Sons em crescendo

É raro o prédio de Macau em que não há um jovem aprendiz de pianista. Os violinos, mais discretos à audição dos vizinhos, também estão na cidade, a determinadas horas do dia, a caminho do Conservatório de Música ou da Academia S. Pio X, dois dos vários estabelecimentos de ensino de música do território

 

Na zona Norte da cidade, num edifício industrial, escondem-se as instalações da Orquestra Sinfónica Jovem de Macau onde, ao final da tarde, dezenas de músicos experimentam o prazer imprescindível de tocar em conjunto. Nos pátios de várias escolas, a seguir às aulas, ouvem-se sopros em formato de banda.

Longe estão os tempos em que as salas de concerto tinham quase tantos espectadores como músicos em palco. Nas duas últimas décadas, cresceu o interesse dos jovens pela aprendizagem de instrumentos musicais, incentivado pelo investimento do Governo e pela vontade de entidades privadas. Como consequência, assistiu-se à formação de novos públicos e à melhoria de qualidade das próprias formações da cidade. Da iniciativa de amantes de música sinfónica resultou uma orquestra destinada aos que aspiram à vida profissional entre arcos e batutas. Há música ocidental e oriental, de câmara e sinfónica, clássica e contemporânea.

Quando chegou a Macau no final da década de 1980, o maestro Oswaldo Veiga Jardim encontrou uma “audiência em que eram poucas as pessoas que tinham um passado com ligações fortes à música erudita”. A orquestra que veio encontrar precisava de avançar para a profissionalização. Actual director musical honorário da Orquestra Sinfónica Jovem, tem em mãos a tarefa de procurar na história a evolução da música em Macau, ao longo dos últimos cinco séculos.

Na região administrativa especial desde 2002, Cao Yi Ji, o actual director geral da Orquestra de Macau, apercebe-se de uma grande diferença em relação ao cenário que encontrou quando veio ao território pela primeira vez, corria o ano de 1993. “Sinto que houve uma grande evolução, Macau é agora mais rica e diversificada em termos musicais”, resume.

Já o professor universitário Jorge Morbey tem um ponto de comparação ainda mais distante no tempo. Responsável pela criação da Orquestra Chinesa de Macau, que se encontra a comemorar o 20º aniversário, o antigo presidente do Instituto Cultural recorda-se do tempo em que os lugares das salas ficavam vazios e da transformação a que, uns anos mais tarde, se assistiu, com cadeiras improvisadas para sentar todos os espectadores. No que aos instrumentos chineses diz respeito, não esconde o orgulho de, volvidos tantos anos, a orquestra estar viva e de saúde, cada vez mais forte e pujante. Tal como o Conservatório de Música, para a existência do qual teve um papel determinante.

A música é movimento constante, um trabalho em continuidade, uma tarefa de convicções e persistência. Para quem a toca, para quem a dirige, para quem a promove e a faz sentir mais próxima do público. Estimula o raciocínio como a matemática e enche a alma a fingir ser poesia. Em Macau, a música anda por aqui. Em crescimento. Como a cidade.

 

O maestro na cidade

 

É um trabalho a roçar o estoicismo, a impossibilidade, uma tarefa que só a paciência quase infinita e o gosto pela investigação permitem abraçar. Uma pesquisa sobre a vida musical de Macau desde a chegada dos portugueses até 1999, data da transferência de administração do território, é uma empreitada para muito tempo, que exige mergulhar nos arquivos e tentar imaginar os sons de outros tempos. E que está a ser feita pelo maestro brasileiro Veiga Jardim.

Carioca do Bairro da Lapa, no centro da “cidade maravilhosa”, Oswaldo Veiga Jardim descobriu o mundo da música por contexto familiar. “O meu avô materno era mestre de banda e educou todos os filhos na música. Ouviu-se sempre muita música lá em casa”, recorda. Com cinco ou seis anos de idade, começou a estudar piano e teoria musical. O talento estava lá, os avanços foram rápidos, o caminho natural seria o de concertista. Mas o então adolescente Veiga Jardim tinha outras aspirações: ser maestro.

