À boa mesa… macaense

A cozinha macaense resulta de um encontro de culturas e é um reflexo da história de Macau. Com a missão de recolher o melhor desta cozinha foi criada a Confraria da Gastronomia Macaense

 

Tendo por objectivo preservar a gastronomia macaense, evitando o seu gradual desaparecimento, a Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM), a Associação dos Macaenses, o Instituto Internacional, a Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas (APOMAC), o Círculo de Amigos da Cultura de Macau, o Clube de Macau e o Doci Papiaçam di Macau, criaram  a Confraria da Gastronomia Macaense.

Para já o primeiro passo desta recém-criada institutição é a “investigação a nível da gastronomia macaense, que passa pela recolha de receitas das várias famílias tradicionais”, explica Hugo Bandeira, membro fundador da Confraria. Segue-se depois o trabalho junto dos restaurantes de comida macaense. “Pretende-se uma vez por mês fazer visitas aos ditos restaurantes macaenses para ver o que eles estão fazer. Se é realmente comida tradicional macaense ou se é outro tipo moderno de comida macaense”, afirma Hugo Bandeira.

Porém, e porque há “certos pratos muito adulterados”, diz José Manuel Rodrigues, presidente da APIM, a Confraria vai encetar acções pedagógicas e de divulgação no próprio território. “Vamos tentar, em cooperação como Instituto de Formação Turística, iniciar cursos de formação da cozinha tradicional macaense e da tal gastronomia de fusão”.

No que à divulgação diz respeito, as Casas de Macau representam também um papel importante neste campo, e pretende-se também realizar no território um encontro internacional de confrarias. José Manuel Rodrigues conta que “nos próximos meses vão ser estabelecidos contactos com instituições congéneres de outros países no sentido de organizar um encontro internacional de confrarias gastronómicas para troca de experiências, não pondo de parte a criação de uma confederação internacional de gastronomia”.

 

Toque exótico

 

Quatrocentos e cinquenta anos de presença portuguesa no território deram azo a uma confluência de sabores. De Lisboa à Índia. De Moçambique à China.  “Ao longo dos séculos adaptamos culinárias de diversas origens, mas mantivemos a originalidade da nossa cozinha”, explica José Manuel Rodrigues. Nada mais do que uma mistura rara de “vários ingredientes que os portugueses foram recolhendo na rota desde Portugal até Macau” diz, por seu turno, Hugo Bandeira. E acrescenta: “podemos ter pratos que são mais próximos da comida chinesa ou da portuguesa e outros que, por exemplo, nos lembram qualquer coisa que comemos em Malaca”.

Por isso, “dizer que a culinária macaense é um parente pobre da gastronomia chinesa é errado, tal como também o é dizer que é muito parecida à comida portuguesa, porque é muito mais do que isso”, conclui.

Esta é essência da cozinha tradicional macaense e os múltiplos exemplos que se podem dar. O minchi, um dos pratos mais conhecidos, actualmente não é mais do que carne de porco e de vaca picada, servido com batata frita, arroz e ovo. Há quem também misture cogumelos, mas antes era mais do que carne com um molho. Ou o tacho, que não passa de uma espécie de cozido à portuguesa a que se juntou os ingredientes chineses como as pequenas couves, presunto e chouriço chineses e pele de porco frita.

Tradicional são também os temperos como o balichão que é feito à base de camarão e que é um dos ingredientes de muitos pratos macaenses. Da Índia chega o molho de coco usado na Galinha à Portuguesa e de Moçambique o paladar picante dado pela malagueta e que está presente na Galinha Africana.

Uma verdadeira palete de sabores e aromas que pintam a cozinha macaense. Agora o mais difícil é chegar a um consenso sobre o que é a comida macaense. Afinal este é “um conceito complicado que, com o passar do tempo, dilui-se cada vez mais”, responde Hugo Bandeira, que defende a modernização da culinária, “mas sem afectar a base dos ingredientes e o sabor”.

