No princípio era o requinte imperial

“A boa educação vê-se à mesa”, ouve-se com frequência da boca dos pais. Um dito válido na China ou no Brasil. Mas no Império do Meio, em época longínqua, comer mal podia ser razão para que um cidadão acabasse no exílio...

 

No ano 1005, durante o reinado de Jingde da dinastia Song, o imperador Zhenzong

decidiu formalizar por decreto o protocolo nos banquetes imperiais. Resultado – os convidados passaram a ter de se comportar segundo regras muito rigorosas. Tão intrincadas que, para se explicar a etiqueta a aplicar em momentos solenes, chegou a ser necessário um texto com dez mil caracteres.

Partilhar uma refeição com o imperador ou um alto funcionário da corte não era um momento muito ansiado. Era razão para, por vezes, se ‘panicar’. Presente estava sempre um inspector da etiqueta que acompanhava os banquetes, e os que não dominassem as regras podiam ser ostracizados, e casos houve de expulsão do império. Tal era o simbolismo da boa educação à mesa.

Nos dias que correm, nesta China moderna, tudo é menos formal. Ninguém sofre agravos por não saber comportar-se à mesa. No entanto, quem sabe faz um brilharete. Simon Chan é de Hong Kong e gere todos os quatro restaurantes de um hotel em Macau, que tem como principal clientela os ‘VIP’ ligados ao sector do jogo e algumas estrelas do entretenimento da antiga colónia britânica.

Uma das suas responsabilidades ‘menos óbvias’, mas talvez das mais importantes, é certificar-se de que à mesa tudo é preparado como mandam as regras. Principalmente no restaurante chinês do hotel, que até foi agraciado recentemente com uma estrela Michelin: “Devido à influência ocidental, hoje em dia não se obedece ao rigor tradicional da etiqueta chinesa quando se está à mesa, mas muitos dos nossos clientes [chineses] não gostam de desleixo nesse aspecto”.

 

Ordem na mesa

 

‘Esse aspecto’ começa pela ordem pela qual as pessoas se sentam à mesa. Uma reverência ancestral que tem de ser manifestada aos mais velhos. Simon Chan ri-se quando pensa em jantares ou almoços multi-étnicos: “Claro que se temos ocidentais à mesa para partilhar refeições com chineses as coisas mudam de figura. Os chineses riem-se de erros cometidos pelos ocidentais, mas certamente que nós [chineses] também cometemos erros quando comemos à moda ocidental”. Com faca e garfo, queria dizer.

As regras básicas para evitar a troça numa mesa ‘chinesa’ são em muito semelhantes à etiqueta ocidental, no entanto há que acrescentar as superstições.

 

Mesa redonda

 

Simon Chan começa pelo que diz ser o início: “Depois de sentados de acordo com a importância de cada um, sendo o anfitrião o ‘ponto zero’ da mesa, que é quase sempre redonda – porque os cantos não são bons – cortam a sorte -, vem o chá que deve ser servido em ordem de importância, a começar pelos convidados.

Depois, os mais novos servem os mais velhos, os inferiores hierárquicos os superiores, e por aí fora. Não temos o conceito de as senhoras primeiro”. Não esquecer que cabe ao anfitrião certificar-se de que todos estão a servir-se e têm comida suficiente, e não ao empregado da mesa.

 

Utensílios de servir e de levar à boca

 

Uma mesa chinesa compõe-se, na sua versão mais simples, de um prato médio onde se colocam os ossos. Por cima do prato coloca-se a taça que servirá para o arroz e peças de carne, vegetais ou peixe, e ao lado direito do conjunto deve estar uma peça sobre a qual vão repousar os pauzinhos e uma outra para se colocar a colher de servir, que pode também ser apresentada na taça. Por vezes, acrescenta-se um segundo par de pauzinho a cada lugar na mesa. Nesse caso, serão os de servir, e não devem ser colocados na boca. Estes, quando não estão a ser usados, devem estar em repouso e nunca se levam para fora da mesa.”Para as peças que mais dificilmente se servem com os pauzinhos usa-se a colher, mas nunca directamente para a boca. Primeiro coloca-se na taça individual”. A tacinha para o chá está  no canto superior do conjunto.

 

Toalhas só para as mãos

 

“E não há guardanapos”, relembra Chan. “Usam-se lenços de papel. Mas no restaurante poderão ser fornecidas toalhas turcas pequeninas humedecidas, que nunca se devem levar à boca.” São só para limpar as mãos. Chan ri-se: “Não se deve sequer limpar a cara com elas, como se vê com frequência aos estrangeiros fazer. Especialmente no Verão.” Nos restaurantes chineses mais requintados usam-se guardanapos de pano, “uma importação dos costumes ocidentais”.