Com uma autorização especial do Ministério da Educação, por ainda não ter a idade mínima exigida, frequentou a licenciatura de Regência, “como se diz no Brasil”. “Quando era garoto, ia a concertos com o meu pai, à opera, ao bailado, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Ficava sempre encantado com aquilo que se passava no fosso da orquestra, era uma coisa mágica, os cantores no palco, os bailarinos, e ali uma pessoa a dirigir aquela gente toda. Pensava sempre que, um dia, eu queria estar ali”. O sonho concretizou-se com apenas 21 anos, idade com que terminou o curso de direcção de orquestra, com a distinção magna cum laude. Os jornais brasileiros não ignoraram o facto, destacando que Veiga Jardim era, na altura, “o mais jovem regente brasileiro de que se tem notícia”.

Foi a música que o trouxe até Macau, há quase duas décadas. O maestro estava a viver em Madrid, depois de ter ganho o prémio Dell’Arte, uma iniciativa da professora de piano e agente Myrian Dauelsberg, destinada a financiar o estudo no estrangeiro de jovens talentosos. A passagem pela Europa valeu-lhe algumas distinções importantes e o contacto com um mundo musical diferente. Foi, contudo, rápida, pois Dauelsberg, que tinha sido sua professora, abriu-lhe as portas de Macau. “O marido era violoncelista e tinha sido convidado para actuar no primeiro Festival Internacional de Música de Macau. Como ela era empresária, perguntaram-lhe se conhecia algum jovem maestro que estivesse em início de carreira e que quisesse vir para cá trabalhar e reorganizar a orquestra. Ela pensou logo em mim.” Veiga Jardim ponderava ir estudar para a então União Soviética. Optou pela hipótese que lhe dava oportunidade de ser maestro, na prática. “E estou aqui até hoje.”

Oswaldo Veiga Jardim faz parte dos incontornáveis nomes de Macau quando se pensa na evolução da música no território nos últimos vinte anos. Chegou no final da década de 1980, uma época em que se começavam a desenhar os primeiros esforços de profissionalização da área. O jovem maestro detectou os problemas que impediam a música de avançar, a começar pelo formato da orquestra que o esperava. “Quando a gente chega a uma cidade que é culturalmente heterogénea como é o caso de Macau, não pode pensar em oferecer coisas que sejam de difícil assimilação. O repertório de uma orquestra de câmara é normalmente pouco apelativo para a audiência que encontrei na altura em Macau.”

A solução apontada passava pela reformulação do formato da orquestra, transformando-a em sinfónica, capaz de captar um público mais abrangente, pela flexibilidade de repertório que permite. A ideia foi inicialmente bem acolhida por quem decidia, mas houve troca de cadeiras ao nível do poder e o projecto original não chegou a avançar. No entanto, houve uma verba que serviu para criar a Macau Sinfonietta, formação que veio dar um novo impulso ao panorama musical do território. Em 1989, o jornal Standard, publicado na vizinha Hong Kong, escrevia que “a Macau Sinfonietta, uma formação muito credível, na sua estreia sob a condução do maestro brasileiro Veiga Jardim, foi admirável”.

Com a Macau Sinfonietta, o maestro dirigiu concertos em que participaram nomes sonantes como Sequeira Costa e o Coro da Fundação Gulbenkian de Lisboa. Entre 1989 e 1995, conduziu cerca de cem concertos, com a formação local e outras da Ásia. Quanto ao projecto sinfónico de Macau, foi perdendo espaço com a mudança de políticas culturais e de prioridades. Deixou, no entanto, sementes, que viriam a dar origem, poucos anos mais tarde, ao aparecimento de uma outra orquestra, destinada aos jovens músicos locais.

Entretanto, Veiga Jardim continuou a trabalhar na e para a música local. Em conjunto com Maria da Graça Marques, fez um exaustivo trabalho de divulgação da música de Macau, “um resgate da memória musical”, publicado na revista MACAU. O interesse despertado por este trabalho de pesquisa e pela necessária abordagem científica fizeram com que tivesse decidido fazer a tese de doutoramento sobre a vida musical de vários séculos de Macau.

Do currículo do maestro faz também parte o trabalho de composição da banda sonora do filme “A Trança Feiticeira”, a adaptação ao cinema da obra de Henrique de Senna Fernandes. No ensino, concebeu o programa do curso de Música do Instituto Politécnico de Macau, onde lecciona desde 1997. Na mesma altura, Hoi Kin Wa, antigo violinista da Macau Sinfonietta, criou a Associação da Orquestra Sinfónica Jovem de Macau, onde Veiga Jardim desempenha as funções de director musical honorário há mais de dez anos.

