Dualidade, cruzamento e convergência. No sangue – mas também no modo de ser e de estar – de Victor Hugo Marreiros há dois mundos em colisão harmoniosa, feitios dos quais jorra um estilo ímpar no panorama artístico e criativo de Macau. Designer gráfico, artista, cenógrafo, pintor e agora também galerista, fez do diálogo transcultural, da liberdade criativa e da exigência estética os pilares de uma identidade visual singular
Texto Marco Carvalho
Nascido em Macau em 1960, filho de pai algarvio e mãe macaense, o mais novo dos irmãos Marreiros elevou o diálogo entre Oriente e Ocidente a um festim pictórico onde o humor, a liberdade criativa e um espírito crítico aguçado se misturam com natural afinidade com os fundamentos estéticos e cénicos da arte oriental.
Nas obras que cria, reconhece Victor Hugo Marreiros, há temas e ingredientes visuais mais recorrentes, mas as características fundamentais da sua maneira de estar nos meandros da criação são bem mais subtis e intangíveis.
“Os meus ingredientes, e isto foi dito sobre mim por outras pessoas, são o diálogo entre o Ocidente e o Oriente e a confluência da arte medieval, antiga e clássica com estilos mais modernos. Estes são os meus ingredientes fundamentais. Já houve um colega meu, chinês, que disse que eu tenho uma fidelização ocidental, mas um equilíbrio oriental”, assume o artista.
“Eu próprio fiquei abismado com esta análise. As minhas imagens são muito centralizadas. Na pintura chinesa, às vezes o carimbo serve para equilibrar zonas pintadas e zonas deixadas em branco. Isso é algo que faço inúmeras vezes, automaticamente, com logos e com letrinhas. Os ingredientes são estes, mas não faço questão que assim seja. É uma forma, um processo natural, que reflecte quem eu sou”, acrescenta.
Com uma carreira de mais de quatro décadas e meia dedicada à criação visual, Victor Hugo Marreiros é, antes de qualquer outra coisa, um espírito livre que navega com irrefutável conforto entre dois mundos – o da ousadia lusitana e o da sensibilidade chinesa –, mas também entre as múltiplas dimensões estéticas do processo criativo. Inconfundível, a identidade artística que forjou é reflexo da fusão de culturas, mas também o diluir das fronteiras e das convenções entre a arte e o design gráfico.
“Eu costumo dizer que o design paga os meus prazeres e a minha vida, mas a arte alimenta a minha alma. Durante os anos que estive no Instituto Cultural, primeiro como gráfico e depois como chefia, houve todo um trabalho ao nível das actividades culturais, como o Festival de Música e o Festival de Artes, que ajudaram a mudar a imagem gráfica de Macau”, sustenta. E acrescenta: “Ao longo do tempo, essa imagem vai mudando, vai-se alterando. Ainda assim, acho que, a determinada altura, o Instituto Cultural ajudou a dotar Macau de uma imagem gráfica, cultural e artística inequívoca.”
Segundo o artista, a luta – “no bom sentido” – foi “imensa”, para que “essa linha se afirmasse”. E o que tem essa linha de diferente? “É uma linha graficamente a saltar para a arte, que reflecte a minha forma de estar na vida. Para ser verdadeiro e fiel a mim mesmo, sempre acreditei que devia harmonizar pintura e design e design com arte; e só foi possível também porque tive a preciosa colaboração dos meus colegas designers”, assume o director artístico do atelier “Victor Hugo Design”, espaço onde agora cria com mais tempo do que nunca.
De pequenino se pinta o destino
Original e inconfundível, a identidade visual e artística que Victor Hugo Marreiros desenvolveu é, tal como Macau, o resultado do entroncamento de confluências culturais, mas também de uma vivência desde cedo norteada pela reverência da beleza e pelo culto da arte. Admirador confesso da pintura de Júlio Pomar – de quem admira o estilo, mas também a liberdade criativa –, o designer, pintor e cenógrafo encontrou no seio da família as primeiras e mais duradouras referências.
Com o avô materno, José Maria de Jesus dos Santos – que cultivava flores com a dedicação de quem semeia poemas –, aprendeu a valorizar a avassaladora formosura dos pequenos gestos. Ao querer desenhar como o irmão – o arquitecto e artista plástico Carlos Marreiros –, fez do vício da criação um hábito quase quotidiano.

“O design paga os meus prazeres e a minha vida, mas a arte alimenta a minha alma“
VICTOR HUGO MARREIROS
“Cresci a admirar duas pessoas. O meu avô materno não tinha grande mão para o desenho, mas desenhava muito bem flores. Gostava de jardins e de jardinagem e desenhava flores com grande perfeição. Parecia uma criança a desenhar pessoas, às quais colocava cabeças com a forma de corações, mas, as flores, desenhava-as com todo o pormenor”, recorda Victor Hugo Marreiros. “A outra pessoa é o meu irmão Carlos. É três anos mais velho do que eu, já corria à minha frente e sempre desenhou bem. Eu, como era mais novo, também queria desenhar como ele, o que já fazia desde tenra idade”, acrescenta.
