dos países da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) e outras partes do mundo, que vão contribuir para – e beneficiar de – uma internacionalização com características de Macau.

Ao longo dos últimos 25 anos, a UCTM criou diversas plataformas de investigação, algumas das quais reconhecidas a nível nacional. Que papel desempenha a investigação científica na universidade?

Dispomos de três plataformas de investigação de nível nacional no domínio das ciências naturais e tecnologia: dois laboratórios de referência do Estado, nomeadamente um para a investigação de qualidade em medicina chinesa e outro no campo da ciência lunar e planetária; e também temos o Observatório Nacional de Investigação de Ecossistemas Costeiros de Macau.

O Laboratório de Referência do Estado para a Ciência Lunar e Planetária, estabelecido em 2018, foi o primeiro do género e surgiu no seguimento da participação proactiva, desde 2005, de cientistas da UCTM na área espacial em missões chinesas à Lua e a Marte, numa altura em que o interesse pela ciência espacial era menor. Em colaboração com cientistas e engenheiros de topo do Interior da China, os investigadores da UCTM participaram no design e desenvolvimento do satélite “Macau Science 1” [“MSS-1”, na sigla em inglês]. O lançamento [em 2023] do “MSS-1” mudou radicalmente a percepção da ciência em Macau, demonstrando como é possível concretizar o que parecia antes impossível.

Sendo Macau uma região relativamente pequena, é essencial concentrar recursos em áreas estratégicas. Plataformas nacionais como os laboratórios de referência do Estado atraem talentos de topo para trabalhar em desafios científicos complexos. Estas infra-estruturas elevam o perfil científico da cidade e reforçam a sua capacidade para contribuir para o progresso da investigação em áreas de vanguarda a nível global. Por exemplo, o “MSS-1” é o primeiro e único satélite capaz de realizar medições de alta precisão do campo magnético terrestre em zonas localizadas a baixas latitudes. Ainda recentemente tivemos o privilégio de receber uma delegação de cientistas de topo da Agência Espacial Europeia, que demonstraram interesse em colaborar com a UCTM e Macau neste excitante projecto.

Quanto ao Laboratório de Referência do Estado para Investigação de Qualidade em Medicina Chinesa, está mais relacionado com a estratégia de diversificação adequada da economia de Macau. Autorizado em 2011, foi também o primeiro laboratório de referência do Estado nesta área. A ideia fundamental é usar métodos modernos para estudar porque funciona a medicina tradicional chinesa, com o objectivo de desenvolver novos fármacos e outros produtos na área da saúde, promovendo o sector da “big health”. Este laboratório é reconhecido internacionalmente pela qualidade da sua investigação – que já apareceu em algumas das publicações científicas mais prestigiadas, como a ‘Nature’ –, bem como pelo seu papel na área da medicina translacional, materializado sob a forma de patentes e novos fármacos.

Em 2021, fomos autorizados a criar o Observatório Nacional de Investigação de Ecossistemas Costeiros de Macau. Toda a área da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau enfrenta ameaças relacionadas com os impactos das alterações climáticas e a deterioração ambiental. Contudo, existem relativamente poucos dados científicos para a parte ocidental do Delta do Rio das Pérolas, pelo que uma das principais funções deste observatório é recolher dados de alta qualidade e procurar soluções para combater os efeitos das alterações climáticas.

Mais recentemente, alcançámos um outro marco – uma quarta plataforma de investigação de nível nacional, esta fora do domínio das ciências naturais e tecnologia: o Centro de Estudos de História de Macau da Academia Chinesa de História. Uma contribuição significativa do centro reside no facto de sermos responsáveis pela redacção da parte relativa a Macau no que toca à história da China em termos do conhecimento sobre o património histórico nacional.


“Continuamos a recrutar docentes altamente qualificados em todo o mundo, contribuindo de forma vigorosa para a política de internacionalização do ensino superior, da investigação e da inovação preconizada pelo Governo”

JOSEPH HUN-WEI LEE
REITOR DA UCTM

O actual plano estratégico da UCTM, relativo ao quinquénio 2021-2025, está na sua fase final de implementação. Quais as principais conquistas obtidas durante este período?

No fundo, progredimos em conjunto com Macau. Construímos capacidade institucional, criando a primeira Faculdade de Engenharia e Inovação de Macau, introduzindo novas formas de investigação interdisciplinar e novos programas académicos. Por exemplo, há quatro anos e meio, ninguém anteciparia o actual rápido desenvolvimento da inteligência artificial. Contudo, fomos pioneiros no lançamento de programas nesta área.

