Zheng He o explorador chinês

Há seis séculos fez-se ao mar uma das maiores armadas alguma vez construídas. Ao comando de mais de 28 mil homens, 250 navios e 100 mil toneladas de mercadorias seguia Zheng He, “O Almirante”, cujas aventuras marítimas marcam um episódio único no Império do Meio

Quase um século antes da descoberta do caminho marítimo para a Índia, por Vasco da Gama, e de Pedro Álvares Cabral ter chegado ao Brasil, Zheng He, um eunuco imperial, dava inicio à aventura oceânica chinesa. Ao longo de sete memoráveis expedições marítimas, entre 1405 e 1433, aquele explorador articulou toda uma diplomacia económica que estendeu a influência da Dinastia Ming do Índico ao Pacífico, desde Pequim até à costa oriental de África. “O Almirante”, denominação que ficou para a História, não só recolheu a vassalagem e tributo de suseranos e criou uma extensa rede de escoamento dos mais apreciados produtos chineses – porcelana e a seda, por exemplo – como ainda difundiu a tecnologia náutica da época. No regresso das suas viagens, maravilhava a corte trazendo novidades como a primeira girafa que o Império avistou.
Contudo, escassos registos dos feitos de Zheng He, ou do que hoje se denomina por período dos descobrimentos chineses, sobreviveram até aos nossos dias, fazendo deste um dos episódios mais polémicos e menos conhecidos do Império do Meio. Aliás, só agora, 600 anos mais tarde, o nome de Zheng He começa a ser reconhecido, tanto dentro como fora da China, que no ano passado promoveu o primeiro programa de comemorações da partida da primeira armada do “Almirante” – lançado a 11 de Junho – fazendo coincidir a data com as celebrações do Dia do Mar.
De acordo com o grupo mais consensual dos académicos chineses, os motivos que terão levado a “afundar” um dos apogeus do Império prendem-se com as próprias origens e motivações dos descobrimentos chineses. A aventura oceânica foi fruto da visão de um suserano que, tendo tomado o trono pela via das armas, abandonou o modelo económico tradicional chinês, assente no isolamento e na auto-subsistência agrícola, pelo qual a China se pautara ao longo do seu percurso civilizacional. A mudança – neste caso particular, uma verdadeira “revolução comercial” – ainda que encetada pelo Trono do Dragão, contradizia uma postura tradicionalmente confucionista, onde imperavam a virtude, a ordem e a estabilidade social na qual cada indivíduo construía o bem comum. Importantes historiadores chineses descrevem a época como o nascimento de um “capitalismo incipiente”.

Diplomacia económica

O estudo dos poucos documentos históricos que sobrevivem, como os “Anais Verídicos da Dinastia Ming” ou a estela (pedra erguida para marcar o desembarque) trilingue que Zheng He deixou no Sri Lanka, levam os historiadores a crer que o mote inicial das expedições terá sido a validação do trono imperial. Zhu Di, ou Yongle, como também era conhecido, tornou-se o terceiro imperador da Dinastia Ming em 1402, na sequência de uma sangrenta rebelião contra o seu sobrinho, Jianwen, legítimo herdeiro do trono. A fragilidade da ascensão terá incitado o imperador a legitimar a sua ocupação do trono, no interior do país, junto de outras nações e na diáspora chinesa, bem como aos olhos dos seus antepassados e do “Reino dos Céus”. Depois de garantir a retirada das hostes mongóis, para Norte, o visionário imperador desencadeou um monumental projecto de obras públicas: reconstruiu o Grande Canal, revitalizando o comércio entre os extremos ricos do país; transferiu a capital de Nanquim para Pequim, onde construiu a Cidade Proibida; recuperou e estendeu a Grande Muralha… Para financiar a reconstrução do país, destroçado por décadas de guerras, recuperou a lucrativa rota da seda, à época controlada pelos mongóis. Cercado por terra, Zhu Di investe no mar, construindo uma monumental armada, comparável à frota nipónica do Pacífico, durante a II Grande Guerra Mundial.
A 11 de Junho de 1405, a armada comandada pelo almirante Zheng He faz-se ao mar tendo como principal missão a captura de Jinawen. Todavia, teria já projectado a conquista de rotas comerciais, bem como o estabelecimento de uma vasta rede de tributários que, pela primeira e única vez na História, incluiu a vassalagem do Japão, com quem as trocas comerciais aumentaram exponencialmente. No seu apogeu, esta estratégia rendeu à China o tributo de mais de 30 soberanos ao longo de todo o Sudeste Asiático, estendendo a sua presença até à costa oriental de África. Por um lado, prestar vassalagem ao Império do Meio era minimizar as probabilidades de uma investida por parte da sua poderosa armada; por outro, cair nas boas graças do imperador poderia garantir que os barcos do tesouro fariam ali escala no percurso das suas expedições, com todas as vantagens comerciais daí decorrentes.

