É o mais conhecido escritor local da actualidade e nem o facto de não ter nascido ou crescido no território lhe rouba o estatuto de grande cronista da Macau contemporânea. Mais do que ruas, colinas e almas em trânsito, Macau é para Joe Tang uma manifestação de sentimento. Viver a cidade, argumenta o escritor, não basta. É necessário senti-la
Texto Marco Carvalho
“Macau não é um lugar. É um sentimento.” Sem nunca ter lido Agustina Bessa-Luís, Joe Tang copia-lhe as palavras e transpõe para a cidade o afecto e o fatalismo com que a escritora lusa imortalizou a irretratável e áspera beleza das ruas do Porto. Nascido em Xangai, onde passou a infância e viveu os anos formativos da juventude, o mais prolífico escritor local da actualidade encontrou na minúscula, mas labiríntica Macau um manancial, aparentemente infinito, de pequenas e grandes histórias à espera de um narrador.
Nos becos e vielas onde bate o coração da cidade, o autor de “O Assassino” e de “The Floating City”, de 52 anos, desencantou um sentido particular de pertença, que suplanta em muito a efemeridade das primeiras impressões. Para compreender verdadeiramente a cidade, Joe Tang argumenta, é necessário sentir o seu pulsar, tecer redes duradouras de afectos e deixar-se enredar pelos seus mistérios.
“Macau não é o tipo de lugar que nos fascina e que surpreende à primeira vista. Pelo contrário, é o tipo de local que temos de nos habituar a sentir para o podermos compreender plenamente”, assume. “Macau é a cidade na qual vivi, ao longo da minha vida, por mais tempo. É a cidade que me levou a contemplar a escrita com mais seriedade. É a cidade em que me sinto mais em casa? Sim, sem dúvida.”

Em Macau, as pedras têm histórias para contar, mas não há muito quem as queira ouvir. Do dom do discernimento nasce aquela que é presumivelmente a mais conhecida e a mais internacionalizada das obras de Joe Tang. Traduzido para português e para inglês há uma década, o conto “O Assassino” ficciona a morte de José Maria Ferreira do Amaral, o mais controverso dos governadores de Macau, e é fruto de um instante de arrebatamento em que a curiosidade levou a melhor sobre a monotonia dos dias.
“O mote para o livro foi dado pela pedra que está no local onde, supostamente, Amaral foi morto. Eu estudava numa escola ali perto e um dia, ao passar por aquela zona, percebi que não se tratava de uma pedra como as outras. Na altura, não havia ainda uma vedação no local. Podíamos tocar na pedra, sentir a sua textura. Vi o brasão de Portugal cravado na laje e fiquei bastante intrigado. Com tantas pedras espalhadas por Macau, porque é que esta pedra em concreto ostentava aquela coroa?”, questionou nessa altura.
Inofensiva, a interrogação realinhou o jovem Joe Tang com a paixão da escrita e com uma causa que se tornou desde então uma obsessão: o resgate de vozes e narrativas que o fluir do tempo condenou à invisibilidade. Localizada no início do Istmo Ferreira do Amaral, com a frente virada para a Ilha Verde, a laje é um modesto testemunho numa área que fervilha em história. O templo de Lin Fong, ali ao lado, serviu de inspiração a Joe Tang para “The Curse of the Lost City”, o seu mais recente romance.
“É um local verdadeiramente fascinante, antes de mais porque permanece quase na mesma. Praticamente não mudou desde que o vice-rei Lin Zexu ali se encontrou com José Baptista de Miranda e Lima, num pequeno pavilhão que ainda hoje existe nas instalações do templo”, explica o escritor. “Quando escrevi a história, fui algumas vezes ao templo e tentei imaginar como seria aquele local quando Lin Zexu visitou Macau e a conclusão a que cheguei é que visitar o templo de Lin Fong é, de certo modo, viajar no tempo: tudo se manteve praticamente igual”, sustenta.