 

Encontro de sabores e memórias

 

Como fenómeno humano, social e cultural, a comida, com as suas cozinhas e gastronomias, pode ser abordada de diversos modos, com enfoques distintos, e objectivos diversos. Uma perspectiva histórica reflectirá sobre, entre outros, os hábitos de classe e de género, e as suas correlações com ciclos económicos, crises com origens políticas ou sociais, ou provocadas por tragédias alheias ao comportamento humano, enquanto que uma visão antropológica se preocupará sobretudo com os traços culturais e materiais, assim como os significados dos hábitos de consumo e as suas representações e ritualizações. A análise sociológica vê-la-á essencialmente, como expressão social e humana, reflexo do grupo, ou da comunidade, ligada aos papéis sociais, aos géneros, às gerações, analisando a sua importância no grupo, e os desvios e substituições resultantes das dinâmicas sociais.

Assim, de entre várias formas e variados modos, poderemos focar a nossa atenção sobre a comida macaense, intentando uma busca sobre as suas origens, que acabarão certamente por se plasmar com povos e culturas distintas que estarão na sua génese; ou debruçarmo-nos sobre ela, para além do material, como um referencial identitário e definidor da própria comunidade.

É um relance por estas duas abordagens à comida macaense que vos propomos neste artigo.1

Falar das origens, porquê?

– Porque elas remontam à origem da comunidade e à sua possível estrutura étnica.

Falar do seu significado para a comunidade de hoje, porquê?

– Porque ela é estruturante para a sua identidade, como referencial a um passado comum, sem significado étnico, mas cultural e identitário.

Os macaenses, e a comunidade macaense, têm sido, ao longo dos últimos anos, objecto de variadíssimos estudos não só no campo das ciências sociais, como também das ciências históricas e humanas, realizados por diversos autores e investigadores.2

Tais contribuições ajudam-nos a definir a comunidade macaense como dotada de grande mobilidade social, podendo caracterizar-se pela constante adaptação identitária, a qual não deixa de abranger os aspectos culturais e de ser, mesmo, um elemento de redefinição da sua própria etnicidade.

No seio deste grupo alargado e disperso, constata-se que existem práticas estruturantes da sua identidade cultural que começaram a desaparecer, ou a alterar as suas formas e contextos de representação, como parece ser o caso da comida macaense.

A comida macaense, a sua cozinha e culinárias, são elas próprias um atestado das origens étnicas dos macaenses, prova da mestiçagem que lhe deu início e marca da comunidade. Por outro lado, pelo contacto directo com os macaenses, sabemos como esta comida é, por todos e amiúde, nomeada como uma saudade, como um apelo às origens, independentemente de etnicamente pertencerem, ou não, a esses primeiros mistos de Macau. Conhecemos o modo e a forma como escritores de Macau, a ela se referem3, elogiando os seus cheiros e sabores, colocando-a quase a um nível mítico, na família, no grupo, no ser macaense.

Sabemos, também, como as sociedades modernas têm vindo a alterar os seus hábitos e práticas alimentares, fruto da adaptação a novos ritmos e modos de vida, gerados pela sociedade global de consumo e pela mundialização dos mercados sempre abertos à introdução de novos produtos. Naturalmente que as comunidades macaenses também não ficaram alheias a esta realidade.

Perante todas as alterações resultantes das dinâmicas sociais e dos desafios da modernidade, pensámos que seria importante que a comida macaense fosse estudada numa perspectiva diferente. Ou seja, num tempo em que a comida macaense perdera, quase completamente, as suas funções biológicas, e em que as rituais estavam reduzidas a pequenos apontamentos dispersos, que papel lhe estava destinado, e se continuava a representar, para o macaense, um vector da sua identidade cultural. Esta foi tarefa que levamos a bom termo, na viragem do século, num trabalho de investigação que privilegiou uma abordagem essencialmente qualitativa e holística, por forma a permitir a utilização de uma variedade de fontes e de métodos.

