Jurista sem fronteiras

Foi longo o seu percurso até Rui Cunha atingir o estatuto de que hoje goza em Macau: advogado de sucesso e influente no império de Stanley Ho. O menino de Damão fez-se jovem em Goa e descobriu a maturidade na magistratura exercida nos quatro cantos do mundo lusófono

 

 

 

 

No início de 1981, um telefonema mudou para sempre a vida de Rui Cunha, hoje um dos mais conceituados e influentes advogados de Macau, então um juiz que fizera 16 anos da sua carreira como magistrado um pouco por todo o mundo que fala português. Um amigo, empresário de Timor-Leste que passava por Lisboa, a caminho de Angola, falara-lhe dois dias antes, pela primeira vez, num assunto que o deixara praticamente indiferente. À mesa de um restaurante em Lisboa, Rui Cunha ficou a saber que Stanley Ho, que já era e continuou, até 2002, a ser o único dono de casinos em Macau, precisava com urgência de um assessor jurídico. O amigo que com ele comia era também muito próximo do magnata de Macau.

Dois dias depois, dormia profundamente quando, às quatro da manhã, o telefone tocava. Era o seu amigo e, pela hora, só podia estar a ligar de Macau. Quando deu por si, estava, pela primeira vez, a falar com Stanley Ho. Meses depois, viu-se em Macau. Para iniciar aos 40 anos de idade a segunda fase da sua vida, que começara em Bombaim, em 1941.

Portugal umbilical

 

O mundo estava em plena II Grande Guerra e, em Damão, onde vivia a sua família há pelo menos três gerações, não havia hospitais. Foi, para nascer, a única vez que saiu das “Índias Portuguesas” até se mudar para Lisboa, em 1958. A sua infância caracteriza-a como normal, profundamente marcada pela cultura lusitana, na medida em que os pais e avós faziam questão de viver segundo a tradição e costumes de Portugal. Ajudava, claro, o facto de o seu pai ser correspondente de um jornal de Portugal, o Diário Popular, e de, por isso, haver um canal privilegiado para receber com relativa actualidade tudo o que de novo se passava na “República”. Bisneto de advogado e filho de solicitador, cedo percebeu que havia, de facto, uma certa propensão para o Direito. O sonho do pai, que fez questão de cumprir mesmo quando, muitos anos mais tarde, já em Lisboa, a tentação era o cinema e a televisão, era que se licenciasse em Direito e das leis fizesse a vida.
Cresceu a ouvir fado, a ir à escola e a cumprir, “escrupulosamente”, a ida diária à missa na Igreja que ficava mesmo em frente à casa da família. Terminado o ensino básico, Rui Cunha tem, porém, que se mudar para Goa. A vida em Goa, apesar das carências do pós-guerra e da adaptação a uma outra língua de rua, era fácil. Aproveitou para ler a literatura portuguesa e preparar com ainda mais consistência o que há muito estava decidido. O pai, que entretanto falecera em 1956, deixou bem vivo o desejo de que o filho fosse para Lisboa estudar, mal acabasse o liceu. Em Goa, a presença portuguesa era ainda mais forte e, hoje, Rui Cunha tem a certeza de que “a ida para aquela cidade foi o gatilho da ligação a Portugal, aos portugueses e ao mundo português.” Foi lá, por exemplo, que viu pela primeira vez o Leão da Estrela, conhecido filme de sucesso. Tal como foi em Goa que ganhou afinidade à rádio, tendo mesmo participado em programas da emissora local relacionados com o campeonato de futebol em Portugal.
Os valores que depois o conduziram na vida adulta foram assimilados em Goa, onde partilhava sentimentos ligados à portugalidade. Estava em Goa em 1954 quando a União Indiana fez a primeira tentativa de anexação. “Foram momentos de muita tensão, algum desconhecimento sobre o futuro, até percebermos que, naquela altura, eles não estavam, de facto, preparados, pois não tinham tropas suficientes para fazer frente a um contingente português que, entretanto, fora também ele reforçado.” Mas era uma questão de tempo. A vinda desses novos europeus potenciou ainda mais o contacto com a portugalidade. No fundo, admite hoje, “incentivou ainda mais a minha família a empurrar-me para Lisboa.”
Até terminar o liceu foi construindo uma imagem de Lisboa e de Portugal segundo o que via nos filmes, ouvia na Emissora de Goa ou na Emissora Nacional e escutava a quem trazia relatos frescos. “A nossa ida para Lisboa demorou 36 horas. Uma compridíssima viagem de avião, com partida de Goa, passagem por Carachi, Beirute, Malta e chegada a Lisboa.” Era Setembro de 1958 e Rui Cunha chegava a Lisboa antes das aulas começarem. Saíra da estação quente e chuvosa de Goa e entrara no Outono de Lisboa. “O primeiro choque foi o frio, impressionava-me o facto de termos de vestir muita roupa para sair à rua.” Alugou um quarto com a irmã, que também havia vindo com ele mas para estudar geografia.

