Por outras palavras

Num seminário com tradução em simultâneo, realizado em Macau, o orador a dada altura disse: “Em casa de ferreiro, espeto de pau”. O tradutor, que agilmente reproduzia em cantonês as palavras ditas em português, hesitou. Houve um compasso de espera, até que de novo a voz em chinês se fez ouvir: “Vendedeira de óleo de sésamo, penteia o cabelo com água”

 

Ler em chinês e explicar em português, ou vice-versa – é um exercício que une dois mundos estruturalmente muito diferentes. Assim como a língua portuguesa tem as suas variantes, também o chinês varia, chegando a ser incompreensível do Norte para o Sul – de região em região, da fala para a escrita e de tom em tom. Falar chinês o que quer dizer? Quer dizer mandarim, cantonês, xangainês, taiwanês e muitos outros dialectos com ou sem forma escrita.

No seminário com tradução em simultâneo, a mensagem passou de forma clara. Os que dependiam da tradução em cantonês para acompanhar a sessão nem se aperceberam da adaptação improvisada. O ferreiro passou a vendedeira, e o espeto de pau a água.

O tradutor optou por fazer uma correspondência de valores entre expressões. Foi uma correspondência entre culturas distintas que pensam do mesmo modo mas expressam-se de forma diferente.

Também poderia ter sido dito: “Em casa de feiticeiro, canta o fantasma”, como foi sugerido por um dicionário de correspondências entre expressões idiomáticas e provérbios portugueses e chineses. O resultado teria sido igualmente positivo.

A língua chinesa funciona com e por ideias. Há quem diga que é poética por isso mesmo – a chuva não é simplesmente “chuva”, definida numa palavra, mas sim a “água que cai”.

A cada carácter corresponde uma sílaba que, isolada ou conjugada com outra sílaba, representa uma palavra na língua portuguesa.

Comboio diz-se, em cantonês, “fó tché” (romanização livre do autor do texto, seguindo apenas a fonética dos caracteres), literalmente “fogo carro” que é entendido como “carro de fogo”. Um choco é o “óleo peixe” (“yau yû”), que será “peixe com óleo”.

Para o caso de uma pessoa se sentir “inquieta” e o quiser transmitir por escrito, os caracteres utilizados são o do cavalo e o da pulga. E para se dizer computador, associa-se a electricidade ao cérebro: “tin lôu” – cérebro eléctrico.

삽났

Comboio

魷魚

Choco

電腦

Computador

 

 

Idiossincrasias

 

Numa viagem ao continente chinês, um antigo governador de Macau, quando recebido pelas autoridades locais, foi elogiado devido ao seu nome em chinês.

Os nomes chineses são geralmente escolhidos pela forma como soam e pelos caracteres que o compõem. Querem-se bonitos de “ler” e de “ouvir”. Em suma, que sejam de bom agoiro.

Com frequência também têm uma relação fonética com o nome original da pessoa, caso esta seja estrangeira. No caso do antigo governador de Macau, os elogios prosseguiram até que um dos responsáveis chineses resolveu referir-se ao seu próprio nome e começou a comparar o que um e outro significam.

O antigo governador de Macau apenas sorria sem entender nada do que estava a ser dito, o seu tradutor não conseguiu explicar as análises aos caracteres feitas em chinês nem as expressões, por vezes idiomáticas, que apenas têm sentido no seio da cultura chinesa.

 

Desenhar a vida

 

Os caracteres chineses são todos ideogramas (ou logogramas), e dentro dessa classificação, que é geral, existe o subgrupo dos pictogramas, dos ideogramas simples, dos ideogramas compostos, dos ideofonogramas, dos empréstimos e dos empréstimos falsos.

 

 

휑墩彊삽

Sol, lua, água e fogo

 

Os caracteres para Sol, Lua ou água representam exemplos de pictogramas – são construções figurativas da realidade.

Os pictogramas são cerca de 800 num repertório com mais de 50 mil.

No caso dos ideogramas simples, encontramos caracteres que apenas indicam a ideia, como os números um, dois e três.

Um ideograma composto pode ser o carácter para homem na prisão, que se representa através de um rectângulo com o carácter homem no seu interior, ou então associações de ideias entre o Sol e a Lua, que representa a ideia de claridade.

Os ideofonogramas são caracteres formados por um componente ideográfico (que informa sobre o significado) associado a um componente puramente fonético, isto é, que dá uma indicação sobre a provável fonética do carácter resultante. Por exemplo, há diversos caracteres que se pronunciam “ma”, quer em mandarim quer em cantonês, e que têm em comum o facto de conterem, como componente, o carácter “ma”, (‘cavalo’).

