Dez anos após a Reunificação

Aspectos positivos sobre o exercício dos Direitos Humanos em Macau
Dez anos após a Reunificação

Tendo a Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) comemorado recentemente os dez anos de existência, sob o princípio “Um país, Dois sistemas” (2), julgamos oportuno focar alguns aspectos que normalmente passam despercebidos, e que dão um contributo valioso para a promoção e consolidação dos Direitos Humanos  na RAEM.
Tendo, ainda, presente que grande parte dos instrumentos jurídicos internacionais sobre os Direitos do Homem está reservada a Estados soberanos, logo sobre a alçada do Governo Popular Central (3), abordamos ainda em que medida aquele, em estreita colaboração com o Governo da RAEM, tem concorrido para a promoção dos Direitos Humanos na RAEM.

_________________
1 – O presente texto é da exclusiva responsabilidade da autora, não podendo as opiniões nele expressas ser imputadas a qualquer pessoa ou entidade.

2 – A RAEM é uma região com um elevado grau de autonomia excepto em assuntos de relações externas e defesa (cfr. art.s 2.º, 5.º, 13.º e 14.º da Lei Básica da RAEM).
3 – Cfr. Art. 13.º (parág.1) e 138.º (parág.1) da Lei Básica da RAEM.

Um princípio geral

O princípio do respeito pelos direitos e liberdades fundamentais é um princípio geral da RAEM, profundamente enraizado no seu ordenamento jurídico fruto da sua matriz jurídico-civilizacional (4), com consagração constitucional no artigo 4.º da Lei Básica, Capítulo I (Princípios Gerais). (5)
Esta Lei  garante ainda de forma expressa um acervo de direitos e liberdades fundamentais que estão inseridos ao longo do seu texto – Capítulos III (Direitos Civis e Sociais), V (Direitos Económicos) e VI (Direitos Culturais e Sociais), sem embargo da salvaguarda de outros direitos e liberdades em sede de legislação ordinária (cfr. art. 41.º da Lei Básica).
Existem também disposições de fonte diversa em virtude da aplicação de instrumentos jurídicos internacionais sobre os Direitos Humanos na RAEM (cfr. art.s 40.º e 138.º da Lei Básica), que constituem parte integrante da ordem jurídica. (6)
No contexto do respeito e salvaguarda dos direitos fundamentais, é digno de ressalva o princípio da continuidade do ordenamento jurídico, plasmado nos art.s 8.º, 11.º e 18.º (parág. 1) da Lei Básica, ao garantir a continuidade:
(i) da legislação previamente em vigor desde que não contrarie a Lei Básica,
(ii) das características base do ordenamento jurídico de Macau e
(iii) do sistema de garantia dos direitos e liberdades fundamentais.
Existe paralelamente um leque de mecanismos de fiscalização quer de origem interna (judiciais e não-judiciais) (7) quer externa que assegura o efectivo gozo dos direitos fundamentais.
De frisar, por outro lado, que a consolidação deste princípio geral tem vindo a ser efectivada por diversas vias, inter alia, com a tutela de novos direitos, o reforço dos já existentes e a adopção de novos mecanismos de protecção. Porém, a consolidação de um sistema de salvaguarda dos Direitos Humanos depende essencialmente da praxis, i.e. dos magistrados, advogados, académicos, demais operadores do Direito e, em última instância, do próprio indivíduo.

_________________
4 – A RAEM integra a família de Direito romano-germânica e é um sistema monista.

5 – Cf. art.2.º (parág. 4) e anexo I (Cap. V) da Declaração Conjunta Sino-Portuguesa.

6 – O direito internacional convencional prevalece sobre o direito ordinário (cf. art. 1.º, n.º 3, do Código Civil). A publicação em Boletim Oficial da RAEM é condição de eficácia.
7 – Ex: Administrativos, Ombudsman, direito de petição e queixas junto da Assembleia Legislativa.


