Graça Machel Uma africana “com luz própria”

O emergir da mulher em África

 

Da sua residência de estudante na Alameda das Linhas de Torres, no bairro lisboeta do Lumiar, à Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, passando pelos campos de guerrilha da Frelimo, na Tanzânia, pela euforia da independência do seu país, quando tinha apenas 28 anos, e pelo governo que integrou a seguir, à cerimónia de Doutoramento Honoris Causa na antiquíssima Universidade de Évora, desenha-se o percurso de uma das mais notáveis mulheres africanas: Graça Machel ou “mamã Graça”, como carinhosamente gostam de a tratar os jovens moçambicanos. Para eles, é um símbolo que ultrapassa as próprias divisões partidárias e ideológicas do país.

Ligada pelo casamento e de certo modo por circunstâncias históricas a dois dos mais notáveis líderes africanos – Samora Machel e Nelson Mandela – nunca se assumiu como primeira-dama. Substituiu esse estatuto tradicional das mulheres dos chefes de Estado pela missão que atribuiu a si própria na luta pela cultura, pelos valores humanistas e, principalmente, pela defesa das crianças.

Mas foi a psicóloga portuguesa Maria Belo, quem melhor definiu o perfil de Graça Machel ao sublinhar que “estes dois homens iluminam-na, mas não a ofuscam porque ela tem luz própria”.

“Prefiro ver-me como mulher africana, mulher moçambicana, é tudo”, afirmou na conferência em que participou no Centro Cultural de Belém, durante uma breve passagem por Lisboa, antes de receber o título de Doutor Honoris Causa em Évora.

Apesar das vicissitudes por que tem passado o continente africano, sobre as quais fala “com o coração pesado”, acredita que é um continente de futuro” e que “há uma África Nova, vibrante que está a surgir”. O seu optimismo e esperança baseiam-se na convicção de que “há hoje em África uma geração de líderes sinceramente interessados no combate à pobreza”.

Quis também deixar a ideia da emergência de “uma África positiva” e surge também como símbolo dessa África e do emergir de uma liderança feminina que cada vez se afirma mais, primeiros frutos dos esforços feitos na educação. Claro que há ainda o pesadelo da pobreza, mas isso tem uma explicação: “Não somos um continente pobre. Somos um continente empobrecido”, afirma.

Durante os anos que permaneceu em Lisboa como aluna de Germânicas da Faculdade de Letras, na altura com pouco mais de 20 anos, Graça Machel envolveu-se activamente na luta anti-colonialista, integrando um núcleo clandestino de estudantes das ex-colónias portuguesas. Nas universidades portuguesas vivia-se um cada vez mais intenso ambiente de contestação estudantil e estes estudantes assumiam com crescente intensidade a luta contra o colonialismo.

Tratava-se de células com nível de organização suficientemente elaborado para escapar à vigilância e perseguição da polícia política e que tiveram um papel importante para os movimentos africanos, incluindo na sensibilização dos jovens portugueses primeiras vítimas da guerra colonial, através da sua mobilização forçada para combater em África.

O papel desses núcleos clandestinos revelou-se de grande importância para a guerrilha, principalmente no fornecimento de informações relevantes sobre o que se passava em Portugal, tanto no plano político como militar. Conseguiram mesmo infiltrar um jovem moçambicano branco no Centro de Estudos Estratégicos, onde era feita a formação dos jovens oficiais. A guerrilha passou a conhecer a instrução dada a esses novos oficiais e as estratégias a seguir nas diversas frentes da guerra colonial, inclusivamente saber a data da parida de contingentes militares e o respectivo destino.

 

 

A passagem de Graça Machel por Portugal permitiu-lhe, por outro lado – e como já referiu publicamente – compreender a diferença entre o sistema fascista-colonialista e o povo português.