Entregue a si próprio

 

A vida académica e social corria, então, sem sobressaltos dignos de registo. Estar entregue a si próprio era o único problema que afligia tanto Rui Cunha como todos os portugueses ultramarinos que, em casa, viviam com a família num ambiente restrito e normalmente recatado. Ali era a metrópole, onde “ninguém se preocupava connosco.”
Foi em plena universidade que se deu a anexação de Goa, Damão e Diu pela União Indiana. Foi também nessa situação que deixou de poder receber dinheiro enviado pela família, o que o obrigou a procurar um meio de subsistência, o seu primeiro trabalho. “Um trabalho que me marcou profundamente, embora o tivesse feito por apenas um mês, tal o grau de insatisfação que senti.” Rui Cunha era o homem que registava as entradas de correspondência dum serviço de segurança social, ali ficando confinado horas a fio numa sala escura, à frente de um livro enorme, a escrever meros registos de proveniência e destinatário. “Se continuasse naquilo dava em doido e, naturalmente, desisti.” No entanto, a experiência e a dureza psicológica do trabalho fizeram com que aprendesse e passasse a “respeitar todos os que trabalham, independentemente da aparente irrelevância da função que desempenham.”
O terceiro ano da faculdade traz-lhe, porém, uma experiência traumática. Como era seu hábito, dedicava-se intensamente ao estudo e a uma paixão nova, o badminton, que jogava a um ritmo profissional no campeonato nacional, representando a Faculdade de Direito. Fazia um esforço imenso para compatibilizar as duas actividades com o objectivo de, nas férias de Verão, poder ir de consciência tranquila – leia-se, sem cadeiras em atraso – a Goa, visitar a família pela primeira vez desde que saíra de casa. O esforço foi tal que um dia, depois de, nos últimos tempos, se sentir estranhamente cansado e até febril, decide ir ao médico da universidade. O diagnóstico foi cruel: tinha metade de um pulmão cheio de água. A receita ainda pior: descanso absoluto e proibição total de tocar num livro. Sob pena de consequências nefastas. Rui Cunha entrou em depressão: “Foi uma machadada de todo o tamanho, parecia que o mundo tinha desabado em cima de mim. Não ia fazer as cadeiras nem poderia ir a Goa.” Resultado, perdeu o ano embora tenha conseguido fazer duas cadeiras.

O “bicho”da magistratura

 

