Vidas a galope

Macau já é conhecida como a Las Vegas da Ásia, mas antes dos casinos nascerem a cada esquina, já se apostava em corridas de cães e de cavalos. Hoje, o desporto rende muito menos do que as mesas de jogo, mas não desiste. Esta é a história de animais que nasceram para correr

 

O apostador é filipino. Vê-se nos traços e no tom de pele. Ainda os cavalos vão a meio da corrida e já ele se levantou várias vezes de papel branco na mão. Ergue-se, mas logo volta à cadeira, resignado à imagem da televisão colocada à sua frente. O dia está de chuva e os números desenhados nos dorsos dos cavalos vêem-se mal. Mais vale olhar para o ecrã para ter a certeza se ganhou ou não. E ganhou.

A corrida acaba e, com ela, o apostador salta e olha para o lado, tentando partilhar a alegria. O sortudo acaba a sorrir sozinho, de papel branco na mão, no meio de uma bancada.

O Jockey Clube de Macau (JCM) abriu em 1989, e, com duas corridas semanais, parece perder adeptos de ano para ano. Se em 2003 o montante apostado foi de 5207 milhões de patacas (equivalente a cerca de 652 milhões de dólares norte-americanos), em 2007 já só chegou aos 2080 milhões. Os valores, divulgados pela Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, não criam, no entanto, desânimo. Pelo contrário, nada é deixado ao acaso. Ainda há demasiado em jogo.

Atrás da pista e do gigante placar electrónico onde passa a corrida em directo, atrás das bancadas para 15 mil pessoas, atrás do espectáculo de ver aqueles animais enormes, luzidios, musculados a correr para além das suas forças, está montada uma enorme máquina de empregados, estábulos, infra-estruturas e investimentos.

“Os animais são escolhidos a dedo e nada pode falhar porque são produtos de luxo. Por outro lado, o próprio Jockey tem de funcionar na perfeição porque emprega muita gente, já é um dos ex-libris de Macau e também tem uma grande importância a nível de doações para caridade”. Yen Tai Kei é o responsável dos estábulos do Jockey e a seu cargo tem os 600 cavalos que ali correm. Conhece profundamente o JCM e as exigências dos cavalos de corridas. No entanto, só subiu para cima de um cavalo duas vezes na vida.

Entrou como tradutor de inglês no Jockey Clube de Hong Kong, sem nada entender de cavalos. Chegou a Macau em 1992 e logo foi para o JCM onde hoje trata por tu cavalos, treinadores, jockeys e proprietários de equídeos campeões.

“A grande maioria dos donos dos cavalos é de Hong Kong, só 30 por cento provém de Macau, e muitos têm mais do que um cavalo. São homens de negócios que podem investir neste tipo de produto, mas penso que mais do que investimento, possuir um cavalo de corrida é uma questão de status”.

 

Sorte e fortuna… até aos dez anos

 

Lucky, Fortune, The Storming Force, The Super. Os nomes dos cavalos são sugestivos, pedem vitórias, chamam sucessos. Mas quem os vê, pela manhã, já depois do treino, fechados nas suas boxes, com ar tranquilo de quem nada tem com que se entreter, nunca diria que chegam a correr a mais de 60 quilómetros por hora. Os estábulos têm ar condicionado, as “camas” dos animais são mudadas diariamente. Não há maus cheiros, nem barulho de fundo. Os estábulos são locais ascéticos. Silenciosos. Frescos. Embora estes cavalos comecem o seu exercício diário às quatro e meia da manhã, têm vida de reis, pois a partir das sete e meia  já pouco ou nada mexem os músculos. E só precisam de provar as suas capacidades duas vezes por mês.

Tudo começa mal nascem. Já nascem para correr, a velocidade está-lhes no sangue. Há quem diga que os cinzentos são os melhores. Há quem os escolha pelo seu porte atlético, pela sua energia. Mas a verdade pura e dura é que a velocidade está na linhagem. Estes cavalos nunca farão mais nada, provavelmente nem procriar, já que Yen Tai Kei admite que 95 por cento dos cavalos são castrados e só existem três éguas no Jockey Clube. Os machos são mais rápidos e os contactos com fêmeas só os distrai da missão de uma vida.

O treino inicial é feito no país onde nascem, pelo que, chegados ao JCM, já vêm cavalos de corridas feitos. Em Macau, a carreira começa aos três anos, “mas na Europa começam aos dois, por exemplo”, explica Yen.