Os contactos com a guerrilha a partir de Portugal desenvolviam-se nas teias complexas que permitiam actuar na clandestinidade com um mínimo de segurança. Passavam pela Argélia, Paris e, finalmente, Dar-es-Salam, através de Jacinto Veloso, destacado elemento da Frelimo que viria a integrar o governo moçambicano após a independência. Nessa época Graça ainda não conhecia Samora Machel, mas este constituía já, para a jovem activista, um líder carismático. Só o conheceu quando, na perspectiva de vir a ser presa, e por indicação dos dirigentes da Frelimo, abandonou Portugal e foi para o campo de treino de Naswingwea, na Tanzânia, onde Samora se encontrava.

O resto, a ligação afectiva, será uma história íntima, igual à de milhões de seres humanos, apenas tendo como cenário o terreno da luta, a dureza da guerrilha e os sacrifícios que implicavam.

Já em solo africano, Graça Machel fez treino militar de guerrilha e acção política, trabalhava informação, alfabetizava. É importante sublinhar que a Frelimo não limitava a sua actividade apenas à acção militar. A formação política, cívica a alfabetização e o desenvolvimento cultural dos seus militantes era uma componente igualmente importante, provavelmente aquela que transmitiu mais solidez e credibilidade a este movimento.

Formar cidadãos que soubessem os motivos por que lutavam, era tão importante como formar guerrilheiros. Tratava-se de combates diferentes para dois objectivos: a libertação e a independência.

Graça Machel trabalhou em todas essas áreas e deixou a marca de uma mulher africana empenhada no desenvolvimento do seu povo e do seu país. De tal modo esse valor se afirmou que viria a ser a única mulher a participar nas negociações clandestinas entre a Frelimo e os militares portugueses em que foram estabelecidos os acordos para a independência de Moçambique. A posterior entrada para o governo como ministra da Educação foi a sequência lógica desse trabalho de cerca de uma década, tanto nos campos de treino e nas bases da guerrilha como, mais tarde, já nas zonas libertadas do interior do país e no decorrer de mais alguns anos de luta armada com a Renamo.

A passagem pelo Ministério da Educação do Governo de Moçambique ficou marcada por um enorme incremento nesse sector e muito particularmente no acesso das mulheres à instrução. O número de estudantes nas escolas aumentou em 80 por cento, dos quais cerca de 45 por cento do sexo feminino resultado do trabalho desenvolvido por Graça Machel, principalmente em zonas rurais, consciencializando os pais para a importância da educação das suas filhas e combatendo hábitos culturais enraizados. Tanto o regímen fascista português, como a sua extensão colonial, mantinham as mulheres numa situação de inferioridade só alterada em Portugal pela Revolução e em África pela independência das colónias.

O casamento com Samora Machel e a inesperada morte deste num trágico acidente aéreo cujas causas até hoje não foram apuradas, não abalou a determinação de Graça Machel. Ela não conhecia Samora Machel até ir para um campo de treino militar na Tanzânia quando ele já era presidente da Frelimo. Recorda, nas suas entrevistas, que ele queria saber tudo sobre a situação em Portugal. Para isso nada melhor que o contacto e as informações de um jovem universitária, recém-chegada de Portugal e já com um assinalável trabalho de militância. A partir dessas conversas, trabalho e debates, a aproximação foi-se desenvolvendo e conduziu ao casamento com o líder, na altura viúvo da sua primeira mulher.

Em 1986, a África e o mundo ficaram chocados com o acidente aéreo que vitimou Samora Machel e toda a comitiva que viajava com ele. Desaparecia um carismático líder africano quando ainda tinha muito para dar ao seu país e a um continente que ansiava por viver uma independência de paz e desenvolvimento.

Ao choque emocional da tragédia, Graça respondeu com uma enorme determinação no seu trabalho a favor das causas humanitárias que juntos tinham abraçado, não esquece que ficou viúva e os seus filhos órfãos em consequência daquilo que considera um crime que até hoje ninguém investigou com seriedade e nunca deixou de reclamar publicamente tal investigação. Está convencida de que existiu uma conspiração para assassinar Samora Machel na qual teriam participado elementos de Moçambique, África do Sul e Malawi.