Em 2006, foi distinguido pela RAEM com a medalha de mérito cultural. “Quando me telefonaram chorei de emoção. Olhei também para o passado, reconciliei-me com alguns dos fantasmas que tinha”, conta, com sotaque carioca, o maestro brasileiro que diz ser mais de Macau que do Rio.

 

A orquestra em crescimento

 

É um reflexo perfeito do que Macau sempre foi e é, cada vez mais: uma mistura de pessoas de diferentes origens, contextos e formações. A Orquestra de Macau prima pelo multiculturalismo, é uma espécie de mapa-mundo musical, que demonstra bem a universalidade da música enquanto forma de comunicação. Integra músicos nados e criados em Macau, em Hong Kong e na China Continental, mas também vindos dos Estados Unidos, do Reino Unido, da Austrália e da África do Sul. A completar a diversidade, há instrumentistas oriundos de França, Israel, Rússia, Eslováquia e República Checa. Aqui, os idiomas não interessam. O entendimento encontra-se através do som.

Actualmente constituída por cinquenta músicos, a Orquestra de Macau foi fundada em 1983, na Academia de Música S. Pio X. Nasceu da iniciativa do Padre Áureo de Castro e de um grupo de instrumentistas não profissionais. Um ano depois, foi integrada no então Instituto Cultural de Macau. Começou o processo de profissionalização, pela batuta de vários maestros, entre eles o brasileiro Oswaldo Veiga Jardim.

Em 1995, sofre a primeira grande reformulação e passa a ser a única orquestra profissional do território, sendo que era, na altura, uma formação de câmara. Em 2001, o Instituto Cultural do Governo da RAEM decidiu aumentar o número de músicos – de modo a que tivesse dois músicos em cada naipe de instrumentos de sopro – e, volvido um ano, alterou o nome da formação, deixando cair o termo “câmara”. Em termos técnicos, o número actual é, na realidade, próprio de uma formação de câmara, que por norma integra quarenta pessoas mas pode comportar mais dez. A ideia é fazer com que o projecto cresça, levar a orquestra mais longe, explica Cao Yi Ji, o actual director-geral. “Ainda temos algumas vagas e andamos à procura dos músicos adequados, que podem ser de qualquer ponto do mundo”, explica.

“A preocupação é a qualidade”, garante o responsável, “vamos sempre buscar músicos ao exterior quando é preciso, tanto para a própria Orquestra como na qualidade de músicos convidados”. Os convites a instrumentistas de Hong Kong, da China e de Singapura são frequentes e enquadram-se numa lógica de abordagem musical desenvolvida pela orquestra: a captação de uma audiência mais diversificada, pela via da formação de novos públicos, algo que se faz com mais facilidade quanto maior for a orquestra, por serem muitas as possibilidades ao nível de repertório.

“Queremos dar à população de Macau concertos melhores e aumentar o padrão de qualidade da orquestra”, resume Cao Yi Ji. Esse trabalho faz-se, segundo o responsável, não só pela escolha dos músicos que estão na formação, mas também através da escolha do programa para a temporada. “Tentámos escolher um repertório com músicas conhecidas, de modo a atrair pessoas”, explica Cao, destacando obras como a Sinfonia do Novo Mundo, de Dvorák, e a Sinfonia nº 5 de Beethoven.

A Orquestra aposta ainda no conceito dos “Grandes Mestres” – um espaço de abertura a instrumentistas de renome internacional. A presente temporada conta com presenças como as dos violinistas Pinchas Zuckermann, Pan Yinlin, Antje Weithaas e o pianista Alexander Melnikov. Quanto aos maestros, a orquestra destaca Matthias Bamert e Philip Pickett, que ao longo do ano tem, por norma, En Shao na direcção musical da formação.

Com cerca de trinta programas musicais diferentes, a temporada 2007/2008 é feita por quase quarenta actuações. Destinada à população de Macau em geral e aos visitantes que passam pelo território, tem momentos específicos para públicos especiais, como as crianças. “Estamos a colaborar também com associações de Macau e a desenvolver um programa de concertos educacionais, temos ainda concertos multimédia”, refere o director-geral.

É através deste trabalho de criação de novos públicos que se conseguiu, defende o antigo responsável pela Orquestra Sinfónica de Xangai, alterar o cenário da música erudita em Macau. Atrás de novos e pequenos espectadores vêm outros, a música é explicada, passa a ser entendida. Sem esquecer a importância da música de câmara e o público que prefere o intimismo gerado pelo seu carácter erudito, a orquestra vai proporcionando concertos em espaços de menores dimensões, com programas que exigem ouvidos habituados ao género. Tenta-se sempre trazer um nome que encha a casa e garanta a tal qualidade pela qual a formação se quer distinguir.