A aplicação de tratados sobre os Direitos Humanos

A aplicação de tratados sobre os Direitos Humanos na RAEM constitui um elemento-chave na promoção e consolidação desses direitos.
Estando grande parte dos tratados sobre os Direitos Humanos reservada a Estados soberanos, há aqui que salientar o papel desempenhado pelo Governo Central, que em cumprimento das disposições da Declaração Conjunta Sino-Portuguesa e da Lei Básica, tem vindo, por um lado, a consultar o Governo da RAEM sobre o interesse de serem aplicados na Região tratados sobre os Direitos Humanos(8) ampliando, deste modo, o corpo de direitos e liberdades fundamentais, e, por outro lado, a assumir as responsabilidades de Parte relativamente à aplicação desses na RAEM.
Neste contexto, há que destacar, em primeiro lugar, a manutenção da vigência de diversos tratados sobre Direitos Humanos após 19 de Dezembro de 1999, onde a China assumiu perante os respectivos organismos internacionais os direitos e obrigações de Parte em relação à continuidade da sua aplicação na RAEM, ora
(i) em tratados nos quais já era Parte – ex: Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural, Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (em inglês CERD), Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (em inglês CEDAW), Convenção Contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (em inglês CAT), Convenção sobre os Direitos da Criança (em inglês CRC) e Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados e respectivo Protocolo; ora
(ii) em tratados nos quais (ainda) não era Parte – ex: Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (em inglês ICCPR), Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (em inglês ICESCR), Convenções da Organização Internacional do Trabalho (em inglês ILO), Convenção relativa à Escravatura, Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de Outrem, Convenção de Paris contra a Discriminação no Campo do Ensino, Convenção Suplementar relativa à Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura e Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças.)
Em segundo lugar, a aplicação de novos tratados sobre os Direitos Humanos depois de 19 de Dezembro de 1999, por iniciativa do Governo Central, através do processo de consulta estabelecido na Lei Básica – ex: Protocolos Facultativos à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo à Venda de Crianças, à Prostituição Infantil e Pornografia Infantil e relativo à Participação de Crianças em Conflito Armado, Convenções da ILOn.ºs 138 (idade mínima) e 182 (trabalho infantil), Convenção relativa à Protecção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adopção Internacional, Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Intangível, Convenção sobre a Protecção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais e Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência). 

_________________
8 – Cf. art. 138.º da Lei Básica da RAEM.

 

O sistema de promoção e protecção de Direitos Humanos da RAEM, para além de fazer parte da cultura jurídica da Região, tem vindo a ser reforçado por diversas vias

 

O escrutínio internacional 

Da aplicabilidade de tratados sobre os Direitos Humanos resulta colateralmente uma fiscalização por parte da comunidade internacional no que concerne ao cumprimento das obrigações aí plasmadas, mormente a apresentação e discussão periódica de relatórios/questionários, a avaliação por Órgãos de Supervisão, visitas in loco, interpelações e inquéritos.
Também neste quadro o Governo Central tem assumido as responsabilidades de Parte ao assegurar, nomeadamente: (i) a apresentação e discussão periódica de relatórios/questionários relativos à RAEM (ex: ICESCR, CEDAW, CRC, CAT, CERD, ILO, UNESCO); e (ii) a participação da RAEM na delegação nacional junto dos fora internacionais (ex: Conselho sobre os Direitos do Homem(9), UNESCO e ILO)(10). E, o Governo da RAEM, de harmonia com o princípio “Um país, Dois sistemas”, tem sido responsável pela elaboração desses relatórios, bem como pela sua discussão e follow-up.
Um motor de mudança ao apontar deficiências, lacunas ou ao sugerir novas medidas (legislativas, administrativas ou outras) que visem uma maior tutela dos Direitos Humanos são as Recomendações dos Órgãos de Supervisão (ex: Comité sobre os Direitos da Criança e Comité Contra a Tortura); objecto de ponderação respectivamente pela China e pela RAEM.

_________________
9 – Participação da RAEM no primeiro Universal Periodic Review da China, em Genebra, nos meses de Fevereiro e Junho deste ano.

10 – Cf. art. 137.º da Lei Básica da RAEM.

 

 

Medidas legislativas e administrativas

A produção legislativa nestes últimos dez anos tem abrangido diversas áreas, inclusive em sede de Direitos Humanos. Assinalamos, aqui, alguns dos diplomas mais relevantes: o Código do Processo de Trabalho e Lei das Relações Laborais, a Lei sobre o Regime de Reconhecimento e Perda do Estatuto de Refugiado, a Lei da Protecção de Dados Pessoais, a Lei de Bases do Sistema Educativo Não Superior, o Regime Tutelar Educativo dos Jovens Infractores, a Lei de Combate ao Crime de Tráfico de Pessoas, a Lei de Alteração ao Direito de Reunião e Manifestação e o Aditamento à Lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais.
Merecem, igualmente, registo, a criação de organismos especializados, entre outros: o Gabinete para a Protecção de Dados Pessoais, a Comissão de Acompanhamento das Medidas de Dissuasão do Tráfico de Pessoas, a Comissão dos Refugiados, a Comissão para a Protecção das Vítimas de Crimes Violentos e a Comissão de Fiscalização da Disciplina das Forças e Serviços de Segurança de Macau.
Algumas destas medidas decorrem da necessidade de conformar o ordenamento jurídico vigente com a aplicação de certos tratados sobre os Direitos Humanos na RAEM, ou estão em consonância com algumas das Recomendações proferidas pelos Órgãos de Supervisão, tais como: a eliminação do limite de três partos por trabalhadora de licença de maternidade e a extensão de 35 para 56 dias da referida licença na nova Lei Laboral; a criação de um regime eficaz de prevenção, combate e de assistência à vítima de tráfico de pessoas e de um regime de reconhecimento do estatuto de refugiado, ou a garantia de acesso ao Direito isento de qualquer tipo de discriminação.