Tendo como objecto primeiro a comunidade macaense residente em Macau, mas estendendo-se às comunidade da diáspora – através de um questionário aberto, que fizemos por ocasião do III Encontro dos Macaenses – , a investigação centrou-se na problemática da comida macaense enquanto referencial identitário, não apenas ao nível do consumo, mas também no das suas representações e simbolismos. Por outras palavras, pretendeu-se definir elementos que nos permitissem aprofundar o conhecimento dos mecanismos de adaptação ou de acomodação da comunidade, e determinar -independentemente das formas com que hoje se apresenta, tanto ao nível das práticas como do seu simbolismo – até que ponto o recurso à comida macaense poderia ser considerado um referencial estruturante da sua identidade cultural.

Todas as conclusões do estudo apontaram para a importância do referencial comida macaense no imaginário colectivo. Ao ser elevada ao estatuto de símbolo, marcante da diferença, a comida macaense assume um papel de relevo na formulação da etnicidade macaense, que em muito transcende o mero suporte étnico. Ficou, também, demonstrado que a memória, mais do que a prática, passou a ser um traço fundamental, dessa comida, tanto em Macau como nas comunidades da diáspora.

 

Encontro de sabores

 

A cozinha macaense é o resultado da diversidade de influências que foi recebendo e que a foram estruturando ao longo de séculos – da cozinha portuguesa trazida pelos navegadores e comerciantes, ela própria já influenciada pelos contactos estabelecidos pelo mundo que então tocavam, acrescidos de influências locais e regionais.

Os portugueses começaram a fixar-se em Macau (onde apenas existiam pequenas comunidades piscatórias) entre 1552 e 1557. Os comerciantes que aqui se estabeleceram eram oriundos de Portugal ou do Vice-reino da Índia e as mulheres, de início, não os acompanhavam. Só mais tarde, depois da fixação parecer segura, começaram a trazer consigo companheiras indianas, goesas, malaias, siamesas, javanesas, japonesas, de Samatra, do Pegú, e das Filipinas, que transportavam consigo gostos e conhecimentos culinários das suas próprias culturas. Ao comerciante e marinheiro português teria ficado talvez reservado o papel de tentar recriar as suas comidas preferidas, com origem lá longe na sua terra, através de mãos que, trabalhando ingredientes e especiarias de um outro mundo, tentavam satisfazer as suas saudades. Assim terá tido início esta rica cozinha: elaboração de pratos desconhecidos por quem os confeccionava, com gestos diferentes, diferentes ingredientes, utensílios e técnicas de confecção.

A tudo isto virá posteriormente juntar-se a influência da mulher chinesa, primeiro apenas como cozinheira e, posteriormente, também, como esposa, e das mulheres portuguesas inseridas nesta comunidade.

Se a esta realidade acrescentarmos a da introdução de novos produtos agrícolas na região trazidos pelos europeus, nomeadamente pelos portugueses e espanhóis, do Mediterrâneo, Américas e África, então teremos uma visão mais alargada desta autêntica revolução que, para além da cozinha macaense, significou, de um modo mais lato, a introdução na dieta chinesa de produtos até aí desconhecidos e que rapidamente viriam a mostrar-se indispensáveis à sua cozinha. Produtos esses que hoje ninguém pensará ter havido um tempo em que eles não faziam parte dessa milenar e grande cultura gastronómica que é a chinesa.

A título de exemplo, diremos que, as necessidades da então nova população de Macau, em relação a produtos alimentares não existentes nestas paragens levou a que começassem a ser cultivados nos campos adjacentes, na província de Guangdong – e posteriormente levados para o resto da China – produtos tais como, e entre outros, o milho, o amendoim, a batata doce, a alface, o tomate, a mandioca, a papaia, a anona, a goiaba, e o agrião, originário da Europa tão utilizado na culinária chinesa e procurado pelo seu valor medicinal. Agrião que, em Macau, se denomina sai-iong tchói (hortaliça do ocidente), e onde curiosamente o cantonês usa o termo sai-iong para se referir a Portugal.

Também a criação de animais produtores de leite, cujo hábito de consumo não existia na região, foi incentivada com vista à fabricação de derivados lácteos, como a manteiga, de entre muitos outros produtos, consumidos pela nova população vizinha.