 

Não se escolhe a comida à mesa

 

Os pratos com a comida são servidos e cada um é convidado a retirar uma peça. Note: A que estiver imediatamente à sua frente: “Nunca escolher nada da travessa, muito menos andar com os pauzinhos de travessa em travessa enquanto não se decide o que se vai comer”, adverte Chan, com ar sério. “É muito má educação, assim como usar o molho que é comum a todos. Se eu pegar numa peça de galinha e a molhar na soja estou a cometer um erro! O molho não é só para mim, é de todos…” Para ultrapassar essa questão, deve usar-se a colher para retirar um pouco do molho e colocá-lo na taça individual e só depois molhar a peça de galinha com a soja da taça. Ou vice-versa.

 

Deferência para com os demais

 

Se cada um tiver uma tacinha com o seu próprio molho, fará dele o que quiser. “A questão passa pelo facto de os pauzinhos serem o nosso instrumento para comer. Não se leva à boca o que depois é usado para se servir do prato comum”, justifica Chan. “Apenas em jantares de família se permite utilizar os pauzinhos com que se come para servir”. Mas o mesmo não acontece com a colher. “A colher nunca deve ir à boca. Muitos estrangeiros fazem isso, está errado. A colher é para servir e os caldos bebem-se”.

 

Ruídos, nunca!

 

“Nunca, nunca, nunca sorver ou fazer barulho com a boca. Muito menos mastigar de boca aberta ou falar enquanto se mastiga. E jamais falar e apontar com os pauzinhos. Também denota péssima educação colocar os cotovelos na mesa!”. Estes ensinamentos Chan está a passar à sua filha pequena e os ocidentais conhecem bem…

 

Mãos, só em casos especiais

 

Os ossos dos pequenos pedaços de carne devem ser colocados no prato onde está pousada a taça, e nunca colocados na mesa, com ou sem toalha. “Não se deve colocar um pedaço inteiro de carne com osso todo na boca, e usam-se sempre os pauzinhos para retirar os ossos e colocá-los no prato. Em casos excepcionais, como cascas de marisco, pode usar-se a mão”. Se são carnes brancas, por muito difícil que seja, a mão não vai à boca…

 

Não sorver o arroz da taça

 

Para se comer o arroz leva-se “de forma graciosa”, recorda Chan, a taça à boca e “empurra-se o arroz com os pauzinhos”. “No arroz japonês, com muita goma, é possível retirar pedaços de arroz com os pauzinhos e levar à boca sem se mexer muito a taça. Mas o arroz chinês costuma ser mais solto, não há mal em elevar a taça à boca”. E recorda, como regra de ouro: “Nunca sorver, chupar ou fazer barulho. Primordial!”. Claro que nem pensar em arrotar…

 

Nunca espetar pauzinhos na taça com arroz!

 

Manda a superstição nunca espetar os pauzinhos na vertical numa taça de arroz. Não é má educação, é pior! Está-se a invocar uma imagem negativa: aos mortos, quando se lhes faz oferendas, espetam-se dois incensos, na vertical, numa taça de arroz. Se isso é feito à mesa significa que se deseja a morte a alguém com quem se reparte a refeição. “E nunca pedir sete pratos num jantar, já que esse é o número de pratos usados num banquete fúnebre!”, acrescenta Chan.

 

Boca do bule longe

 

O bule que contem o chá (por vezes é frequente colocar-se na mesa um segundo bule com água quente para encher o primeiro, que contem as folhas de chá) não deve ter a ‘boca’ virada para nenhuma das pessoas sentadas na mesa. É um sinal respeito. E sempre que o convidado tiver a tacinha para o chá a menos de três quartos da sua capacidade, esta deve ser enchida. E já que se está com o bule na mão, servem-se os demais presentes.

 

Nunca estalar os dedos

 

“Um exemplo de um comportamento muito rude é chamar alguém, um empregado de mesa por exemplo, estalando dedos, apontar com o dedo indicador ou pegar num prato vazio e entregá-lo ao empregado sem que este esteja a levantar a mesa. O empregado é que deve tirar o prato da mesa. Semelhante gesto demonstra que o cliente considera que o empregado não está a fazer o seu trabalho e não está atento! É rude.”

 

Comer depressa e mal…

 

“Comer depressa é má educação. Penso que se deve ao facto de os pais quererem que os filhos comam enquanto a comida ainda está quente porque, como a culinária chinesa tem muita gordura, quando esta fica fria o prato deixa de ser saboroso”.