O que escondem os apelidos chineses

Existem mais de oito mil apelidos chineses, dos quais apenas 19 figuram entre os mais usados. Eles escondem todo um universo de considerações de carácter filosófico e social que vale a pena conhecer. O assunto é de tal importância que um livro dedicado ao assunto, “Os Cem Apelidos”, escrito no século X, era memorizado pelas crianças chinesas para as suas récitas de estudantes

 

Não há um clássico dos apelidos, mas é como se houvesse. Há um pequeno texto que nunca foi elevado a clássico, mas funcionou como tal, uma vez que foi integrado nos currículos das escolas. É《겟소檎》(Baijiaxing), título que literalmente se traduz por Os Cem Apelidos, sendo preciso notar que aqui cem tem o sentido de muitos apelidos, os que circulavam na dinastia Song do Norte (굇芥  960 – 1127), quando o livro foi composto, sendo cerca de 438. Os apelidos foram reunidos em forma de poema para que as crianças os memorizassem com mais facilidade nas suas récitas. Os Cem Apelidos, O Livro dos Mil Caracteres [《푤俚匡》] e o Clássico dos Três Caracteres [《힛俚經》] constituíam os primeiros passos de aprendizagem escolar. Hoje os chineses têm mais de oito mil apelidos, três mil dos quais usados pelos Han, mas há uma lista de dezanove que são os mais frequentes, como adiante veremos. O que nos interessa por agora perceber é a importância dos nomes na cultura chinesa, atestada por o que nos parece, a mais de mil anos de distância, uma grande malvadez, que foi obrigar as crianças a memorizar tantos apelidos.

Antes de mais, há que analisar a estrutura do carácter apelido: 檎 (xing). Este é composto pelo radical de mulher (큽n㉦) e pelo componente de nascimento ( sheng). Por ele ficamos a saber que na China dos primeiros caracteres, o apelido estava ligado à mulher, que detinha o poder numa sociedade matriarcal, onde o nome e a herança passavam de mãe para filhos. No entanto com o caminhar dos tempos, a mulher perdeu o poder, mas o carácter permaneceu, permitindo-nos fazer um pouco de história por meio dele. Os apelidos e tudo o que à organização social dizia respeito foi recolhido e aproveitado pela filosofia confucionista, a base da matriz patriarcal chinesa. É por ela que compreendemos o estatuto filosófico dos nomes, claramente expresso pela boca de Confúcio (왝綾) nos Analectos [《論語》], quanto este se refere à Rectificação dos Nomes. Não surpreende que a defesa do nome e da linguagem surja do lado confucionista (rujia 흐소), já que para os daoístas (daojia 돛소), o que é verdadeiramente importante, o que tem peso ontológico, não pode ser mencionado nem agarrado pelas palavras, a não ser, como veremos, por umas muito especiais. Voltando a Confúcio, quando o discípulo Zi Lu (綾쨌) lhe pergunta o que é fundamental para administrar um país, ele responde-lhe com a rectificação dos nomes, o que deixa o discípulo verdadeiramente surpreendido, já que isso lhe parece trabalho mais próprio para intelectuais do que para executivos – para se falar numa linguagem moderna.

Mas Confúcio explica-se:

Não compreendes. Assim um cavalheiro nunca terá pressa para manifestar as suas opiniões em relação ao que não compreende. Se os nomes não forem rectificados, o que for dito não parecerá razoável, e se o que for dito não parecer razoável os esforços não poderão culminar em sucesso. (Analects of Confucius 1994: 13-3 (〜) 綾犢:柰桐,譚冷!엌綾異페杰꼇列,蓋闕흔冷。츰꼇攣則喇꼇順,喇꼇順則慤꼇냥。)

A rectificação dos nomes é fundamental no que diz respeito ao discurso lógico, como é óbvio, mas também em relação à organização social e ontológica, o que já é menos óbvio, embora seja essencial compreender-se, a fim de captar o que creio ser a essência da mentalidade chinesa. Confúcio diz-nos ainda que se analisarmos cuidadosamente o que é proferido, tal conduzirá à rectificação dos nossos pensamentos que influem, numa leitura ocidental, misteriosamente e, por via da linguagem, na organização social. O filósofo remonta à época do virtuoso imperador Shun (絳) para nos falar de um governo exemplar. Logo a seguir, menciona o rei Wu de Zhou (鷺嶠珙), que é um pouco menos admirável do que Shun, ainda que muito exemplar. O rei Wu certa vez terá afirmado que tinha dez ministros capazes, mas como um deles era mulher, e uma mulher para Confúcio nunca poderia ocupar um cargo político, na realidade só teve nove (Analects of Confucius 1994: VIII -20絳唐낵巧훙랍莖苟撈。嶠珙犢:“貸唐亂낵枷훙。”왝綾犢:“꼽難,꼇페횔빎?鉗坮裂際,異薑為佳,唐婦훙騏,씽훙랍綠。)