As igrejas e os templos, considera Joe Tang, são páginas que se abrem para o passado de Macau e referências incontornáveis no intrincado portulano de betão e de ferro em que a península se transformou, mas a essência de Macau está menos nas pedras do que nas pessoas. A tessitura humana da cidade, a forma como quem cá mora se relaciona com os outros e com o próprio espaço urbano são factores essenciais e é neles que radica, em parte, a singularidade do território.
“Nasci em Xangai e estudei em Londres. Macau é, em termos comparativos, uma cidade pequena, mas se há algo de que me fui apercebendo é que, mesmo em cidades como Londres e Xangai, vivemos o mais das vezes integrados em pequenas comunidades. Essa perspectiva de ser parte de uma pequena comunidade é algo que me agrada. A ideia de comunidade é muito importante para mim”, sublinha o escritor.
Em nenhum lugar o pulso da comunidade se faz mais palpável do que no emaranhado de ruas, becos e vielas que rasgam o miolo da cidade, de São Lourenço ao Patane, e é lá que Joe Tang leva, com frequência, amigos e visitantes, à descoberta da verdadeira alma de Macau. “Quando alguém me pergunta o que deve visitar quando vem a Macau, o que lhe digo é que Macau não é o tipo de sítio que o vai surpreender à primeira vista. Para se apreciar Macau, é necessário sentir Macau. O que faço, por vezes, é sugerir que vagueiem sem rumo pela cidade, que se embrenhem nas ruas e nas vielas, por pequenos locais recônditos. É aí que encontram a verdadeira Macau”, defende.
“Ando há algum tempo a trabalhar num romance centrado na zona do Patane, onde está um dos templos mais antigos do território. Durante a primeira metade do século XIX, tudo o que acontecia em Macau era no Patane que acontecia”, acrescenta.

A valorização da ideia de comunidade, insiste Joe Tang, oferece a Macau um raro sentido de coesão e até, porventura, de identidade. Quando essa percepção desaparece, Macau transforma-se, deixa de ser. O Cotai, diz o autor, é disso o exemplo acabado. Em nenhum outro lugar o contraste entre a singularidade histórica do território e a inconsequência da monumentalidade é tão flagrante e pronunciado. “É, sem dúvida, parte da cidade, mas não encontramos o tecido comunitário que encontramos no resto de Macau. Tudo o que temos são hotéis e espaços de lazer que cumprem com evidente sucesso aquilo para que foram concebidos: vender um certo estilo de vida”, salienta o escritor.
“É, no entanto, parte de Macau. Se lá está, está por uma razão. Se olharmos com realismo para o território, percebemos que o Cotai é o motor que mantém a cidade em andamento. Todos queremos, é claro, que este motor seja colocado na direcção mais adequada, para que as pessoas de Macau possam, eventualmente, usufruir de uma melhor qualidade de vida”, anui Joe Tang.
A dissemelhança entre o que uma e outra parte têm a oferecer acrescenta uma dimensão renovada ao vasto rol de dicotomias que, ao longo dos séculos, ajudaram a edificar a pluralidade de Macau. Se a península contempla o passado, o Cotai parece indicar o futuro, mesmo nas perspectivas que inspira. “Macau é como se fosse uma novela tradicional. O Cotai, por sua vez, parece algo saído de uma obra de literatura fantástica ou de ficção científica. É difícil encontrar em toda a China um local que se compare”, argumenta. “Estou a escrever uma história de ficção científica que tem por base esse cenário”, revela.
Em Macau, bênçãos e maldições são faces inequívocas de uma mesma moeda, ao ponto de a dimensão da cidade ser uma das suas maiores riquezas. O essencial está ao alcance da mão e a expectativa, imaginada e cumprida, de um caldeirão de culturas que fervilha em perfeita sintonia torna-se palpável a cada esquina, em breves, mas estimulantes caminhadas que permitem ao visitante abraçar, com plenitude, a essência e a singularidade de Macau.
O prolongado convívio de culturas que ao longo de mais de quatro séculos fizeram do território um lugar de excepção é evidente por toda a cidade, mas é explícito e inequívoco no percurso que separa o Bairro da Horta da Mitra do Mercado Vermelho. O trajecto, com paragens no Tap Seac, na Rotunda de Carlos da Maia (Três Candeeiros) e na Avenida de Horta e Costa, oferece como que um instantâneo da alma de Macau, um esboço preciso do que de mais genuíno e inigualável Macau tem para oferecer.
“Se traçarmos uma linha a partir da Praça do Tap Seac e nos deslocarmos até à Rotunda de Carlos da Maia e até ao Mercado Vermelho, encapsulamos a essência de Macau numa única caminhada. O Mercado Vermelho é um espaço muito característico e a zona dos Três Candeeiros é o tipo de local onde a vida acontece, onde bate o coração da cidade. O Tap Seac, por sua vez, tem um ambiente marcadamente europeu, muito diferente das zonas que o rodeiam”, denota Joe Tang.
“Se seguirmos em sentido contrário e caminharmos até ao Bairro da Horta da Mitra, encontramos uma zona muito compacta, mas com características muito próprias de Macau e uma vivência comunitária muito forte: as pessoas fazem as compras no mercado, conhecem-se e falam entre si. É um dos locais onde melhor se sente a autenticidade de Macau. Poder abraçar locais tão distintos numa breve caminhada é algo único e excepcional”, remata o escritor.