A todos estes novos produtos, e aos já existentes, devemos juntar as plantas e especiarias trazidas da Índia, Malaca, Ceilão (actual Sri Lanka), costas ocidental e oriental de África, e Brasil, para além, naturalmente, das provenientes dos empórios marítimos do arquipélago indonésio, com os quais os chineses já se relacionavam há séculos.

Quanto aos produtos portugueses, aqueles que não encontravam substituto à altura no local, ou que pelas suas características poderiam suportar uma viagem de muitos meses, poder-se-á dizer que desde o inicio da fundação do entreposto a ele chegavam, embora sem fins comerciais, o que só viria a acontecer já no século XIX, como relatam os viajantes e textos da época. Referimo-nos a vinhos, azeite e azeitonas, alguns enchidos ou produtos fumados ou conservados em salmoura, e espécies animais, entre elas, aves de capoeira e cabras para a obtenção de leite.

 

O nome das coisas…

 

Debruçarmo-nos sobre as designações das receitas, os seus ingredientes, e os modos de confecção é como se, através delas, viajássemos até um passado distante, que recua à fundação do estabelecimento, e onde assentam as origens da comunidade. Foi o que fizemos numa investigação que teve como objecto de estudo mais de uma centena de receitas.

Para lograrmos alcançar respostas o mais aproximadas da verdade que sempre se procura, intentámos uma abordagem crítica multifacetada, e por ângulos diversos, tendo em conta a complexidade do objecto. Vejamos – se um prato é designado por um nome que lhe atesta determinada origem (malaia, por exemplo), será esta uma condição suficiente e necessária para lhe atribuir a paternidade? Não é certo que assim seja. Aliás, na maior parte dos casos não o é, mesmo. Então torna-se necessário interrogar os ingredientes utilizados e o modo e forma de confecção, comparando-os com os da designação original. Só o cruzamento das diversas abordagens nos poderá dar alguma luz sobre as questões que formos levantando.

Embora não sendo uma característica própria do receituário macaense, pode, contudo dizer-se que se torna aqui recorrente o facto de, por vezes, a mesma receita ter designações diferentes, ou uma variedade de ingredientes e de formas de confecção. Esta característica é comum às receitas de família, que leva à tendência de em cada uma delas se criarem versões próprias de cada prato, tentando melhorá-lo, enriquecendo-o com novos ingredientes e especiarias, dando-lhe novos sabores, apurando os originais, ou tornando-os mais atraentes pela cor e arranjos de serviço.

Em síntese podemos concluir que, em relação às designações, a maior parte das receitas estudadas, coincidirão com a origem desses mesmos pratos ou, pelo menos, dos que os trouxeram, ou a quem competia a função de os confeccionar em Macau. Não nos devemos esquecer, contudo, que as criadas das casas macaenses, eram chinesas e era a elas que estava confiada a confecção dos pratos no dia a dia. Se isso se traduz por uma ementa mista na casa dos macaenses, também a sua presença não será alheia à introdução de métodos de cozinhar e à utilização de certos produtos locais. Outros pratos, no entanto, apenas conservam um nome que nada tem a ver com a composição, confecção ou até sabor do original.

No primeiro caso estão os doces e sobremesas, essencialmente de origem portuguesa. A inexistência de qualquer destas espécies culinárias com designação, composição ou confecção chinesa, parece encontrar justificação no facto de não ser usual a sua confecção e consumo, na região em que Macau se insere.

Este particularismo de importação pura vamos também encontrá-lo nas entradas e molhos de mesa desta cozinha própria de Macau, todos eles de origem malaia ou indiana, tanto na designação como na confecção, embora se encontrem neles, por vezes, substituição ou acrescento de algum ingrediente local para enriquecer ou apaladar a confecção.

Mas, sendo a cozinha macaense uma cozinha mista indo-portuguesa, com todas as alterações inerentes às diferentes mãos que a confeccionaram, que características do local onde ela se desenvolveu por durante quatro séculos e meio, podemos encontrar?

