Uma “açoriana” no Palácio do Povo

Nasceu em Zhejiang, na China, cresceu nos Açores, mas vive em Macau há mais de 30 anos. Paula Ling é a primeira deputada da Assembleia Popular Nacional, o parlamento chinês, a dominar a língua portuguesa

 

Poucos dias depois de ter participado, pela primeira vez, no emblemático Palácio do Povo, em plena praça Tiananmen, na reunião anual da Assembleia Popular Nacional, recebe a MACAU no seu escritório, situado no 23º andar do Landmark, em plena avenida da Amizade. Os novos edifícios do NAPE (Novos Aterros do Porto Exterior) vão cortando a ampla vista que tinha da Taipa, tornando a vida agitada da advogada menos agradável. Os seus cabelos brancos transmitem-lhe uma imagem de serenidade. Fala pausadamente e não foge às questões. De vez em quando, à boa maneira chinesa, recorre a uma imagem para responder.

O primeiro deputado da Assembleia Popular Nacional, o parlamento chinês, a dominar a língua de Camões e Saramago aprendeu a ler e a escrever português nos Açores. Natural de Zhejiang, perto da cosmopolita Xangai, Paula Ling mudou-se ainda criança para a Praia da Vitória, na ilha Terceira.

 

Pai comerciante nos Açores

 

Em 1949, a China vivia momentos agitados. O pai deixa Zhejiang e fixa-se em Taiwan. A família, já depois de criada a República Popular da China, acabaria por se reencontrar em Hong Kong, mas mais tarde o antigo oficial da Marinha decidiu dar outro rumo à vida e estabeleceu-se nos Açores como comerciante, onde estava já radicado um cunhado.

“Ainda frequentei a escola primária no interior do País e em Hong Kong, mas acabei por fazer a instrução primária em Portugal”, conta.

Só regressaram à terra natal 20 anos depois. Já Deng Xiaoping tinha feito aprovar, no grande cenário do Palácio do Povo, que agora Paula Ling bem conhece, o socialismo de característica chinesas.

Na década de 60 do século passado, a vida era muito pacata na Praia da Vitória. “Havia muito pouca coisa para fazer. As pessoas passavam o tempo entre o trabalho e casa ou os estudos e casa”, nota. “Não tínhamos muitas belezas naturais, mas havia muitas pastagens, vaquinhas, leite fresco, boa carne. Para uma jovem não era uma terra atraente. A sociedade era muito fechada, as raparigas namoravam a partir da janela. Passei a minha infância fechada em casa, o meu pai, que era muito conservador, não gostava que saísse. Não era uma adolescente muito sociável”, diz com um sorriso nos lábios.

Nos Açores conheceu então o magistrado e escritor Rodrigo Leal de Carvalho, que anos mais tarde veio reencontrar em Macau, “era o nosso senhorio, pois os meus pais tinham arrendada uma casa à família dele”.

Na Praia da Vitória não havia na altura liceu, era preciso ir a Angra do Heroísmo fazer os exames. “Estudava em casa, tinha explicações. Foi assim que fiz do primeiro ao quinto anos. O sexto e o sétimo anos já foi em Angra da Heroísmo”, recorda.

Foi pela primeira vez a S. Miguel no passeio de finalistas e só visitou o Faial anos mais tarde, quando era professora na Praia da Vitória. “Não conheço todas as ilhas. Um dia ainda vou conhecê-las”, garante. Gosta de regressar aos Açores de férias, onde já só tem dois primos. O pai viveu os últimos anos da sua vida em Macau, onde se tinha fixado um dos seus três filhos.

 

Paixão por Macau

 

No início dos anos 1970 aterra em Lisboa para frequentar medicina, onde foi colega de Maria Gonçalves, irmã de Manuel Gonçalves, administrador-delegado da Teledifusão de Macau (TDM). “Partir para Lisboa era uma grande festa. A viagem de barco demorava uma semana. Ir de avião era muito complicado, já que não havia ligações directas, mas apenas um voo que vinha dos Estados Unidos e parava nos Açores”, lembra.

Gostava muito de medicina e queria ser médica, mas depois de ter concluído o primeiro ano a mãe faleceu. “Tive que interromper o curso, pois tinha que cuidar do meu irmão mais novo e do meu pai”.

De regresso ao Açores, assume as funções de subdirectora do ciclo preparatório da Praia da Vitória. “Não havia ainda escola secundária e fui professora durante cinco anos”.

No Verão de 1977 visita pela primeira vez Macau. Para matar saudades do irmão mais velho, que trabalhava na Companhia de Electricidade de Macau (CEM). Durante dois anos dá aulas na Escola Comercial Pedro Nolasco da Silva. “Gostei do território e por cá fiquei”, conta. “A minha cunhada era topógrafa e acabei por optar por essa profissão. Como fiquei em primeiro lugar no curso fui para a Holanda fazer um curso de fotogrametria”. Anos mais tarde, ingressou nos Serviços de Estatística e Censos.