Justiça histórica

Na proa das expedições chinesas perfilava-se Zheng He, “O Almirante”. Natural da província de Yunnan, a sul da fronteira ocidental chinesa, Zheng He nasceu com o nome islâmico de Ma He. Filho de um oficial rural ao serviço da linhagem Yuan, capturado aos 12 anos de idade durante a campanha militar contra os mongóis, Ma He acabaria por ser castrado para servir na corte imperial onde se tornou amigo de infância e confidente do futuro imperador. Mais tarde, reconhecendo a fidelidade e o valor do seu vassalo, tanto em combate como nas intrigas da corte, o imperador honra-o com o nome chinês de Zheng He – tornando-o no mais influente dos seus eunucos e nomeando-o para supervisionar a construção e chefiar a “Frota do Tesouro”.
O próprio almirante foi também parco nos relatos pessoais, deixando caminho aberto a especulações em torno da sua figura – matéria-prima com a qual foram elaboradas lendas e narradas epopeias. Os poucos testemunhos que deixou retratam o seu manifesto desejo de seguir os seus antepassados na peregrinação a Meca, mas também o ecumenismo que sempre praticou. Recolhendo a bênção de Alá, “o Único”, e de Maomé, o seu profeta, jamais descurou Mazu, a deusa chinesa do mar, em honra de quem eram mantidos acesos fogareiros de incenso em todos os navios das suas expedições. Por outro lado, terá respeitado sempre todas as crenças com as quais se foi deparando ao longo das suas viagens. Hoje é venerado como divindade na Indonésia, onde foram erguidos templos em seu nome; continua a ser celebrado anualmente em Singapura e Malaca; e é ainda recordado com algum temor no Sri Lanka. De resto, deu-se aí a única grande batalha em terra na qual se envolveu Zheng He, que depôs um rei envolvido em constantes conflitos internos e entronou outro, disposto a prestar vassalagem à China. Foi, na altura, a forma que encontrou para restabelecer a paz e, com ela, fomentar o comércio.
É a personagem multifacetada d’O Almirante, diplomata, comerciante e soldado que, de acordo com Ieong Wan Cheong, delegado à Assembleia Popular Nacional e coordenador de projectos de investigação na Universidade de Macau, vários historiadores chineses e estrangeiros tentam agora colocar “pelo menos no mesmo plano” de grandes exploradores como Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral. O assunto foi de resto abordado no decorrer de um seminário em Macau, em finais de 2005, onde esteve patente uma exposição alusiva às sete viagens de Zheng He, enquadrado no programa de comemorações do 600 aniversário da partida da armada.

Cidade flutuante

“O Almirante” partiu na sua primeira viagem ao comando de uma armada construída especialmente para impressionar os povos visitados. Mais de 28 mil homens, entre os quais embarcaram diplomatas, cientistas, sacerdotes, negociantes e soldados; mais de 100 mil toneladas de mercadorias – incluindo a muito apreciada porcelana Ming – fizeram a travessia em 250 navios até Calecute, na costa ocidental da Índia. O almirante viajava a bordo do maior dos célebres navios do tesouro (baochuan) – embarcações com mais de 120 metros de comprimento e 50 de largura, manobradas por mil marujos. Jamais voltaria a ser construída em madeira semelhante estrutura, cujo convés albergaria, em perfil, pelo menos cinco das caravelas portuguesas que se fizeram aos mares muitas décadas depois. Outra marca distintiva dos baochuan era a sua divisão em compartimentos estanques, o que aumentava a sua navegabilidade e capacidade de armazenamento, permitindo inclusive manter viveiros de peixes, para além da facilidade de acesso ao casco para reparações.
A vida a bordo de um destes colossos marinhos era em tudo idêntica à de uma cidade: cumpriam-se rituais religiosos, os copistas actualizavam os seus mapas, os astrólogos estudavam os astros, os mestres elucidavam os discípulos e os guardas impunham a ordem. A sua real dimensão foi motivo de aceso debate até 1962, quando foi encontrado no leito dos estaleiros imperiais um leme com cerca de 11 metros de comprimento. Calculada a proporcionalidade deste leme, percebeu-se que terá pertencido a uma embarcação com cerca de 160 metros de comprimento. A escolta dos navios-tesouro era assegurada por um número de embarcações menores e mais velozes, munidas com arpões e canhões de pólvora. Outras embarcações asseguravam ainda o transporte de tropas, animais, estufas de vegetais e água potável, o que permitia longas travessias em alto mar sem reabastecimento.
A expedição foi coroada de êxito, tendo a armada regressado a transbordar de mercadorias exóticas e trazendo vários dignitários estrangeiros e seus tributos, para além de um prisioneiro muito especial: o pirata chinês Chen Zuyi, que ameaçava a navegação ao largo do arquipélago indonésio, impedindo o florescimento do comércio regional. Ao fim da terceira viagem estavam já restabelecidas várias rotas comerciais e praticamente esquecido o mandado de captura contra o antigo imperador, Jianwen, que nessa altura se suspeitava que estaria a percorrer o país disfarçado de monge.
Porém, segundo os registos oficiais, os lucros da “Rota do Tesouro” não cobriam sequer uma pequena parte dos dispendiosos empreendimentos que decorriam no interior do país, viabilizados mediante a imposição de elevados impostos e o esvaziamento continuado dos cofres do Império. Os grandiosos projectos de Zhu Di perturbaram o frágil e delicado equilíbrio das forças tradicionais confucionistas, que reclamavam o fim dos gastos megalómanos com as expedições, por não discernirem de que forma nações tecnologicamente “inferiores” poderiam contribuir para o virtuoso Império do Meio. Esta facção propunha em alternativa a promoção de uma agricultura doméstica e a pureza social, por via do isolamento, criticando os gastos com o comércio marítimo.