Mais tarde, em 2002, veio o casamento com Nelson Mandela. A vida desta mulher africana ligava-se assim, totalmente, a duas das maiores figuras da África contemporânea e aos valores que ambos representam.

 

Um percurso de vida marcado pelos valores humanísticos

 

Graça Machel nasceu em Incadine, na província de Gaza, filha de mãe pobre e analfabeta, como frequentemente sublinha, para exemplificar que todos podem aspirar a uma vida melhor e a desenvolver as suas capacidades, desde que lutem por isso.

O pai morreu três meses antes do seu nascimento, ficando a mãe com sete filhos a seu cargo. Mas, antes de morrer, disse à esposa que a criança que trazia no ventre deveria ir à escola. O seu desejo foi cumprido. Aos sete anos Graça entrou para a primeira classe do ensino primário numa escola de Inhambane. Seguiu-se uma bolsa de estudo para a capital moçambicana e daí o caminho para Lisboa onde se licenciou.

As crianças, como vítimas da guerra e dos vários tipos de conflitos, têm sido ao longo dos últimos anos a causa central da sua vida. No final da cerimónia de doutoramento em Évora, disse aos jornalistas que esta homenagem lhe era prestada “pela modesta contribuição que tenho vindo a dar ao longo da minha vida de adulta, quer no domínio da educação quer da promoção dos direitos das mulheres e das crianças” e dedicou-a “às crianças que não conhecem a paz”.

Na defesa dos direitos das mulheres e das crianças e da luta pela paz tem desenvolvido uma intensa e contínua actividade.

Em 1990 foi nomeada pelo Secretário-Geral das Nações Unidas Especialista para o Estudo do Impacto dos Conflitos Armados na Infância. Como reconhecimento do seu trabalho foi-lhe atribuída em 1995 a Medalha Nanser das Nações Unidas.

De 1994 a 1996 liderou o “Estudo do Impacto dos Conflitos Armados nas Crianças”, na qualidade de Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas. Em 2000 foi membro do Grupo de Conselheiros Especiais sobre Questões de Desarmamento desta organização.

O trabalho desenvolvido valeu-lhe o reconhecimento internacional e vários prémios e distinções honoríficas. Actualmente ocupa cargos de direcção em diversas instituições, como a Fundação das Nações Unidas, a South Centre e a Universidade das Nações Unidas.

O seu doutoramento em Évora foi a mais recente das muitas distinções que lhe têm sido atribuídas. Foi a primeira africana a ser doutorada pela Universidade de Barcelona, é Doutora em Letras pela Universidade de Glasgow, Associada Honorária em Artes pelo Seattle Centre Community College, Doutora Honoris Causa pela Universidade de Essex e Doutora Honoris Causa pela Universidade de Cape Town.

Graça Machel é actualmente presidente da Comunidade de Moçambique, organização sem fins lucrativos por ela criada com o objectivo de promover o desenvolvimento, justiça social, combate à pobreza e protecção das mulheres e crianças, transformada em 1994 na Fundação para o Desenvolvimento.

Porém, a intensa actividade que desenvolve tanto em Moçambique como no âmbito internacional, não afasta o drama que ensombrou a sua vida: a morte de Samora Machel, seu primeiro marido. Recentemente, na África do Sul, voltou a exigir que o inquérito a um acidente nunca explicado, seja reaberto.

 

Para a pequena comunidade estudantil moçambicana de Évora, a visita de Graça Machel – Mamã Graça – e o cerimonial do vivido na sala de actos e nos claustros da Universidade foi um acontecimento tanto inesperado como entusiasmante. Durante um dia eles foram o centro das atenções e participaram activamente num cerimonial para alguns inédito. São cerca de duas dezenas os estudantes de Moçambique que escolheram a histórica cidade alentejana. A maioria frequenta cursos ligados ás áreas humanísticas, saúde e educação.