Quanto a nós, essa influência é essencialmente notória na sofisticação e complexidade, requisitos que, na culinária chinesa, levam a uma cuidadosa selecção de ingredientes – ao seu uso como principais ou secundários –; à técnica exacta do corte dos alimentos; ao seleccionado uso de condimentos e temperos nas diversas fases do cozinhado; à utilização de polmes e ao preciosismo dos métodos de cozinhar na utilização exacta do tempo e da temperatura. É aí que se revelam as características chinesas que marcam, de uma forma indelével, a culinária macaense.

A utilização do cozido a vapor, do cozido em banho-maria, dos diversos tipos de fritos à maneira chinesa, do frito (chau), do frito e cozido, ou do cozido e frito, como formas de confecção, quase são uma regra (excepção para a maioria dos doces e sobremesas). Assim acontece também com a utilização de caldos, talvez de grande valor medicinal, confeccionados durante largo tempo, e em banho-maria.

Macau, tendo sido o primeiro ponto de encontro permanente entre o Ocidente e a China, também o foi, como não podia deixar de ser, ao nível da cozinha. A cozinha que nasceu deste contacto não é uma cozinha de origem portuguesa com influências chinesas, nem uma cozinha chinesa com influências portuguesas, ela é uma mistura harmoniosa e equilibrada das duas em sabores, odores, cores, e formas de preparação que lhe dão um estatuto único, de uma cozinha de características próprias – a cozinha macaense.

Na sua origem estão duas cozinhas muito ricas, talvez as mais ricas do mundo, na época em que aqui se fundiram. De um lado, a portuguesa (já indo-portuguesa!), de origem mediterrânica com modos de confecção muito próprios e grande utilização de ervas aromáticas, na altura já complementada com o exotismo das especiarias e enriquecida com novos produtos orientais, africanos e americanos e, do outro, a grandiosa cozinha chinesa de tradição milenar, possuidora de técnicas de preparação e confecção precisas, de harmonias e equilíbrios entre sabores e qualidades, cumprindo assim a maior de todas as virtudes do confucionismo.

 

As coisas pelo seu nome….

 

“Para nós, seres humanos, comer nunca é um acto “puramente biológico” (seja qual for o significado de “puramente biológico”). Os alimentos que se comem têm histórias associadas com os passados daqueles que os comem; as técnicas empregadas na procura, processamento, preparação, serviço e consumo dos alimentos são todas culturalmente variáveis e com histórias de quem as possui. Os alimentos nunca são simplesmente comidos; o seu consumo está sempre condicionado pelo seu significado. Estes significados são simbólicos, e comunicam simbolicamente entre si; e também eles têm histórias. Estes são alguns dos caminhos que nós humanos construímos para tornarmos muito mais complicada esta supostamente simples “actividade animal”. (Mintz,Sidney W. (1996) Tasting Food, Tasting Freedom – Excursions into Eating, Culture, and the Past, Boston, Beacon Press pp. 7-8, tradução nossa)

 

Tudo o que escrevemos até aqui foi-nos “dito” pelo que poderemos chamar de receituário tradicional macaense (este, fixado em finais do séc. XIX, primeira metade do séc. XX.) registado em publicações, lembrado por quem dele se recorda, em entrevistas, registos na comunicação social, ou na literatura.

Mas, destas cento e tal receitas quantas, hoje em dia, fazem parte, dos hábitos alimentares ou, sequer, do conhecimento da maior parte dos membros das comunidades?

Não sabemos se existirão escondidas, ainda, muitas receitas da cozinha macaense à espera de verem a luz do dia, claro que não falamos das versões, mais ou menos pessoais, ou de famílias, mas que não alteram substantivamente as características identificadoras do prato em questão – um minchi é um minchi para lá das diversas variedades…

Se a máxima do célebre epicurista Brillat-Savarin – “Dize-me o que comes e te direi quem és”-  fosse aplicada à sociedade macaense de há um século atrás, talvez os resultados fossem claros relativamente à obtenção de uma resposta nomeadamente quanto à sua identidade cultural e etnicidade. E talvez volte a sê-lo, no futuro, aplicada às gerações vindouras, na construção das suas identidades. Mas, hoje? Perdeu aquela máxima o seu valor aqui e agora? Se calhar ainda não, se o seu enunciado fosse: “diz-me em que comida pensas, e dir-te-ei quem és.”