 

Uma grande orquestra de pequenos músicos

 

Não é regra geral, mas é um fenómeno comum, sentido sobretudo quando os anos de estudo começam a pesar e a idade chama para actividades menos solitárias do que estar fechado numa sala, várias horas por dia, a tocar um instrumento difícil, compasso atrás de compasso, frases musicais repetidas em busca da perfeição que parece ser inatingível. Há talentos que se perdem na exigência que um instrumento musical implica, sobretudo quando adquire contornos de solidão.

É principalmente nesta fase que ganha especial relevo a possibilidade de tocar em conjunto, de partilhar o que se sabe, de se aprender com quem está sentado ao lado. A experiência de orquestra é ainda determinante na aprendizagem de novos contextos musicais, na criação de coordenação, na obtenção de sentido de responsabilidade, no processo de socialização. Os arcos dos violinos têm que estar coordenados, a mais ligeira desafinação individual tem que ser evitada em nome dos objectivos conjuntos.

Estar sentado entre dezenas de instrumentistas e contribuir para um grande concerto é um prazer único, principalmente na fase de aprendizagem. Se a orquestra for grande, ao jeito das filarmónicas de reputação mundial, a satisfação é ainda maior. Foi a pensar neste prazer tão especial e na necessidade de colmatar uma lacuna em Macau que Hoi Kin Wa, em tempos violinista da Macau Sinfonietta, criou, há mais de dez anos, a Associação da Orquestra Sinfónica Jovem de Macau. A experiência tida, poucos anos antes, na formação conduzida pelo maestro Veiga Jardim tinha sido muito marcante. Além disso, ao contrário do que acontece na generalidade dos conservatórios, no território não havia uma orquestra destinada aos que ainda estão a estudar um instrumento.

“É um projecto que me é muito querido, sou director musical honorário desde o princípio”, conta o maestro Oswaldo Veiga Jardim. “Concordei em trabalhar logo com Hoi Kin Wa porque senti que foi uma das pessoas que mais sofreu com a extinção da Macau Sinfonietta, ele próprio disse-me que nunca tinha experimentado uma emoção tão grande como quando tocamos Brahms, Tchaikowsky, Schumann.”

Num espaço da Zona Norte da cidade, num edifício industrial que não deixa adivinhar o mundo que ali se refugia, nasceu, em 1997, a Orquestra Sinfónica Jovem de Macau. O projecto acolheu o apoio do Governo, que continua a permitir o seu desenvolvimento. Trata-se de uma escola de música especial, onde se ensina a tocar em orquestra sinfónica. Conta com a colaboração de vários músicos de Hong Kong, que vêm dar aulas aos jovens instrumentistas, que têm também, com regularidade, a oportunidade de serem dirigidos por profissionais da China Continental, Israel, Austrália, Estados Unidos, França e Bélgica.

Quanto aos alunos, na orquestra principal são 75, sendo que há ainda uma formação B para os mais pequenos. Feitas as contas, acabam por ser duas centenas os jovens músicos que fazem da Associação da Orquestra Sinfónica Jovem uma segunda casa. Depois das aulas, e dadas as condições que o espaço oferece, são muitos os elementos que vão para lá estudar. Esta escola permite ainda que os estudantes sem possibilidades para adquirir um instrumento possam fazer os seus trabalhos de casa musicais.

A orquestra é constituída por instrumentistas ainda em fase de aprendizagem, mas o rigor que se exige é próprio das orquestras profissionais. O resultado é a multiplicação dos concertos (mais de cem, até à data), das deslocações ao exterior e a projecção, em termos de carreira, de jovens talentosos, pois a orquestra acaba por ser não só um espaço de aprendizagem, mas oferece também a oportunidade de se mostrar o que vale, carimbando-se assim o passaporte para voos musicais mais altos.

Tratando-se da maior orquestra de Macau, tem procurado combinar a quantidade de instrumentistas à qualidade do seu trabalho. As colaborações com formações profissionais, ao longo de mais de uma década de existência, são muitas. Já teve apresentações conjuntas com outras orquestras jovens estrangeiras e acompanhou, por exemplo, dois concertos em Xangai do violinista Itzhak Perlman. Este ano, no final de Maio, fez a sua estreia na Europa, no Festival Internacional de Coros de Viena de Áustria. A viagem levou ainda os jovens músicos às principais capitais musicais europeias.