Portanto, é através do método da análise dos nomes que organizamos e reformamos a realidade social. Afinal o rei Wu só tinha nove ministros. Qualquer ocidental posto perante este método desconfia. O que foi alterado? O rei Wu teve ou não dez ministros? Teve, sim, e um deles era uma mulher; mas nem nós ocidentais mudamos a nossa perspectiva, nem as marcas deixadas pelo pensamento confucionista são apagadas da cultura chinesa. De acordo com a mentalidade chinesa, se rectificarmos os nomes, alteramos a realidade, tornando-a boa, correcta e justa, ou seja, reformulamo-la de acordo com os nossos valores e ideais.

A “boa” linguagem para os chineses não entra apenas em contacto com a esfera social. Os daoístas dir-nos-ão que ela poderá influenciar toda a realidade, tendo então uma função religiosa, quando é usada com parcimónia em dísticos e outras formas poéticas e, ainda, em frases auspiciosas. Percebemos que os daoístas desconfiam sobretudo da linguagem prosaica, leia-se palavrosa, porque há uma outra resumida e essencial que pode operar verdadeiros milagres quando correctamente utilizada.

É então possível entrever um ponto de encontro linguístico entre as duas mais importantes escolas filosóficas autóctones chinesas: o cuidado com que os nomes são escolhidos para baptizar não só os filhos como todos os gestos considerados criativos. Um criativo “perderá” tempos, que a nós parecerão infinitos, na escolha do seu nome artístico e as pessoas trocam cartões de visita, recebendo-os respeitosamente com ambas as mãos, acariciando-os longo tempo com o olhar. Os nomes são fundamentais. Há, portanto, aliada à filosofia, uma psicologia dos nomes que importa decifrar. Dantes, no tempo dos imperadores, ninguém podia ter o mesmo nome que o imperador. Tempos houve em que nome deste era tão precioso que não podia ser proferido e qualquer descuido conduziria o incauto à morte. O nome, do ponto de vista psicológico, solidamente assente na mais pura magia, é construtor de uma personalidade. Ele determina o que a pessoa há-de vir a ser e, por isso, tem grande importância não apenas do ponto de vista individual como social.

Nos primeiros tempos da China comunista muitos eram os homens que se chamavam, de acordo com a crença construtora marxista, Construir o País (Jianguo 쉔國), Construir o Exército (Jianjun 쉔軍) e nos tempos mais quentes da Revolução Cultural, o vermelho passou para primeiro plano nos nomes: Vermelho (Hong 紅) e Sempre Vermelho (Yonghong 湛紅). Mas nos tempos da reforma e abertura os valores e gostos são outros e, actualmente, distinguem-se a Riqueza (Fu 말) e o Rejuvenescimento da China (Xinghua 興華).

Assente fica que a escolha de um nome é parte constitutiva, segundo a psicologia chinesa, da personalidade de uma pessoa. Logo, pode-se compreender as expectativas dos pais em relação aos filhos pelo estudo dos nomes; além disso também se entendem as expectativas sociais mais constantes na China por um estudo geral dos nomes.

As expectativas variam, ainda, de acordo com o género, o que não é surpreendente, se pensarmos que a filosofia chinesa se baseia num tabela dicotómica relativa aos seus princípios matriciais: o feminino Yin (陰) e o masculino Yang(陽). Recordemos resumidamente quais são as características fundamentais dos dois princípios primordiais: o Yang é criativo, luminoso, inteligente, sólido, firme e persistente; o Yin é passivo, escuro, flexível, fraco…É então natural que os nomes masculinos e femininos variem de acordo com as características traçadas nos princípios filosóficos fundamentais dos chineses. Logo, as mulheres terão nomes relacionados com a beleza, a fragrância, a suavidade, a flexibilidade, a fé e a castidade e os homens nomes que apelam às características consideradas masculinas, tais como a força física e a capacidade de construção, a iniciativa, a criação de riqueza e a rectidão moral.

Vejamos alguns dos nomes femininos mais usuais: Tesouro (Zhen 勵), Delicadeza (Ling 줬), Beleza (Mei 쳄), Lótus (Lian 蓮), Fragrância (Fen 롬 e Fang 렐),  Vermelho (Hong 紅), Fénix (Feng 鳳), Jade Verde (Cui답), Andorinha (Yan 邏) e Ágil (Min 츌).