Legitimação divina

Durante o seu reinado de 22 anos, Zhu Di terá sistematicamente procurado um sinal divino que legitimasse a sua conduta como imperador. Sinal, esse, que chegou em 1416 à corte Ming – na altura já frequentada por dignitários de todos os cantos do mundo conhecido – sob a forma de uma girafa, tomada por um “quilin”, animal da mitologia chinesa. Oferta de um grupo de suseranos da costa africana – enviaram também um leão e uma zebra que, contudo, não sobreviveram à viagem – a girafa foi apresentada aos cépticos como prova inequívoca de legitimação divina da conduta de Zhu Di.
Historiadores pouco consensuais, como Gavin Menzies, reivindicam para Zheng He a autoria da descoberta e colonização das Américas, da Austrália e da Nova Zelândia, conferindo ao “Almirante” supremacia total nos oceanos. Outros investigadores, menos entusiasmados, admitem apenas a possibilidade de, entre as centenas de barcos que se refugiavam no abrigo proporcionado pela grande dimensão da armada chinesa, alguns poderão ter-se aventurado para além do Cabo da Boa Esperança. Contudo, dada a documentação vaga nessa matéria, muitos historiadores conceituados alertam para a ausência de dados históricos que comprovem essas teses.

O fim da aventura

O “divino” voltaria a manifestar-se, dessa vez de forma nefasta, pouco depois da partida da sexta expedição, em 1421. Uma violenta trovoada incendiou os principais pavilhões da Cidade Proibida, reclamando a vida, entre outras, da concubina real. E o velho imperador, que até ao fim dos seus dias provara a sua astúcia nas manobras da corte e nos campos de batalha, acabaria por sucumbir à doença, quiçá transtornado por esse sinal de desaprovação.
Zheng He, sempre coadjuvado pelos eunucos na capitania da armada, faleceria três anos mais tarde, ao largo da costa indiana, no regresso da sua sétima e derradeira expedição – a que mais destinos percorreu, incluindo possivelmente Meca – já sob o reinado do quinto imperador Ming, Xuande.
O coro de protestos que acompanhou esta viagem, aliado à circunstância da morte do almirante, acabaria por ditar o desfecho prematuro da aventura chinesa no Índico. Os sucessores de Zhu Di acabariam por “regressar às origens” e render-se à tese da auto-suficiência agrícola defendida pela escola confucionista, avessa ao investimento na política externa. Caía assim por terra a “revolução comercial” baseada na exportação de produtos chineses que chegavam à costa pela recuperada rede de canais fluviais.
Receando o ressurgimento das expedições, foram queimados os registos e os vestígios da epopeia marítima, dificultando os estudos desse período. As rotas comerciais foram abandonadas e circulou um édito imperial proibindo a construção de embarcações de capacidade oceânica. Essa ordem, defende Jared Diamond, autor do best-seller “Guns, Germs, and Steel: The Fates of Human Societies”, terá “impossibilitado o país sequer de equacionar, posteriormente, a recuperação da supremacia marítima”.