Na nossa estratégia, não seguimos abordagens tradicionais. O nosso foco é a interdisciplinaridade e a internacionalização. Macau precisa de traçar a sua própria direcção, para lá dos caminhos convencionais – a nossa solução é a transversalidade.

No aspecto da cooperação, ao longo dos últimos anos, temos desenvolvido uma colaboração cada vez maior entre indústria, investigação e o meio académico. Temos vários centros em diferentes áreas que são fruto da cooperação com outros institutos e organizações.

No âmbito da Grande Baía, aproveitámos muitas das oportunidades disponíveis. Criámos o MUST R&D Institute na Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin. Estabelecemos aí uma excelente base de trabalho em novos materiais e engenharia de sistemas, medicina tradicional chinesa e novos fármacos, investigação espacial, células estaminais e medicina regenerativa, sustentabilidade ambiental e artes digitais. Nos últimos anos, temos vindo a desenvolver estas áreas de forma consistente e aprofundada.

Quais os maiores desafios enfrentados pela UCTM ao longo dos seus primeiros 25 anos de existência?

Antes de mais, a UCTM é uma universidade privada sem fins lucrativos, sob a alçada da Fundação UCTM. O financiamento para a nossa investigação é primordialmente obtido através do mérito, através da participação em concursos abertos de financiamento. Dito isto, do ponto de vista de uma nova universidade, quando se começa, primeiro trabalha-se na captação e qualificação dos alunos, na construção dos programas; depois, desenvolve-se o “edifício” académico e o sistema de ensino; e, por fim, promove-se a investigação. Nos últimos 10 a 15 anos, temos apostado na área da investigação, que está agora bastante mais avançada.

Actualmente, os desafios que enfrentamos estão ligados à internacionalização. Acredito que a prioridade do Governo é a de internacionalizar tanto a investigação como o ensino superior. Porque o papel de Macau continua a ser o de uma ponte entre o Oriente e o Ocidente. Portanto, precisamos de dar um grande salto em frente, diria eu, na abertura ao mundo. Temos muito para oferecer, mas as pessoas ainda não nos conhecem. No entanto, com as políticas certas – acredito que temos as pessoas certas –, podemos traçar uma estratégia de internacionalização com características de Macau.

Por outro lado, sinto que seria benéfico ter políticas que compreendam o papel de uma universidade privada. Veja-se: algumas das melhores universidades da Coreia do Sul são privadas e o mesmo acontece nos Estados Unidos da América (EUA).

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Olhando para o futuro, até onde pode ir a UCTM?

O desenvolvimento que obtivemos nos últimos anos elevou o reconhecimento internacional em relação à UCTM e alguns dos nossos pontos fortes. Com base nisso, no futuro, iremos avançar com três iniciativas.

Em primeiro lugar, apoiaremos fortemente a diversificação adequada da economia de Macau, promovendo a integração industrial dos nossos avanços nos campos da inovação e investigação, participando em vários empreendimentos na Grande Baía e a nível nacional e utilizando efectivamente os nossos melhores talentos.

Em segundo lugar, pretendemos estabelecer parcerias com as melhores universidades do mundo, nomeadamente de Portugal e de outros países de língua portuguesa, de Espanha, do resto da Europa e de todo o mundo, para desenvolver programas académicos inovadores necessários à sociedade de Macau. Refiro-me, em especial, a programas ligados à economia aeroespacial de baixa altitude, medicina tradicional chinesa e fármacos inovadores, tecnologias de entretenimento digital e finanças digitais, por exemplo, que são altamente interdisciplinares e muito adequados a Macau.

Em terceiro lugar, continuaremos a nossa estratégia de internacionalização. Para além das nossas ligações consolidadas com os EUA e o Reino Unido, desenvolvemos nos últimos anos parcerias com países abrangidos pela iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” e outras nações, incluindo Portugal, Espanha, Eslováquia, Brasil, Paquistão, Malásia e Singapura, bem como com países africanos como a Tunísia, a Etiópia e Marrocos, entre outros.

Se chegámos até aqui partindo praticamente do zero, então temos boas razões para acreditar que podemos ter sucesso com base nesta estratégia. Há quatro anos, quando entrei para a UCTM, creio que muitos em Macau tinham dúvidas quanto ao eventual sucesso do satélite “MSS-1”. Mostrámos que era possível Macau obter bons resultados, mediante as escolhas correctas e com as pessoas certas.