Para todos eles foi a oportunidade única de conhecer uma compatriota que desde crianças traziam no seu imaginário, como heroína dos tempos modernos, que usa como armas os caminhos da paz, a cultura e a solidariedade à escala global.

Por decisão unânime, o Senado da Universidade, atribuiu a Graça Machel o título de Doutor Honoris Causa, como reconhecimento “do seu papel social a favor da ampliação e generalização dos direitos humanos, em especial das mulheres e das crianças e de uma sociedade civil internacional”.

Graça Machel junta-se assim, a um conjunto de outras grandes personalidade a quem foi outorgada igual distinção ao longo dos anos.

Uma lista de que fazem parte, entre outros,  Leopold Shengor, o “político-poeta” ou o “poeta da negritude”, que lutou pelo direito à identidade étnica; D. Ximenes Belo, Prémio Nobel da Paz, que lutou pelo direito à independência do povo de Timor Leste; Mário Soares, defensor de muitos dos que lutaram pelo direito às liberdades democráticas em Portugal, ele próprio combatente de primeira linha; a Rainha Dona Sofia de Espanha, defensora do direito à cultura ou José Saramago, Prémio Nobel da Literatura.

Mamã Graça partilha agora os claustros da Universidade com todos esses nomes e ainda com outra personalidade muito especial, também combatente das mesmas causas embora com outras armas: Sebastião Salgado, o fotógrafo que através das objectivas das suas câmaras denunciou ao mundo inteiro as violações dos mais elementares direitos das populações exploradas da África e da América do Sul.

Aga Khan, chefe espiritual dos ismaelitas, defensor dos direitos de acesso ao conhecimento e à paz através do diálogo intercultural é outro dos grandes nomes já distinguidos pela Universidade de Évora, cuja história tem muito a ver com os valores que estas personalidades representam no mundo.

Isso mesmo foi destacado no discurso de elogio de Graça Machel pelo reitor da universidade.

“A Universidade de Évora – lembrou – tem a sua quota-parte de responsabilidade no percurso civilizacional da humanidade. Fundada há 450 anos, formou, durante dois séculos, centenas, porventura milhares, de missionários que se diasporizaram pelo mundo, levando consigo a mensagem cristã. Do Japão à América do Sul, passando pela África, os discípulos de Évora acompanharam o achamento de novos territórios, a evangelização dos respectivos povos, mas também o diálogo com outras civilizações, nomeadamente as civilizações do Oriente”.

Referiu-se também aos avanços e recuos no caminho do respeito pelos direitos humanos e recordou que Nelson Mandela foi preso em 1962; Martin Luther King assassinado em 1968; em 1974 Portugal recuperou as liberdades democráticas; as ex-colónias conquistaram a independência; o muro de Berlim caiu em 1989; o apartheid abolido em 1994 e, por último, em 208, Barack Obama foi eleito presidente dos Estados Unidos da América, injectando por todo o mundo uma corrente de esperança.

Mas recordou também os genocídios que entretanto ocorreram, os povos escorraçados das suas terras, “as prisões e os muros físicos e virtuais” que se levantaram por todo o mundo e em particular em África.

“O percurso de humanização da humanidade, isto é, o processo através do qual a humanidade se reconhece como una e indivisível na sua essência, apesar da enorme diversidade étnica e religiosa, é uma conquista cultural. Só através da cultura o homem transcende a sua condição primária, exclusivamente biológica, e é capaz de reconhecer noutro homem, porventura dotado de outro teor de melanina na sua pele, ou sujeito de outro credo religioso, um seu semelhante. Só através da cultura o homem aprende a respeitar e a prezar a diferença”.

Foi neste contexto cultural que Graça Machel viveu no meio académico, um dia bem diferente daqueles que conheceu na sua juventude. Quarenta anos depois, veio encontrar um país e uma Universidade livre, onde os estudantes se integram, sem o receio da prisão e das perseguições policiais que dominaram os meios universitários até 1974.