Para o público local, a orquestra apresenta anualmente dois grandes eventos: o concerto de aniversário e o concerto da nova geração de músicos de Macau, mostrando o trabalho realizado durante o ano lectivo e permitindo dar a conhecer os novos talentos que entretanto se destacaram. Este trabalho próximo com a comunidade é uma das formas mais eficazes de formação de novos públicos. Para ver o pequeno violinista, sentam-se nas salas de espectáculos os pais, os irmãos, os amigos da família. Os concertos da orquestra estão sempre cheios e são os mais jovens que abrem as portas de um novo mundo a adultos até então distantes dos sons. E é assim que a música vai crescendo.

 

A orquestra que é uma surpresa

 

É, sem dúvida alguma, a mais peculiar de todas as orquestras de Macau, principalmente para quem não está familiarizado com as especiais sonoridades da música chinesa. Em plena comemoração dos vinte de anos de vida, é um exemplo de como, de uma simples ideia, nasceu um projecto com pernas para andar. A Orquestra Chinesa de Macau não só desempenha com qualidade os seus objectivos principais, como tem desempenhado um papel fundamental no contacto com o Ocidente, a demonstrar que, pentatónica ou não, para que haja música basta vontade.

Quando chegou a Macau, em 1985, o território era um “deserto cultural”. Jorge Morbey tinha vindo de Portugal com a missão específica de presidir ao Instituto Cultural. Uma das tarefas que de imediato abraçou foi sentir a arte da cidade. O ensino artístico era algo que não existia, mas que não tardou a aparecer. No ano lectivo de 1985/86, arrancaram as primeiras aulas de educação artística, que mais tarde vieram dar origem ao Conservatório de Macau. “Havia uma coisa curiosa. Macau, sendo uma cidade de cultura maioritariamente chinesa, não tinha uma orquestra tradicional”, recorda Morbey.

Embora a música na China seja tão antiga quanto o país, a primeira orquestra chinesa digna dessa classificação data de 1935. Exactamente meio século depois, Hong Kong era a referência para quem trabalhava em Macau e foi da então colónia britânica que veio Wong Kin Wai, um professor para dar aulas de música chinesa inseridas no programa de ensino que o Instituto Cultural decidiu lançar. A adesão da população às aulas de música chinesa foi surpreendente, com 190 alunos inscritos logo no primeiro ano.

Decorridos dois anos lectivos, Jorge Morbey e Maria da Graça Marques, uma das responsáveis pelo Instituto Cultural da altura, lançaram um desafio a Wong Kin Wai, que continuava a viver em Hong Kong, deslocando-se ao território apenas para leccionar. “Perguntei-lhe quando é que estaríamos em condições de formar uma orquestra chinesa. Disse-me que já tínhamos músicos, não eram de um nível técnico elevado mas já sabiam tocar para se fazer uma formação”, recorda o ex-presidente. E foi assim que a orquestra começou.

Com duas décadas de concertos, houve alterações diversas ao nível da composição, o número de músicos foi variando e os próprios instrumentistas foram sendo substituídos por outros, bem como os maestros. A orquestra continua, contudo, a ser a mesma. “Foi algo que ficou. Penso que a Orquestra Chinesa nunca vai acabar”, analisa Jorge Morbey. “As dinâmicas, depois de se criarem, continuam e isto é extremamente agradável”, diz, não sem uma pontinha de orgulho. Embora recuse a paternidade da orquestra, não esconde ter uma sensação “muito gratificante” de cada vez que vai assistir a um concerto. “Não posso dizer que seja minha filha, nem pouco mais ou menos, mas é uma sensação muito semelhante. É como quando se constrói alguma coisa, uma casa, um livro, algo que fica.”

A Orquestra Chinesa de Macau, que actua hoje com regularidade dentro e fora do território, começou logo com grande sucesso. E com um toque especial. Os músicos chineses, com os seus instrumentos tão diferentes, foram adaptando temas tradicionais portugueses. Estes “pequenos mimos” da orquestra foram evoluindo e começaram a surgir composições pensadas no intercâmbio cultural e civilizacional do território.

A “Fantasia para Macau” é um dos exemplos mais significativos e continua a ser tocada pela Orquestra: à sonoridade das composições da região Sul da China foi adicionado um arranjo dos “Verdes anos”, de Carlos Paredes. O resultado é surpreendente: quando menos se espera, a contrastar com o ritmo colorido da música chinesa, cheia de percussões, surgem os lânguidos “Verdes anos”, que os êr-hú, os káu-hú e os djông-hu (que fazem as vezes dos violinos) interpretam.