O valor da comida macaense – independentemente de fundamentalismos de difícil justificação, nomeadamente a questão do tradicional, ou da sua pureza – recorrente na auto-definição e na auto-representação do(s) macaense(s) está muito para além daquilo que efectivamente se reduz a uma função biológica. Ou seja, comendo à portuguesa, à chinesa, à italiana, ou de qualquer outra origem, a comida macaense vive na sua memória, como vivem afinal a religião, para além da prática, ou a língua, para além do uso.

É que a comida, como o uso da língua, só sobrevivem quando usadas, por possíveis ou necessárias, caso contrário, passam a viver, apenas, nas memórias. E, estas, por vezes têm mais força, por intangíveis, do que o palpável que se degrada pela erosão dos tempos e a fúria dos homens.

 

* Licenciado em História / Mestre em Relações Interculturais

 

1. Serviram de base a este artigo dois trabalhos de investigação diferenciados, a saber : Lopes, Fernando (1998), “Chinese-Portuguese Cultural Interaction and Chinese Food Culture in Macau: Macanese Cuisine – Where West and East Blend”, in The 5Th Symposium on Chinese Dietary Culture, Taipé, Foundation of Chinese Dietary Culture, pp. 15-26 e Os Sabores das Nossas Memórias – A comida e a etnicidade macaense. Dissertação de Mestrado em Relações Interculturais (mimeo) a aguardar publicação; e, ainda, elementos do Inquérito lançado pelo autor às comunidades macaenses, por ocasião do III Encontro dos Macaenses.

2. Tais como Almerindo Lessa, Ana Maria Amaro, Beatriz Basto da Silva, Boaventura Sousa Santos, Carlos Piteira, Jorge Morbey, Manuel Teixeira, Pina Cabral e Nelson Lourenço, Videira Pires, entre outros.

3. Nomeadamente Alda de Carvalho Ângelo, Frederic Silva, Cecília Jorge, Graciete Batalha, Henrique de Senna Fernandes, José dos Santos Ferreira, Luís Gonzaga Gomes, entre outros.

 

Sendo uma cozinha própria de Macau, até que ponto ela se preocupa com o aspecto medicinal da alimentação, tanto na sua utilização preventiva, como curativa. Sabe-se que a cozinha macaense integra (já integrou muito mais segundo descrições antigas) algumas receitas medicinais, com influências portuguesas, indo-portuguesas, malaias e chinesas. Sabe-se, também, que havia, noutros tempos, receituário próprio de mezinhas caseiras.

O recurso à medicina tradicional chinesa e aos pratos medicinais da cozinha chinesa, ainda hoje são uma prática, e convém não esquecer que a cozinha chinesa também faz parte dos hábitos alimentares dos macaenses. Para além disso será de ter em conta que, a maior parte dos ingredientes usados na cozinha macaense poderão estar a ser utilizados, também devido à sua acção medicinal, embora as pessoas – como acontece noutras sociedades urbanas modernas – já não lhe atribuam essas características, como poderá ser o caso, por exemplo, do gengibre, da cebola, do alho, das pimentas, dos inhames, do vinho, do vinagre, dos ovos, do sésamo, dos xaropes, entre outros.

No nosso estudo encontrámos um grupo significativo de receitas com referências directas aos seus efeitos terapêuticos e medicinais, nomeadamente:

– destinadas a fortalecer a parturiente (sempre com a designação de parida, como Galinha Chau-Chau Parida), com utilização dos medicinais e revigorantes: gengibre, açafrão, vinho, e vinagre;

– para pessoas fracas, um Caldo de Raiz de Lótus (Lin ngau);

– com qualidades refrescantes para serem consumidas no Verão (Frio-Frio, gelatina que tem como ingrediente principal a alga Agar-agar,  confeccionada em seis variantes que correspondem a outros tantos sabores);

– geleias revigorantes (de patas de galinha e de mão de vaca) tendo em comum a utilização de jagra (açúcar de pedra), vinho (no caso, vinho do Porto), ovo (apenas a clara) e, numa delas o pau de canela, tudo ingredientes de alto valor medicinal, na dietoterapia chinesa.