Subliminar, a predisposição pueril para as artes dá lugar, no final da adolescência, à opção consciente de fazer da criação artística um modo de vida. Victor Hugo Marreiros inicia o percurso profissional naquele que era, nas décadas de 1970 e 1980, o mais relevante museu de Macau, uma escolha que não foi fortuita, nem inócua. “Comecei a trabalhar no Museu Luís de Camões, ainda em período de férias. Depois, concorri para lá como fotógrafo. Fiquei lá quatro anos, no que foi, para mim, uma oportunidade. Não concorri para lá por acaso. O meu interesse não era tanto o de ser fotógrafo, mas sim o de aprender com o então curador, António Conceição Júnior, que eu considero o pai do design contemporâneo de Macau”, explica.
“Quando a TDM começou a emitir, em 1984, tive a oportunidade de dar o primeiro salto na carreira. Entrei na TDM através de concurso, como designer, desempenhei funções como cenógrafo e quando saí era responsável pelo tratamento visual”, recorda. “Na televisão, tive outro mestre – muito humilde, discreto, mas com imenso valor humano e profissional –, que merecia ser mais conhecido: o arquitecto e produtor João Nuno Nogueira”, afirma.
Ao fim de cinco anos, troca a empresa pública de teledifusão pelo Instituto Cultural, organismo a que esteve ligado durante um quarto de século. Foi chefe do Sector Gráfico e director gráfico da “Revista de Cultura”, projecto que ajudou a amadurecer e a depurar a linguagem estética, pautada por um diálogo constante entre referências orientais e ocidentais, que faz de Victor Hugo Marreiros uma referência incontornável do panorama artístico de Macau.
“Graficamente, a Revista de Cultura sempre foi uma das melhores do mundo lusófono, com um conteúdo muito rico e bons artigos. É uma das concretizações culturais de que muito me orgulho”, assume o designer gráfico.
O jeito que Camões dá
A “Revista de Cultura” é um dos principais legados da passagem de Victor Hugo Marreiros pelo Instituto Cultural, mas não é o único. É com o organismo que nasce, em 1990, a iniciativa, hoje transformada num ritual anual, de assinalar o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas com um cartaz alusivo ao simbolismo da data.
A forma como aborda a iconografia da portugalidade e da identidade macaense, aliada à sensibilidade com que combina elementos visuais e narrativos de forma poética e simbólica, granjearam-lhe grande visibilidade e reconhecimento. Os cartazes, verdadeiros tratados de poesia gráfica, abriram-lhe as portas, já este ano, a uma nova exposição em Portugal, a primeira a título individual.
“Estamos a celebrar os 500 anos do nascimento de Luís de Camões e um amigo meu, o designer Henrique Silva, desafiou-me a isolar o Camões e a fazer dele o protagonista único desta exposição. Como gosto de desafios, aceitei o repto”, esclarece.
“Com todo o respeito que a data me merece, eu costumo dizer que o cartaz do 10 de Junho é, ao mesmo tempo, uma brincadeira e uma preocupação. Consoante os anos, eu coloco no cartaz preocupações locais, internacionais, da comunidade portuguesa ou mesmo as minhas. A minha companheira diz que eu, por vezes, uso o Camões para afirmar coisas que eu próprio quero dizer”, adianta o artista macaense. “Seja como for, através dos cartazes é possível ver a diferença dos anos, do meu estilo, do meu andar e das minhas influências, sejam elas directas ou indirectas”, admite.

Exibida em Lisboa, entre 25 de Julho e 30 de Agosto, a mostra “Camões Cinco Zero Zero” deverá chegar brevemente a Macau pela mão do Instituto Português do Oriente (IPOR), mas não é necessário esperar pela inauguração do certame para descobrir – ou redescobrir – a obra de Victor Hugo Marreiros. Alguns dos seus trabalhos estão permanentemente expostos na Galeria Amagao e, até 26 de Janeiro próximo, a Galeria Articulate, na Torre de Macau, acolhe a exposição “Coffee Tea”, mostra que propõe uma viagem íntima e muito pessoal pelas idiossincrasias da identidade macaense. Também inúmeras obras do artista podem ser apreciadas em Macau no restaurante Eight Square do Hotel MGM, bem como em Taiwan no restaurante TUGA.
Apesar de garantir que não trabalha para exposições, o artista – que abriu mão do ofício de designer gráfico a tempo inteiro – tem em mãos três novos projectos: “Tenho convite para mais três exposições: uma em Xangai, que duvido que se concretize, até porque não é um projecto fácil. Tenho outra exposição apalavrada para 2027, na Taipa, e uma outra mais além, em 2029. Esta última não é como criativo, como pintor ou como artista. É uma retrospectiva do meu trabalho enquanto designer gráfico. A mostra está em projecto, mas pode concretizar-se ou não”, explica.
“Vivo como artista. É a minha forma de estar na vida. Gosto do que faço e é exactamente por gostar daquilo que faço que dou, por vezes, por mim a pensar que nunca tive de trabalhar um único dia da minha vida”, remata Victor Hugo Marreiros.