O envolvimento da sociedade civil

Um dos factores de maior evolução em termos de promoção e salvaguarda dos Direitos Humanos é o envolvimento da sociedade civil na vida política, i.e, no processo de definição, elaboração e avaliação de estratégias ou políticas do Governo, em áreas directamente relacionadas com os Direitos Humanos. A participação activa e integrada das ONG na coisa pública é assegurada através de uma presença significativa em Comissões de Direitos Humanos, designadamente, Comissão Consultiva para os Assuntos das Mulheres, Comissão para os Assuntos do Cidadão Sénior, Comissão de Luta contra a Droga, a Comissão de Luta contra a SIDA e Comissão para os Assuntos de Reabilitação.
A participação da sociedade civil tem igualmente vindo a ser assegurada nos processos de consulta pública de determinados projectos de lei (ex: laboral, eleitoral, jurisdição de menores, segurança e de defesa do Estado ou património cultural).

A promoção e divulgação dos Direitos Humanos

Esta é outra área de relevo, onde o Governo da RAEM tem concentrado esforços ao promover acções destinadas a familiarizar a população local com o direito vigente, fazendo uma ampla divulgação do sistema judiciário e dos Direitos Humanos em geral.
A promoção e divulgação dos Direitos Humanos são uma actividade contínua e permanente, promovida por várias entidades governamentais (ex: Direcção de Serviços dos Assuntos de Justiça, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Gabinete para os Assuntos do Direito Internacional e Gabinete para a Reforma Jurídica), através de diversos meios: media, actividades e currículo escolar, palestras, campanhas, publicações, formação, distribuição de panfletos nas duas línguas oficiais e inglês, garantindo deste modo o acesso à informação a todas as camadas e extractos sociais de Macau. Esta actividade é também partilhada por outras entidades, como sejam a Assembleia Legislativa, a Universidade de Macau e as ONG locais.

Em jeito de conclusão

O sistema de promoção e protecção de Direitos Humanos da RAEM, para além de fazer parte da cultura jurídica da Região, tem vindo a ser reforçado por diversas vias, designadamente com a: tutela de novos direitos, criação de mecanismos não-judiciais, criação de Comissões locais sobre os Direitos Humanos, participação das ONG nessas Comissões, consulta popular na produção legislativa e ampla e contínua divulgação dos Direitos Humanos.

 

O princípio do respeito pelos direitos e liberdades fundamentais é um princípio geral da RAEM

 

Estas medidas aproximam o poder Executivo do cidadão, envolvendo paulatinamente a população local na vida pública, e evidenciam, por outro lado, uma maior consciência e maturidade política por parte do Governo e ‘das gentes de Macau’.
Marco importante na tutela dos Direitos Humanos é ainda o impulso legislativo, administrativo ou de outra natureza decorrente da aplicação de tratados sobre os Direitos Humanos na RAEM que motiva a adequação da ordem jurídica vigente e o escrutínio internacional a que a RAEM está sujeita em virtude da sua vinculação (avaliação e Recomendações).
Por último, é mister realçar o papel do Governo Central que, em conformidade com a Declaração Conjunta Sino-Portuguesa e a Lei Básica, tem por sua iniciativa e em estreita colaboração com o Governo da RAEM, através do sistema de consulta, a ampliar as fontes de direito internacional em matéria de Direitos Humanos na Região e a assegurar o respectivo processo de responsabilização externa. Tal é notório no vasto leque de instrumentos de Direitos Humanos aplicáveis na RAEM após a Reunificação.
Não obstante o muito que ainda há por fazer na protecção dos Direitos Humanos, como em qualquer jurisdição, podemos dizer que o panorama que se avizinha é promissor atenta a gradual consciência e tutela dos Direitos Humanos ao longo destes dez anos.