 

“Nunca pensei no curso de Direito”

 

O futuro de Macau tinha ficado traçado em Abril de 1987 com a assinatura da Declaração-Conjunta, documento rubricado pela China e Portugal sobre o território. A formação de quadros era então uma prioridade do Governo de Macau, que avança com a criação do curso de Direito na então Universidade da Ásia Oriental, hoje Universidade de Macau.

“Na altura, o meu chefe nos Serviços de Estatística e Censos, Daniel Coutinho, incentivou-me a frequentar Direito. Estava a tratar do ficheiro de agentes económicos e precisava de ter alguns conhecimentos de Direito”, recorda.

Mulher discreta, de bom senso, ponderada, calma, no dizer de quem a conhece bem, é também muito pragmática. “Nunca na minha vida pensei no curso de Direito. Fiz o sétimo ano de Ciências e para ir para Direito era preciso ser uma pessoa bem falante, redigir muito bem, falar horas e horas. Sempre fui mais ligada às ciências. Mas o chefe mandou-me matricular no curso e fui inscrever-me, apesar de não ter nenhuma inclinação para as leis”, nota hoje passados vários anos após uma decisão que mudou a sua vida.

O primeiro ano em Direito foi um “castigo”. “Quando assistia às aulas dos professores Oliveira Ascensão e Vitalino Canas tinha enormes dificuldades em acompanhar o raciocínio. Estava ali a fazer um grande sacrifício, ao contrário de muitos colegas que estavam a concretizar um sonho”, diz. “Foi graças ao meu chefe, que quase todos os dias ia ao meu gabinete ver se tinha ido para as aulas, que tirei o curso. No segundo ano comecei a perceber as matérias e tudo se tornou mais fácil”.

Em 1993 termina o Curso de Direito. É, de resto, uma das primeiras licenciadas pela Faculdade de Direito da Universidade de Macau. Faz o estágio no escritório de Francisco Gonçalves Pereira e Frederico Rato. Cinco anos depois passa a ser sócia daquele que é um dos principais escritórios de advogados de Macau.

Logo que concluiu a licenciatura, passou a assistente na Faculdade de Direito. O que aconteceu até Junho do ano passado. “Para continuar a dar aulas tinha que fazer o mestrado e o doutoramento, mas é impossível conciliar isso com o trabalho que tenho”, comenta, deixando evidenciar alguma mágoa por ter deixado as aulas na Universidade de Macau.

 

Viajar e ler

 

Antiga vogal da direcção da Associação dos Advogados de Macau e ex-presidente do Conselho Superior de Advocacia, Paula Ling reconhece que os advogados, à semelhança do que está a acontecer com a economia da RAEM, vivem dias de bonança. “Quando a economia está má, os advogados não têm tanta actividade. Actualmente, a economia está pujante e, por isso, os advogados têm muito trabalho”, nota, sublinhando que muitos colegas jovens têm aberto os seus próprios escritórios, o que é um sinal positivo. Macau necessita, de resto, de mais advogados, “o mercado é que dita as regras e o mercado tem dito que precisa de mais profissionais”.

Católica praticante, tem um apurado sentido feminino. “Está sempre disposta a defender as mulheres nas mais diversas situações”, contou à MACAU uma das suas amigas. Integra a Associação das Mulheres e a Comissão Consultiva para os Assuntos das Mulheres, criada pelo Chefe do Executivo com o objectivo de promover os direitos e interesses das mulheres e o melhoramento das suas condições de vida.

“A situação da mulher está bem defendida em Macau, em comparação com outros países e territórios da Ásia. A legislação defende os interesses da mulher. A violência doméstica não é uma situação gritante na RAEM”, afirma a propósito da situação da mulher em Macau.

Gosta de viajar e de ler, agora mais em chinês. “O meu português está cada vez mais degradado. Leio muito, de revistas a livros. Com um livro posso ficar vários dias em casa sem sair à rua”, revela. Dos três filhos, apenas a mais nova domina um pouco a segunda língua oficial da RAEM.

Mulher frugal, “não dá grande importância aos bens materiais e não gosta de gastar dinheiro”, como reconhece um amigo de longa data. “Temperada pela vida, ajudou o irmão mais novo a crescer e só a sua determinação lhe permitiu chegar onde já chegou”, frisa outro colega.

Evita ir a tribunal defender os clientes. “Não gosto da barra. Faço mais trabalho de escritório”, lembra. “Quando vim para o escritório estagiar disse isso ao Francisco Gonçalves Pereira e fiquei mais sossegada quando ele me respondeu que também não ia a tribunal”.

 

“Não é necessário saber português para ser um bom jurista”

 

O ensino do Direito deve ser, essencialmente, em chinês, defende Paula Ling. “A maioria da população, os habitantes da RAEM, não percebem que seja necessário saber português para ser um bom jurista”, nota. “Depois da criação da região administrativa especial é difícil encontrar emprego se dominar apenas o português. A maioria sabe chinês e quer prosseguir os seus estudos em chinês”, assevera. “As pessoas dizem que não se deve obrigar os juristas a saber português. Isso ainda não é possível, mas no futuro acredito que seja uma realidade”, frisa.