 

Exemplo do carácter má, que conjugado com outros dá o som: interrogação, mãe e cavalo

 

Quer ‘mãe’ quer ‘cavalo’ pronunciam-se “ma”, em ambos os dialectos, embora com tons (entoações) diferentes. No caso do carácter que significa ‘mãe’, o radical ‘mulher’ contribui com o significado, ao passo que o componente fonético (o radical ‘cavalo’) dá uma indicação sobre o som.

Os empréstimos – classificam aqueles caracteres cujo sentido original é “estendido” à contemporaneidade. Ou seja, para criar um carácter que indique Internet, a língua chinesa foi buscar o carácter para rede (de pesca) – e “estendeu” o seu significado, para abarcar a “rede” de Internet.

Internet

 

 

Os falsos empréstimos acontecem quando a escrita vai buscar caracteres que caíram em desuso para traduzirem novas ideias, como o carácter de trigo que, em mandarim, passou a significar hoje em dia o verbo Ir.

Na língua chinesa escrita não há conjugações verbais, nem género ou número. “Eu ir comer arroz” é uma tradução literal do cantonês que significa “eu vou comer”. “Arroz”, neste contexto, representa uma refeição.

A globalização e as cada vez mais enredadas relações internacionais introduziram na escrita chinesa certas regras gramaticais “ocidentais”, como a pontuação e a leitura da esquerda para a direita, embora em muitas regiões, e dependendo do dialecto, as forma tradicionais de leitura e de escrita se mantenham.

Em vários aspectos, a língua chinesa falada é mais simples e fácil quando comparada com o português. Parece um puzzle onde a memória vale mais do que a capacidade de entender regras.

Tendo as peças memorizadas “na mão”, para se começar a falar basta juntar o bom senso à lógica e, por vezes, ser um poeta.

A memória é muito importante, em especial na escrita do chinês, porque os caracteres aprendem-se naturalmente, através da memória. É um exercício para a vida. O hábito de qualquer linguagem aprende-se com a repetição mecânica, no chinês mais do que qualquer outra.

Apesar de ser um método de ensino por vezes criticado enquanto metodologia, até agora apresentou resultados junto de alunos estrangeiros que aprendem chinês como língua estrangeira e os alunos chineses começam desde tenra idade a repetir e a memorizar os caracteres da sua escrita.

No Grande Dicionário do Chinês, que abrange recolhas feitas entre 1986 a 1994, existem 56 mil entradas (caracteres). Desses caracteres, há uns três mil que são mais utilizados. Um letrado médio consegue, com esses três mil caracteres, ler um jornal ou um livro de linguagem “simples”, (não os clássicos) e comunicar sem problemas.

 

Sons traiçoeiros

 

A cor azul é “lám sêk” (masculino cor). O som “sêk”, como muitos outros sons em cantonense, mal pronunciado adquire outros significados – neste caso indica, entre outros, “comer” (embora num tom diferente), “saber”, e “acender”.

 

Cor

Azul

 

Ao dizer-se “sán”, dependendo do tom, está-se a dizer “montanha”, “fechar” ou “desfazer/espalhar”. Ao passo que “san” (com a vogal “a” fechada) tanto pode querer dizer “corpo” como “novo”, dependendo da maneira como for escrito.

 

Montanha

 

A pronúncia é um dos grandes problemas para os aprendizes do chinês – trata-se de uma real ditadura dos tons, já que um tom mal pronunciado pode mudar o sentido da mensagem na sua totalidade e causar risos ou desconfiança. Pode até valer fortunas e ser de excelente agoiro.

Os números são disso um exemplo perfeito. O som (em cantonês) que corresponde ao número nove, “kao”, pode também significar ‘cão’, ‘chega’, ‘pénis’ (em calão), ‘salvar’ou ‘globo’. Este exemplo é já um dos grandes clássicos da oralidade cantonense em Macau e Hong Kong, já que os estrangeiros quando tentam dizer ‘nove’ acabam frequentemente por se referir, embora involuntariamente, ao órgão sexual masculino.

O número oito (pát) é de extremo bom agoiro porque foneticamente se assemelha a “fát”, que quer dizer fortuna. E se antes do oito estiver o número dois (i) – que foneticamente se assemelha a “fácil” – temos o número 28 que representa a “fortuna fácil”.

O número quatro (sei) assemelha-se foneticamente à palavra “morte”. É um número que todos, em determinadas regiões da China, querem evitar. E se antes do algarismo quatro estiver o dois – 24 – nada poderia ser pior, já que o “dois” é consonante com “facilidade”, donde uma “morte fácil”.

寧랗힛愷巧

짇펌검씽枷

Números de 1 a 10

O número dez diz-se “sâp”. Assemelha-se a “certeza” ou a “seguro”. Não há nada melhor do que juntar ao dez o oito: “certeza fortuna”.