Estamos em 1961 e o movimento armado pela libertação de Angola ganha de repente uma dinâmica que em pouco tempo degenera na Guerra Colonial, alastrando-se a outras colónias africanas. Como há males que vêm por bem, Rui Cunha, por força da doença, foi o único dos que naquele dia de Agosto foram à inspecção militar e se safou de ir imediatamente para o teatro de guerra. Tinha então 21 anos, 1, 90 metros e pouco mais do que 50 quilos. Recuperou psicológica e fisicamente, resolvendo-se a atacar, pela segunda vez, o terceiro ano da faculdade.
Aproveitou a disponibilidade e entrou para um curso de fotografia e cinema. A paixão pela imagem foi tal que agora levava tão a sério este curso como o de Direito e conseguiu um lugar na então jovem RTP, como assistente de realização. A televisão ocupava-lhe a noite, os estudos o dia. “Aquilo passou de uma simples ocupação para uma séria paixão, mas continuei a estudar até que, à entrada para o quinto ano de Direito, nova encruzilhada surge na minha vida.”
A sua envolvência com a RTP ganhara dimensões inesperadas, fazendo parte da equipa do realizador Fernando Frazão, a estrela em ascensão que fazia tudo o que era directo importante e comandava as emissões das estrelas da altura. O seu profissionalismo era tão reconhecido que lhe foi oferecida uma bolsa da Gulbenkian para terminar o curso de realização de cinema, em Paris. Pesou na altura a sua faceta “conservadora e cautelosa” e optou antes pela universidade, embora tenha ficado mais um ano na RTP.
Acaba o curso em 1964 e nem sequer lhe passa pela cabeça enveredar pela advocacia. Concorre para a magistratura e é colocado como sub-delegado do Procurador da República na Boa Hora, em Lisboa. Está em estágio e é ali que, lembra, “descubro um mundo completamente diferente do apreendido na universidade, sinto logo um bicho que me prende aos tribunais, que me faz dependente da vivência diária nos tribunais.”
Não perde muito tempo e candidata-se a delegado do Procurador. É colocado na Lourinhã. O mundo estudantil fervilhava então de actividade política, mas Rui Cunha, “embora acompanhasse os movimentos estudantis de 1962, em Lisboa”, nunca esteve ligado a nenhum activismo. Desde que assumiu as funções de magistrado e porque entendia ser essa “uma qualidade essencial”, fazia questão de, em nome da Justiça, pautar a sua postura profissional e pessoal por uma independência total, “designadamente do poder político”.
Segue a vontade do pai e resolve tornar-se juiz, objectivo que o leva a continuar como delegado por meia dúzia de anos, a fim de ganhar experiência nos tribunais. Podia optar pela carreira no então “Ultramar” português. E foi o que fez. Concorreu para Moçambique e foi colocado como delegado da Procuradoria da República na comarca de Inhambane, 500 quilómetros a norte da então Lourenço Marques, hoje Maputo. Corria o ano de 1966 e também Moçambique já mergulhara na Guerra. A família estava nessa altura em África – uma das suas irmãs estava em Maputo e a outra mudara-se para São Tomé -, e as ligações à Índia esmoreciam. Venderam os bens em Damão e também a mãe foi viver para Moçambique. À Índia só voltaria em 1982, 25 anos depois de rumar de Goa para Lisboa.

Geração especial

 

Hoje considera-se parte de “uma geração que fechou um longo capítulo da história portuguesa. A que saiu da Índia Portuguesa pouco antes da anexação, assistiu à independência de Angola e Moçambique, trabalhou em Timor-Leste e, finalmente, acompanhou, emocionado, a transferência de Macau para a China, assim ajudando a virar mais esta página da História.” Em Inhambane, sublinha, ganhou a noção de que “a Justiça tem de ser rápida, consciente, segura e contextualizada.”
As vicissitudes de ter querido fazer uma carreira de magistrado no antigo Ultramar português colocam-no em Timor-Leste entre 1969 e 1971, como delegado do Procurador para toda a colónia. Foi a caminho de Díli que passou pela primeira vez em Macau. É em Timor-Leste, para onde fora com a mãe, que casa por procuração com a mulher que conhecera em Portugal e estava já em Moçambique. Em Timor-Leste enfrenta inicialmente um “choque”, pois tudo lhe parecia estar “do outro lado do mundo” Aí apercebe-se do que é a insularidade: “Cimentei muito a personalidade e, como todos os que lá estavam, apostei como nunca na forte convivência pessoal.” E, reza a história, operou uma revolução no sistema prisional. Deu também um exemplo, ainda hoje recordado numa recente visita a Timor-Leste, de como a Justiça, se praticada por homens bons, pode ser independente do poder político, qualquer que seja tipo de regime”. Preparou e promoveu a condenação, pela primeira vez na história daquela antiga colónia portuguesa, de um administrador de Concelho, oriundo da República, e acusado de abuso de poder.
Apesar de saber há muito tempo saber que esse seria o seu destino, só em Timor-Leste é que, de facto, faz o concurso para juiz. Fica em primeiro lugar no concurso para todo o então Ultramar. E pode escolher para onde quer ir. Escolhe Angola, Moçâmedes, no sul, cidade fronteira com a Namíbia. É aí que de se dá o regresso a África, instalando-se como juiz dessa comarca em Março de 1971. Está em Moçâmedes dois anos até ser colocado em Luanda, para substituir um “brilhante magistrado, Dr. Rodrigo Leal de Carvalho, bem conhecido em Macau.” Foi juiz na capital angolana até à independência do País, e por lá teria continuado se, num dia de Julho de 1975, enquanto jantava com a família, uma granada não tivesse caído a cerca de 50 metros da sua casa. Antes de se prepararem – já tinha dois filhos – para dormir protegidos por uma mesa decidiram que, no dia seguinte, começariam a fazer as malas para abandonar Angola.