Também surgem referências soltas a alguns ingredientes com valor medicinal, tais como:

-a Camalenga, designação macaense para uma abóbora designada em cantonês de Tong-kuá. Com esta abóbora fazem-se caldos que dão frescura;

-o Pato Salgado, que era usado na cozedura da papa de arroz para as crianças, para dar energia;

-o Arroz de Força (Chi-sat), com várias funções terapêuticas, nomeadamente no caso de desinteria;

-o Arroz Pulu, arroz gomoso utilizado nos doces macaenses, a quem antigamente se atribuía propriedades medicinais, nomeadamente contra a febre tifóide.

 

* in Macanese Cuisine – Where West and East Blend

 

Comida macaense – uma mãe que se recorda

 

Interessantes as respostas dadas à questão: o que é para si a comida macaense? E que se dividiram entre as que tentam uma definição material e as que, situando-se num campo mais subjectivo, se reportam a referências, e, nos grupos etários acima dos 40 anos, inevitavelmente ao passado. É a figura tutelar da mãe que impera, mãe biológica, que é também um recordar das origens, a mãe cultural, onde se vai buscar o que nós somos, no dizer de um macaense há meio século por terras da América do Norte:

– “Comida caseira preparada da maneira tradicional, com condimentos específicos”.

– “Tasty palatial “mother’s cooking”.  (Um gosto na boca à “cozinha da minha mãe”)

– “É a comida que a minha mãe e cozinheiros cozinhavam quando eu era uma criança. Continuo a cozinhar comida macaense para a minha família e às vezes para os amigos”.

– “A comida tipicamente da terra, preparada pelos nossos antepassados e que foi sendo ensinada de geração em geração”.

– “A comida da minha infância que ainda sirvo à família e amigos”.

– “É uma saudade”.

– “É lembrar da terra em que nasci, comemorar com a família à mesa com a fartura e diversificação (dependendo da situação financeira no momento).

– “A comida da minha mãe, da minha terra, a comida que eu adoro e que a minha família gosta”.

– “É a lembrança do passado, da boa comida que só uma mãe sabe fazer”.

Na definição da sua comida, os macaenses atribuem-lhe qualificações que vão de encontro à teorização do menu tradicional, por um lado, (antepassados, passado de geração em geração, infância) e, por outro, demonstram como a cozinha macaense se ligava primordialmente ao lar e à estrutura familiar (caseira, comida da mãe, família).

Não é só, e apenas, a lembrança dos primeiros contactos com o seu meio e as suas origens, como refere o sociólogo francês Pierre Bourdieu, é muito mais do que a lembrança do materno biológico. A comida macaense é a comida dos antepassados, da mãe, da família, da infância, da terra, é uma lembrança, é uma saudade, é uma memória, é, acima de tudo, uma referência identitária.

 

* do Inquérito lançado por ocasião do III Encontro dos Macaenses

 

Salgados de boas-vindas e doces de matar saudades

 

Quándo vôs lôgo vêm Macau pa dá unga iscuta pa nôs tudo? Quelora vêm, lembrá trazê vôsso chistosa Maria pa vêm olá nôs. Uví, êle sabe papiá nôsso maquista chapado? Si nom sabe, qui ramêde. Chacha nom sabe torá portoguês, nádi pôde conversá co êle. Vêm azinha, filo. Vêm intrementes Macau sã Macau, intrementes Chacha têm vida, podê fazê porco-balichám tamarinho, margo-so-lorcha co tudo rabusénga qui vôs assi gostá comê. Olá, co péso de áno na costa, Chacha ta unchinho tom-tom mom-mom ia. Nom-mestê vôs demorá vêm. Si demorá tánto, lôgo olá Chacha fêto pêsse cucús na básso di chám.