A crença no bom número é tal que em Macau se leiloam as chapas das matrículas para veículos motorizados. Os melhores números – que oferecem as melhores combinações – são colocados em hasta pública várias vezes ao ano, podendo atingir vários milhões de patacas por sessão.

As matrículas com os números 88-88, 28-88, 22-88, 18-18, 10-80, e por aí fora podem atingir números astronómicos para licitantes de fala cantonense. As matrículas que tenham letras repetidas também são alvo de grande interesse.

Numa sessão de venda em hasta pública, em 2007, um conjunto de matrículas atingiu os três milhões de patacas (cerca de 220 mil dólares norte-americanos).

No entanto, se o licitante for do Norte do continente chinês, onde essas consonâncias não são valorizadas da mesma maneira, as matrículas com números “desinteressantes” para os falantes de cantonês, como o quatro, podem ser de extremo interesse. Tudo depende do som que o número tiver na leitura.

 

De tom em tom

 

O mandarim, língua oficial na China, tem quatro tons (um quinto existe, mas é neutro) e é falado pela maioria da população.

A par com o mandarim, estão os demais dialectos nacionais, entre eles o cantonês, falado principalmente no sul do país e por muitos elementos das comunidades migrantes chinesas.

O cantonês tem, teoricamente, nove tons, embora na prática sejam utilizados apenas seis ou sete.

Discernir as diferenças subtis entre tons é um exercício que pode frustrar não só um estrangeiro aprendiz, se for pouco dotado de ouvido, mas até chineses de regiões diferentes que se desloquem ao sul do país.

Há linguistas que consideram ser a pronúncia do cantonês muito próxima do mandarim arcaico, falado nos séculos XII ou XIII ou mesmo antes.

A poesia da dinastia Tang (618 a 907), época profícua em obras literárias, é geralmente considerada “mais bonita” quando lida em cantonês, por estar mais próxima da forma como a língua soava na altura.

Um residente de Pequim, falante de mandarim, ao chegar a Macau dificilmente entenderá os seus compatriotas. Se decidir aprender o cantonês, provavelmente vai ter dificuldades em perceber as diferenças nos tons usados por este dialecto de Guangdong.

 

B+A nem sempre é “Bá”

 

A diferença (ou semelhança) entre o cantonês e o mandarim falados pode ser comparável à relação do português com o francês, no entanto, a escrita é comum para todos os dialectos codificados, mas por vezes apresentam nuances importantes, que impedem habitantes de determinadas regiões de entender o que está escrito no jornal de uma outra terra.

Pode ser comparado ao português falado no Brasil e ao que se fala em Portugal: quando o brasileiro utiliza expressões regionais ou o calão é provável que um lisboeta não entenda tudo o que está a ser dito ou está escrito.

Mas existe uma enorme flexibilidade na pronúncia do carácter escrito (o que não acontece com o alfabeto latino ou com o alfabeto cirílico), por isso cada carácter pode ser lido de forma diferente consoante a região da China, com sons completamente diferentes, mas o seu significado, regra geral, mantém-se constante para toda a população.

Ana Cristina Alves, doutorada em Filosofia e docente da Universidade de Macau, é fluente na fala e na leitura do mandarim, mas quando lê um jornal em chinês em Macau, por vezes, depara-se com dúvidas. Muitas vezes não entende o que está escrito, apesar de ser o chinês que aprendeu a ler.

Em Macau escreve-se o cantonês com recurso aos caracteres tradicionais, mais complexos do que o regime de escrita adoptado por Pequim – o carácter simplificado – e utilizam-se expressões idiomáticas ou dão-se sentidos a determinados caracteres que em mandarim não são utilizados ou não têm o mesmo significado.

 

門(쳔)‭ ‬porta

學(欺)‭ ‬aluno

說(綱) falar

Exemplos de caracteres tradicionais e simplificados (entre parênteses)

 

O facto de Ana Cristina Alves não falar cantonês não a impede de entender os diários locais, que lê como se fosse mandarim, mas quando tropeça sobre expressões idiomáticas, composições “muito clássicas” ou em “regionalismos”, então tem um problema.

 

Regionalismos

 

Em mandarim, o rés-do-chão não existe. Quando se entra num edifício com vários andares, o rés-do-chão é entendido como sendo o primeiro andar (andar em que se entra).

Razão pela qual não existe o botão “zero” em muitos elevadores na China. Quando se quer procurar a saída de um prédio e se está num elevador, o mais certo é descer ao andar um.

Em cantonês, o andar em que se entra é o andar térreo, que equivale ao rés-do-chão português.