E quanto aos nomes masculinos mais ouvidos? Temos: Força (Qiang 強), Cultura e Talento Artístico ( Wen 匡), Riqueza ( Fu말), País ( Guo 國) , Luz ( Guang 밟), Brilho (Ming 츠), Boa Estrutura Física (Wei 偉), Montanha (Shan ), Belo (Jun 에), Grandes Ondas (Tao 濤 ), Vasto, Poderoso e Generoso (Hong 브), Família (Jia 소), Inspiração e Entusiasmo (Zhen 驪), Brilhante e Próspero (Hua 華).

Note-se que esta é a tendência normal, porque também hoje a mistura de géneros e, logo de características, chegou aos nomes na China. Isto significa que podemos encontrar mulheres com nomes tradicionalmente considerados masculinos e vice-versa. Mas não nos enganemos, porque uma análise de alguns nomes masculinos mais frequentes denota bem que as características que os chineses esperam dos seus filhos machos têm a ver com o desenvolvimento da força física e a capacidade de criar riqueza literária e material, bem como o que normalmente esperam das suas filhas é que sejam belas, bondosas e castas, ainda seguindo o modelo da Bodhisattva Guanyin.

Se eu fosse chinesa, e dada a diversidade de nomes próprios por que se pode optar, escolheria um bem feminino, pleno de sentido, como Bai Ju (겜앞), que se traduz por Crisântemo Branco, simbolizando a sinceridade ou, ainda, Shui Xian (彊鉤), sendo o nome dado à flor Narciso, que literalmente se traduz por Água Imortal, prometendo o auto-respeito e a bondade a todos os Narcisos deste mundo. Também me poderia chamar Meigui (천밧), que é a nossa Rosa, o que me conferiria misteriosamente o porte gracioso destas flores.

Se fosse homem e se respeitasse, ainda, a barreira genérica dos nomes, chamar-me-ia Virtude Inteligente (Deming 돠츠) ou Livre Transformação (Zicheng 菱냥).

Mas poderia pretender inovar, cruzando a barreira linguística dos nomes e, nesse caso, porque os tempos realmente mudaram, não haveria qualquer problema que, mesmo sendo mulher, tivesse um nome masculino, leia-se, com os atributos que os homens foram recebendo e acumulando ao longo da história. Para as mulheres não há hoje qualquer problema em assumirem nomes relacionados com a firmeza, a persistência, a força de vontade ou, até, e num pulo gigantesco, a activa construção social e política; podia, então, optar por me chamar País Próspero (Xingguo 興國), obrigando-me o meu nome a corresponder, ao longo da minha vida, às expectativas que o seu simbolismo encerra. Se me chamasse País Próspero teria, de acordo com a magia mais efectiva dos nomes, de contribuir social e politicamente para o desenvolvimento da minha terra.

Chegou a altura de nos debruçarmos sobre Os Cem Apelidos [Baijiaxing 《겟소檎》], que bem poderia ter sido elevado à categoria de clássico, já que o seu papel nas escolas foi determinante; porém, manteve-se, apenas, como referencial escolar e social.

Os dezanove apelidos mais frequentes hoje são: Li (쟀), Wang (珙), Zhang (張), Liu (劉), Chen (陳), Yang (楊), Zhao (趙), Huang (黃), Zhou (鷺), Wu (吳), Xu (其), Sun (孫), Hu (빚), Zhu(聾), Gao (멕) Lin (주), He (부), Guo (벋), Ma (馬).  Estes apelidos já constam de Os Cem Apelidos e será interessante analisar alguns dos comentários que lhes foram acrescentados, porque de início o que havia era apenas a referência aos nomes, sem quaisquer notas explicativas.

Nas notas fornecidas pela tradição chinesa, incluem-se várias obras, entre as quais um volumoso trabalho intitulado Dicionário dos Cem Apelidos [ Baijiaxing Cidian《겟소檎辭듕》] da autoria de Mu Liusen (컫진).

Nos comentários, os chineses procuram traçar a genealogia dos nomes, remontando aos imperadores mais ilustres, tais como Huangdi (黃뒨), Zhuanxu (顓頊),Tang Yao (鉗堯)e Yu Shun (坮絳). Os autores destas explicações, após fornecerem a origem dos nomes e a linha do seu evoluir histórico, terminam com uma enumeração não exaustiva a ilustres portadores dos sobrenomes ao longo da história. Estas notas não pretendem ser um trabalho reflexivo, mas apenas elucidativo do surgimento e desenvolvimento dos sobrenomes. Eles também não seguem a lógica simbólica dos nomes próprios, ainda que os autores ao estudaram o simbolismo dos nomes chamem a atenção para o cuidado que é preciso ter na harmonização do sobrenome com o nome, a fim de que a ligação não provoque uma negação ou, mesmo, uma inversão de sentido, produzindo um efeito auditivo desagradável nos auditores.