(…) Filo di Tio Lorénço más quánto dia ta vai Putugal istudá pa ficá ténico. Iou lôgo pedí êle, bom quiança, levá dôs pám di ladú, unga pote di goiavada com unga porçám di cham-pei-mui pa vôs.*

As memórias, as saudades, são traduzidas na comida que se recorda, e com a sua recordação, a lembrança da meninice, da família, dos amigos. Mas também, como José dos Santos Ferreira (Adé) regista na carta enviada por Chacha ao seu neto Agapito, as saudades provocadas pela ausência do neto são traduzidas na vontade do seu regresso, para que possa comer os manjares de que tanto gosta, e que ela preparará. Se tal for impossível, Chacha enviar-lhe-à, para Portugal, alguns manjares doces – como não podia deixar de ser – para que Agapito mate saudades de sua avó, e da sua terra.

 

*in Macau Jardim Abençoado, Macau, Instituto Cultural de Macau, 1988, p. 91

 

Os bons velhos tempos

 

Na Austrália, em Hong Kong, no Canadá, na Grã-Bretanha, em Portugal ou no Brasil, é à mesa que os macaenses aí residentes se encontram, em festas privadas ou nas suas associações, confraternizando em redor de um Chá gordo, o farto lanche ajantarado, que hoje pode ser servido a qualquer hora. Um Chá gordo, com toda a variedade que lhe é inerente, mas a que se juntam pratos fortes como o Tacho ou o Diabo, num repositório completo de comidas-memórias.

Que memórias poderão trazer um Chá gordo?

– “Good old days” (Os bons velhos tempo)

–  “Chá gordo traz-me memórias de quando estive em Macau”

– “Chá gordo is a combination of savouries and sweet dishes, usually eaten instead of dinner. It brings to mind gatherings of friends and family in the past!” (é uma combinação de aperitivos e de pratos doces, que normalmente substituem o jantar. Traz-me à lembrança, as antigas reuniões de amigos e de família.)

– “Meeting friends, talking about old times and enjoying the food.  (Encontro com amigos, conversas sobre os velhos tempos e os prazeres da comida)

– “Meeting old Macanese friends and enjoying food of common interest”.  (Encontro com velhos amigos macaenses e saborear a comida que todos apreciamos)

–  “Fellowship with other Macanese recalls memories of my childhood”.  (Convívio com outros macaenses que me trazem memórias da infância)

– “Good food in the afternoon to early evening with good friends from the Macanese community. It brings back memories of times between the 1950`s and 1960`s and my mother’s way of preparing it the Macau way”.  (Boa comida ao fim da tarde com bons amigos da comunidade macaense. Traz-me recordações dos anos 50 e 60 e da maneira como a minha mãe preparava os pratos à moda de Macau)

– “A gathering of Macanese with a variety of Macanese dishes and Macanese confections, memories of old times in Hong Kong”.  (Uma reunião de macaenses com uma variedade de pratos e confecções macaenses, e memórias dos velhos tempos em Hong Kong)

– “Going to parties at my aunts house in Shanghai”.  (As festas na casa das minhas tias, em Xangai)

– “O tempo dos meus avós”.

– “É uma festa para comemorar aniversários e outras ocasiões festivas. Lembro-me da minha infância e juventude em Macau e os bons petiscos que se comiam.

– “O Macau antigo, a minha mãe, as minhas tias, as festas macaenses, a minha adorada Macau”.

O Chá gordo, comida de festa familiar e de reunião de amigos, é, por excelência, o paradigma do encontro, da amizade, função que continua a desempenhar entre as comunidades emigrantes. É por essa razão que, para os nossos inquiridos, a ideia de um Chá gordo lhes traz memórias: dos tempos que viveram em Macau, ou ainda, entre macaenses no Oriente (parties at my aunts house in Shanghai), em épocas classificadas como velhos tempos; com a família (mãe, tias, avós) e os amigos. Mas também a ideia do encontro, actual, com amigos macaenses para falarem dos tempos de juventude, de velhos amigos, da minha adorada Macau.

 

* do Inquérito lançado por ocasião do III Encontro dos Macaenses