Característica da Orquestra Chinesa de Macau é ainda a assiduidade com que desenvolve projectos com músicos portugueses. “Macau é o encontro de culturas, na arquitectura, na gastronomia, em muitos hábitos e tradições. A música não podia ser diferente”, explica Teresa Tou, coordenadora da Orquestra Chinesa.

Sob a alçada do Instituto Cultural do Governo da RAEM, a formação tem desenvolvido projectos com vários músicos portugueses, por altura do Festival Internacional de Macau e do Festival Internacional de Música. O fadista Camané foi o mais recente músico português a subir ao palco do Centro Cultural de Macau acompanhado pelos 33 músicos da Orquestra Chinesa, no Outono passado. Rao Kyao, Pedro Caldeira Cabral, Kátia Guerreiro e a Ala dos Namorados são apenas alguns dos nomes que actuaram no território nesta lógica de partilha musical. No sentido inverso, a orquestra tocou, numa das várias deslocações que já fez a Portugal, na Expo 98, ao lado de Luís Represas.

No que toca ao futuro da Orquestra, actualmente dirigida por Pang Ka Pang, Teresa Tou vinca que “a aposta é na qualidade, tanto na execução dos temas tocados pelo grupo de músicos, como na formação de novos instrumentistas”.

 

Instrumentos para uma música diferente

 

Num país com uma enorme dimensão e várias etnias, são inúmeras as formas e os meios de expressão musical. A história é milenar, pelo que é (quase) impossível determinar a origem das manifestações culturais, sendo certo que estão permanentemente associadas a uma simbologia muito própria. A música não é excepção à regra e os instrumentos também não. A China é tão diversificada quanto extensa.

Em língua portuguesa, num livro lançado pelos Correios e Telecomunicações de Macau, Oswaldo Veiga Jardim ensina o essencial para se perceber a evolução e as especificidades dos principais instrumentos chineses. As histórias e lendas em torno da música são muitas, mas há dados mais ou menos consensuais, como o facto de os instrumentos serem considerados vozes para as quais a natureza contribuiu, através de diferentes materiais – pedra, metal, seda, bambu, madeira, pele, cabaça e barro – e que serviu para fazer a primeira classificação.

Actualmente, os instrumentos estão divididos em quatro categorias: de arco, de corda dedilhada, de sopro e de percussão. Para muitos destes instrumentos encontram-se variações nas formas e materiais de construção, consoante o ponto da China de onde são originários. Deixamos apenas uma breve descrição dos mais conhecidos.

 

Êr-hú

 

Explica Veiga Jardim que o êr-hú é “o mais representativo dos instrumentos de arco chineses”. Com mais de quinhentos anos de história, é um instrumento versátil, que tem sofrido um processo de evolução de modo a permitir aos músicos corresponder a maiores exigências em termos musicais. Constituído por duas cordas, um braço e uma caixa de ressonância, apresenta uma diferença enorme em relação aos instrumentos de corda ocidentais: o arco é colocado entre as cordas e ambos os lados são usados no processo de obtenção de som.

 

Yangtchín

 

É o equivalente chinês da cítara. Sendo um dos instrumentos mais importantes das orquestras tradicionais chinesas, foi também alvo de modificações ao longo dos tempos, nomeadamente através da introdução de cavaletes que permitiram a criação de semi-tons. Pertencente à categoria de instrumentos de corda dedilhada e toca-se com duas baquetas feitas de bambu.

 

Kutchín

 

Trata-se de um instrumento composto por uma longa caixa de madeira, onde estão assentes sete cordas. A mão direita dedilha as cordas, que são pressionadas pela mão esquerda. Instrumento de grande nobreza, tem um timbre que permite jogar com as harmonias.

 

Tí-tzé

 

Presume-se que tenha surgido na Ásia Menor ou Ásia Central. Com dois mil anos de história conhecida, foi evoluindo com a introdução de mais orifícios e a utilização de bambu de melhor qualidade. Trata-se do equivalente da flauta transversal e desempenha um papel semelhante nas orquestras chinesas, sendo o seu emprego generalizado. A família do tí-tzé é composta por outros instrumentos semelhantes, de diferentes dimensões, que produzem sons mais ou menos agudos.