Opções decisivas

 

Como milhares de outros portugueses, fez uma viagem preparada à pressa para deixar um país que escolhera para passar o resto da vida. O bilhete que levava no bolso dizia muito da sua vontade de regressar a Lisboa. Comprado em Luanda, era um bilhete com o seguinte trajecto: Luanda, Lisboa, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Recife, Lisboa. Rui Cunha ia, isso sim, fazer uma viagem de prospecção.
Na passagem por Lisboa sente-se, novamente, um privilegiado. É imediatamente colocado como juiz em Mafra. Integrado no quadro de magistrados de Portugal, do qual ainda hoje faz parte, embora com licença ilimitada. “Acabara ali uma vida de saltimbanco, que culminara com noites a fio no cais de Luanda para poder assegurar que tudo o que tínhamos ia, de facto, para Portugal”.
Esteve apenas um ano em Mafra, sendo depois colocado como juiz auditor do 40 Tribunal Militar de Lisboa. Vivia-se em Portugal o Processo Revolucinário em Curso (PREC) e, com a sua “habitual serenidade e serenidade”, Rui Cunha julgou dezenas de processos em que participaram figuras como Spínola, Otelo, Costa Gomes e muitos outros protagonistas do 25 de Abril.
Foi também o juiz do mega-processo da rede bombista, onde dezenas de pessoas ligadas a atentados foram condenadas por associação criminosa, responsável por vários crimes, entre os quais o assassínio do padre Max. A leitura da sentença foi feita no dia 31 de Agosto de 1981 e demorou quatro horas, mas Rui Cunha já estava de malas feitas para um novo rumo profissional, uma nova experiência que não sabia no que iria resultar. “Mas era altura de mudar, tal era o desencanto duma Magistratura onde já não me revia com o idealismo que sempre me acompanhou”.
Poucos meses antes Rui Cunha tinha encontrado o tal amigo de Timor-Leste, de passagem por Lisboa, a caminho de Luanda, que lhe dissera que Stanley Ho precisava de um consultor jurídico.

 

Pioneiro da advocacia lusófona

 

O escritório de advogados C&C é hoje um dos mais importantes de Macau, na medida em que funciona com uma dinâmica de firma de advocacia, embora esse estatuto ainda não seja permitido por lei na RAEM. Rui Cunha, que em 1996 se associou ao também advogado António Correia, chegou a Macau em 1981 para trabalhar como consultor jurídico da STDM, liderada ainda hoje por Stanley Ho. Um ano depois, já integrado na estrutura da então concessionária de jogo, iniciava uma carreira paralela de advogado, à qual demorou algum tempo a adaptar-se, dado ter passado toda a sua vida profissional do outro lado da sala de audiências, como juiz.

Chegou a Macau praticamente sem bagagem, afinal vinha só por um ano. Hoje está à frente de um escritório que não só é o principal apoio jurídico da STDM e da sua Sociedade de Jogos de Macau, como é também, fruto do pioneirismo de Rui Cunha nesta matéria, o primeiro escritório de advogados da RAEM integrado naquilo a que se pode chamar uma rede de advocacia para servir tanto a lusofonia como a relação dos países que falam português com a República Popular da China.

Com uma equipa de 16 licenciados e um total de mais de 40 pessoas a exercer actividade no escritório, a C&C mantém desde há alguns anos contactos fortes com escritórios de advogados em Portugal, China, Hong Kong e, por via de uma associação feita a partir de Lisboa, com Angola e Brasil. O objectivo é potenciar os contactos e dinamizar a rede de negócios que tanto a China como os países lusófonos prentendem criar, e que em 2003 foi materializada com a criação do Fórum de Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa.

Ao mesmo tempo que ia participando em praticamente todos os movimentos que permitiram a modernização de Macau – através da sua relação íntima com a STDM, da qual ainda hoje é secretário-geral, cargo em que substituiu o falecido comendador Morais Alves em 2003 – Rui Cunha construía este seu sonho. Hoje não tem dúvidas de que “os escritórios de advogados acabam por seguir os relacionamentos económicos” e, por isso, considera que Macau está, de facto, “preparado para servir de plataforma para o relacionamento entre a China e os países lusófonos.” Isto porque, sublinha, “aqui tanto se sente em casa quem fala e come à portuguesa como quem fala e come à chinesa.”

A C&C, diz Cunha, “encarna perfeitamente o papel de empresa que dotou Macau de uma estrutura diferente de prestação de serviços”. A mesma estrutura que a China parece desejar que aqui nasça para servir o desígnio de intensificar as relações com o mundo lusófono.