“São os proprietários que escolhem o treinadores dos seus cavalos. Existem 25 treinadores. Cada treinador tem a seu cargo um estábulo onde estão entre 12 a 45 cavalos e prepara-os individualmente, conforme as necessidades de cada um”

Mesmo depois da quarentena, os cavalos não correm senão um mês depois, de forma a habituarem-se ao clima e ao ambiente. São flores de estufa. Mais do que animais, são produtos e há que tratá-los como tal. “Eu penso que sim, que os treinadores têm carinho pelos cavalos, mas olham para eles como profissionais, vendo o que precisam de estimular, que músculos devem exercitar, ver se estão feridos ou doridos. Os jockeys pelo contrário têm uma relação mais próxima com os cavalos, já que precisam de conhecer bem as suas manhas”.

Se há vida parecida entre um homem e um animal, será a do jockey e a do cavalo de corrida. Ambos estão prontos no estábulo às quatro e meia da manhã para seguirem as indicações dos treinadores. Logo de madrugada os cavalos precisam de andar, correr ou nadar. Às sete e meia estão todos de volta aos estábulos para comerem, e é aí que as existências se dividem.

Um cavalo tem sempre direito a ração. Um jockey é freelancer. Só tem direito a vencimento se trabalhar, e isso não depende só da sua vontade. São os treinadores que escolhem os jockeys dos cavalos que têm a seu cargo.

“Por volta das três da tarde os cavalos voltam a sair. Nessa altura, as camas são mudadas. E depois disso, voltam todos para os estábulos de onde só sairão às quatro e meia da manhã do dia seguinte”.

Em média, os cavalos chegam a ficar fechados 20 horas por dia e, por isso, há treinadores que preferem colocá-los em boxes exteriores durante algumas horas.

“Os cavalos são animais muito sensíveis, há sempre que encontrar um equilíbrio, esforçá-los mas não demais, pedir-lhes mas não demais. É por isso que temos regras muito específicas em relação ao uso de sticks nas corridas. Bater na garupa motiva o cavalo, mas se o júri entender que o jockey está a ser demasiado violento ou se bater na cabeça do cavalo, será penalizado”.

Os cavalos são bem protegidos, cuidados. Têm uma vida boa e descansada até aos dez anos de idade, quando a carreira termina. Aí, é que a vida começa a ser pior. Ou nula, na maioria dos casos.

Muitos só sabem correr, não podem ser usados para ensino ou outro tipo de equitação. São cavalos de corrida. E aos dez anos ainda são jovens, bons para viver, já que a sua esperança de vida é de 30 anos. Mas estes são diferentes, especiais. “Há donos que continuam a manter os seus cavalos até ao fim. São generosos e têm capacidades financeiras para o fazer. Nós temos estábulos só para os animais reformados, onde vivem 60 cavalos e cuja manutenção mensal ronda as 40 mil patacas”, explica Yen.

Alguns também podem ser usados na escola de equitação do Jockey. São os mais mansos, amistosos, flexíveis. Capazes de se adequarem aos cavaleiros menos experientes.

Mas a verdade é que a maioria, a esmagadora maioria, só nasceu para ganhar. E há uma idade para ganhar.

 

A máquina atrás do espectáculo

 

A pista com capacidade para corridas dos mil aos dois mil metros é filmada por oito câmaras. As imagens passam no ecrã gigante sobre a pista de corridas, mas também são divulgadas através de um canal próprio de televisão. Os interessados podem apostar num dos 80 centros de jogo de Macau, através de um dos 600 terminais telefónicos para apostas, ou pela Internet. No Jockey Clube de Macau trabalham 700 pessoas a tempo parcial e outras 1200 pessoas a tempo inteiro, sendo que 600 estão só reservadas a trabalho de estábulo.

Os cavalos vêm do Japão, Malásia, Argentina, da União Europeia, Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos, Canada, Hong Kong, Singapura e Emirados Árabes, e o cavalo mais caro que actualmente vive em Macau custou dois milhões de Hong Kong dólares. No Jockey existe um hospital veterinário, com sala de Raios X e uma de operações, e uma piscina com 1,2 milhões de litros de água para os cavalos exercitarem os músculos. No meio de tudo isto, os animais só correm de dez em dez dias, de forma a estarem sempre no auge das suas capacidades, e os seus donos chegam a pagar mensalmente 25 mil patacas, só para a manutenção diária nos estábulos do Jockey.

 

M. C.