No chinês escrito, a diferença entre rés-do-chão e primeiro andar pode causar ruído ao leitor que não está habituado a uma das expressões.

O “andar térreo” em cantonense diz-se “têi há” (chão baixo), que quer dizer “o nível do chão”. Em mandarim a mesma expressão quer dizer “debaixo do chão”.

Uma camisola de lã em cantonês diz-se “láng sám”, ou seja, “lã roupa”. Acredita-se que a expressão vem da palavra portuguesa lã, embora também seja utilizada em Hong Kong onde a influência foi britânica. Em mandarim, uma camisola de lã diz-se “mao yí”.

O carácter para representar o “láng” na escrita do cantonês, ou seja o ideofonograma, foi “pedido emprestado” ao carácter mandarim que quer dizer “frio”, utilizado no ar condicionado (máquina de frio). Um residente de Pequim ao ler “láng sam” entende “camisa de frio” – fica sem saber o que quer dizer, já que pode ser uma camisa para agasalhar ou, então, para manter o corpo fresco no Verão.

 

잤, 챘擄

Camisola de lã (cantonês e mandarim)

 

Ao escrever-se o carácter a que corresponde “láng” utiliza-se um carácter com a sílaba semelhante ao som “láng”, mas que não quer dizer lã – pediu-se ‘emprestado’ o carácter com o uso original caído em desuso.

Um elevador, em cantonês, é “lip” e o carácter que o representa é composto e não quer dizer absolutamente nada se for lido por um chinês que só saiba falar mandarim. Trata-se de um neologismo introduzido a nível do dialecto cantonês através da palavra inglesa lift, que significa elevador.

Trata-se de uma “genialidade”, de acordo com linguistas, já que o carácter para elevador, dito em cantonês, escreve-se com um carácter radical que representa veículo automóvel e um outro que representa uma pessoa de pé. Em suma, a ideia transmitida é de “veículo móvel que transporta uma pessoa de pé”. Resulta na perfeição em termos fonéticos (porque se lê “lí”, o som mais próximo de lift e graficamente tem uma pessoa de pé dentro de uma cabina, tal como num elevador.

 

Chinês falado difere do escrito

 

O cantonês falado é diferente do cantonês escrito. O mesmo acontece com o mandarim – considerado “mais fácil” na sua oralidade por Ana Cristina Alves.

O mandarim é a “linguagem comum”, do povo, falada pela maioria, recorda. O cantonês é um dialecto “conservador”, que retém muito dos seus traços antigos, originais, e faz gala em manter-se “complicada, usar a forma tradicional dos caracteres”, acrescenta.

O dialecto cantonense pediu “emprestado” ao mandarim a sua forma escrita. Vários professores de cantonês coincidem quando afirmam que “um cantonense aprende a escrever ‘em mandarim’ utilizando os sons do cantonês desde que começa a aprender a escrever”.

Ou seja, as pessoas em Macau aprendem, desde pequenas, os significados de cada carácter na sua língua original, ou seja no mandarim, mas depois adaptam-no para o seu dialecto.

Quando um natural de Guangdong lê em chinês, está na prática a fazer uma tradução mental imediata do mandarim para o cantonês. “É uma espécie de tradução automática onde o que entra na cabeça é o mandarim, mas o que sai processado é o cantonês”, indicam os docentes. Por isso o cantonês falado parece outra língua quando comparado com o cantonês escrito.

Em suma, a língua é comum na escrita mas lê-se de várias formas diferentes.

 

Mundos ilógicos

 

A lógica da composição das frases entre o chinês e o português pode ser muito diferente. Por vezes, um tradutor tem de esperar pelo fim da frase numa das línguas para depois a traduzir para a outra língua.

No Ocidente tende-se do particular para o geral. No oriente, especialmente na China, o progresso mental parte do geral para o particular. Primeiro o ano, depois o mês e por fim o dia. O tempo mental em que um chinês se situa difere do tempo mental de um ocidental.

A lógica matemática é um bom exemplo. Na linguagem chinesa, as casas decimais contam-se de forma diferente – não são registadas três em três algarismos – mas sim de quatro em quatro.

Enquanto um aluno português conta um, cem, mil e por aí fora, um aluno chinês aprende a utilizar como referências um, cem, mil, dez mil e adiante. As casas decimais contam-se de quatro em quatro algarismos. Traduzir em simultâneo o número 2.225. 250 pode representar uma dor de cabeça para uma mente menos treinada.

Um português dirá: dois milhões, duzentos e vinte e cinco mil e duzentos e cinquenta. Um chinês dirá literalmente: 222 unidades de “dez mil”, cinco mil, duas centenas e cinco dezenas.

A grandeza do valor é a mesma, apenas o mundo é diferente…