Depois de reconhecer que os primeiros anos foram muito complexos para a Faculdade de Direito, já que não havia professores qualificados para ensinar em língua chinesa, Paula Ling afirma que “existe agora um quadro de professores com qualificação (muitos fizeram mestrado e doutoramento, em Macau ou no continente)”, embora admita que é necessário continuar a fazer esforços para formar mais docentes. E adianta: “há pouca jurisprudência e doutrina em chinês, mas as leis são agora feitas sobretudo em chinês e, portanto, no futuro a situação vai alterar-se profundamente”.

A antiga docente admite que, por enquanto, o domínio do português é fundamental, já que ajuda a conhecer e a interpretar melhor os conceitos, mas a médio prazo tudo vai estar em língua chinesa. “Conhecer as duas línguas é o ideal”, argumenta.

A tendência a médio prazo é ter mais advogados bilingues ou então advogados que dominam apenas o chinês. “Haverá sempre espaço para os portugueses, mas não podemos ignorar que a evolução vai no sentido contrário, isto é, os que não falam chinês vão começar a ter dificuldades em trabalhar em Macau”, assegura.

 

“Há pouca jurisprudência e doutrina em chinês, mas as leis são agora feitas sobretudo em chinês e, portanto, no futuro a situação vai alterar-se profundamente. As pessoas dizem que não se deve obrigar os juristas a saber português”

 

Faculdade de Direito “tem que pagar melhor”

 

Paula Ling alerta para a necessidade de a Faculdade de Direito pagar melhor aos docentes. “Não oferece boas condições para reter os melhores alunos. Não consegue atrair os mais qualificados. Só os que têm amor à profissão, que querem ser úteis à sociedade, aceitam continuar. É um problema complexo, pois não pode haver salários diferentes de faculdade para faculdade, mas a Universidade de Macau tem que encontrar uma saída para esta situação”.

Relativamente à revisão da legislação, defende que se deve mexer nas disposições que já não condizem com as necessidades actuais. “Deve, contudo, alterar-se com cuidado, pois temos que respeitar a filosofia e o conjunto de valores que estiveram na origem dos actuais códigos”.

 

“Uma perspectiva diferente dos problemas da China”

 

“A China está a mudar e os dirigentes acham que os representantes do povo têm que vir dos vários sectores da sociedade. Não só empresários, operários ou agricultores, mas também profissionais. Neste mandato, procuraram um melhor equilíbrio, tendo-se isso repercutido também em Macau. Foi por isso que escolheram uma advogada”. Desta forma explica Paula Ling a sua eleição para a Assembleia Popular Nacional.

Em Março, no Palácio do Povo, fez a sua estreia nas novas funções. “Em Macau não nos preocupamos muito com a política interna do País. É impressionante ver mais de dois mil delegados numa única sala”, diz, classificando a experiência de muito positiva. “Fiquei a conhecer melhor a estrutura política da China e como as coisas realmente funcionam. Discutiram-se os planos para os próximos anos e podiam ser feitas críticas ao que foi proposto pelo Governo”, nota.

Quanto à sua participação no parlamento chinês, Paula Ling afirma que os delegados que vivem fora “têm uma perspectiva diferente dos problemas, que poderá contribuir para uma discussão mais aprofundada das questões chinesas”. Na revisão da legislação “a nossa participação pode ser também muito útil”.

Membro da Comissão Preparatória, o órgão que ajudou a preparar o arranque da região administrativa especial, integrou também a comissão de selecção do Chefe do Executivo e faz parte da comissão eleitoral que elege o líder do Governo de Macau. “Durante as reuniões da Comissão Preparatória a principal preocupação era saber como a RAEM ia evoluir, pois naquela altura a economia atravessava uma má situação”, recorda. “Nunca pensei que o desenvolvimento económico pudesse ser tão grande. Muita gente não tem conseguido acompanhar o crescimento, as mudanças têm sido radicais”, acrescenta.

 

Recessão vem aí

 

O desenvolvimento acarreta dificuldades, admite, elogiando a atitude de Edmund Ho. “O Chefe do Executivo é muito inteligente quando diz que a evolução vai trazer problemas, mas não é por surgirem mais questões que não vamos evoluir. O prioritário é encontrar as melhores soluções”.

O boom económico não vai manter-se por muito tempo. “Os bons anos não vão durar eternamente. Temos que estar preparados para enfrentar uma fase negativa, pois em termos económicos há ciclos bons e maus. É preciso criar condições para combater o fim de mar de rosas”, diz, apontando para o que está escrito na Bíblia. “Como no antigo Egipto, em que havia sete anos bons e sete anos maus, também Macau vai ter que viver períodos de recessão”.