O espaço para a criatividade ao nível dos apelidos dá-se pela conjugação com os nomes próprios, quando uns e outros são perspectivados de acordo com a filosofia dos cinco elementos. Por exemplo caracteres que comecem com as consoantes b, f ,h, m e p pertencem à categoria da Água (Shui 彊). Ora segundo esta filosofia dos elementos, um apelido água pode ligar-se com sucesso a um nome próprio constituído por Madeira (Mu 컁), cujas consoantes iniciais são g e k, e fogo (Huo 삽), que tem sob a sua jurisdição as consoantes iniciais d, j, l, n, t e z. Veja-se então a seguinte combinação: Fu Guili (링밧麗), sabemos que o nome pertence a uma mulher, uma vez que se traduz por Bela Rosa.

Baixingjia estreia-se com o apelido Zhao (趙), o que se explica facilmente pelo facto do texto ter sido compilado durante a dinastia Song, cujo fundador tem por sobrenome, recordemos, Zhao. Chamava-se Zhao Kuangyin (趙울慢), ora como se pode verificar em chinês o sobrenome antecede sempre o nome, o que, e num aparte, facilita bastante a elaboração de listas bibliográficas. Na nota ao nome ficamos a saber que este remonta ao mui digno imperador Zhuanxu (顓頊), que, segundo a tabela fornecida num anexo ao Clássico dos Três Caracteres (힛俚經), terá vivido em c. de 2513 a. C, havendo transmitido o apelido à sua prolífica prole, após ter recebido por feudo a cidade Zhao.

Entre os apelidos actualmente mais vulgarizados, encontra-se Sun (孫). É-nos explicado que este sobrenome reenvia para um outro, o Rei Wen (匡) da dinastia Zhou (鷺), muito respeitado por toda a tradição confucionista. O nome pertence ao oitavo filho do Rei Wen, Kangshu (영碣), que possuía o feudo de Wei (衛). Este governante teve um filho Huisun (쁨孫), sendo dele que retiveram o apelido todos os eminentes Sun que a história da China conheceu. Entre os mais notáveis, encontra-se o famoso estratega dos finais do período da Primavera e do Outono (Chunqiu 뉴헬), que viveu no reino de Qi (齊), chamado Sun Wu (孫嶠). Este deixou uma obra com o seu nome, mas resumida em português no título de A Arte da Guerra ( Sun Bingfa 《孫綾깡랬》). Somos, ainda, informados nas notas aos sobrenomes da existência de outro Sun inesquecível, o emérito revolucionário fundador da República Chinesa, Sun Zhongshan (孫櫓).

Li (쟀) foi outro dos sobrenomes que fixei, menos pela genealogia e mais pelas personagens ilustres que o utilizaram. O apelido remonta também ao imperador Zhuanxu (顓頊), tendo sofrido algumas modificações até ter chegado à sua forma actual. Antes terá sido Li (잿), por causa de um juiz famoso que viveu no tempo de Tang Yao (鉗堯), que se chamava Gaotao (臯憬), mas também era conhecido por oficial Li. Este bisneto de Zhuanxu possuía uma cabra milagrosa que o auxiliava sempre a proferir a sentença justa. Como é que o apelido se transformou? Um descendente de Gaotao chamado Lizhen (잿貞) foi perseguido por Zhou (紂), um rei muito malvado. Lizhen para escapar às fúrias reais, escondeu-se debaixo de uma ameixeira, tendo conseguido sobreviver apenas à custa desses frutos, daí ter ficado com o sobrenome de Li (쟀), que em chinês significa ameixa. Houve, ainda, outros portadores notáveis do sobrenome Li, entre os quais refiro Li Er (쟀랐), mais conhecido por Laozi, o famoso pai do Daoísmo a quem é atribuído o Clássico Da Via e da Virtude [Daodejing《돛돠經》]; o filho do fundador da dinastia Tang, Li Shimin (쟀各췽) ou Taizong (格唎) e Li Bai (쟀겜), um dos maiores poetas chineses que viveu durante a dinastia Tang (鉗). Todos estes homens se distinguiram por possuírem uma invulgar abertura de mente e pensamento profundo.

O apelido Zhou (鷺) tem a sua origem no filho do Imperador Amarelo, Houji (빈샹). Encontramos entre as figuras históricas portadoras do sobrenome Zhou, Zhou Enlai (鷺람來), o primeiríssimo primeiro-ministro da República Popular da China; e um dos maiores escritores chineses, muito aproveitado pela ideologia comunista ao tempo de Mao Zedong (챘澤東), Zhou Shuren (鷺樹훙), mais conhecido por Luxun (魯祺).

Note-se, e a título de curiosidade final que He (부), o apelido do actual chefe do executivo de Macau, se encontra entre os mais frequentes, sendo o sentido do seu nome o de Generosa Prosperidade (He Hou Hua 부비鏵).

 

* Professora Auxiliar do Departmento de Português da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Macau