Os meninos dançam?

Todo o mundo é feito de mudança e a comunidade macaense não escapa a esta realidade. Os seus apelidos são Senna Fernandes, Perez, Fão, Marreiros ou Sales Marques mas os tempos em que vivem são outros

 

Sobrevivência e juventude. É o par que sempre emerge quando se desfia o discurso sobre a identidade macaense. Para os mais velhos, é nos jovens que estão os amanhãs que cantam. Cantam? Há vozes que não afinam.

Primeiro problema: “Somos cada vez mais globalizados e menos macaenses”. Daniel Senna Fernandes, estudante de Direito na Universidade de Coimbra, debate-se entre o voluntarismo e a desilusão. 

 

Crise de Identidade

 

Desilusão porque: “Não existe uma vontade de querer tomar rédeas e liderar a nova geração. Estamos a cair num comodismo extremo e ninguém se lembra que Macau, tal como a conhecemos, está para deixar de existir e, mais, já hoje se nota alguma diferença”.
Voluntarismo porque muitos jovens “estão fora a tirar cursos e, possivelmente, a ponderar o regresso. Pouco a pouco estamos a regressar e a entrar na rotina de Macau e a ‘abrir os olhos’ para os problemas. Acho que daqui a poucos anos teremos um grupo mais diversificado e com diferentes formações e, talvez aí, teremos as armas para nos afirmarmos. É tudo uma questão de tempo e, claro, muita vontade e trabalho”.
Desilusão, voluntarismo, mas também expectativa, construção, oportunidade, como sublinha Sérgio Perez, realizador e funcionário público, que faz uma reserva de princípio, antes de prosseguir: há macaístas e há macaenses. E distingue: macaenses os que “tendo nascido ou não em Macau e, independentemente da sua nacionalidade, origens, credos e religiões, e amando igualmente Macau, tenham escolhido Macau como o local da sua residência e que se integrem nesse caldo de culturas que é a cultura macaense; macaístas os que são produto de uma mestiçagem, ou seja, da união de um pai com uma cultura que não a chinesa com uma mãe oriental, ou vice-versa, e que, por essa razão, assimilaram uma cultura sui generis, que se foi enraizando localmente ao longo dos tempos, revelando-se, no fundo, como que um caldo de culturas”.

 

Parecerá uma distinção despicienda mas é central no que Sérgio Perez considera um problema de fundo, a crise de identidade da comunidade. “Será decorrente dessa falta de definição e posterior aceitação do que seja a identidade macaense que tardam em fazer aparecer não só os líderes da comunidade macaísta em si, mas das restantes comunidades. Podemos verificar isso nas eleições passadas. As listas mais votadas, as tradicionais, praticamente mantiveram as mesmas pessoas, e”, acrescenta, “as listas denominadas ‘jovens’, acabaram por não ter resultados porque os próprios jovens não se reviram nas suas mensagens”.
Ainda assim, da juventude espera-se, literalmente tudo. O impossível? Miguel Senna Fernandes, que encabeçou uma lista eleitoral à Assembleia Legislativa em meados dos anos noventa, desdramatiza, mas não deixa de lançar um apelo “à nova geração de macaenses [para que] assumam o protagonismo necessário e que se dê o necessário apoio para que eles singrem nesta tarefa necessária e de grande responsabilidade de comandar os destinos do nosso colectivo”. “Não que me sinta ultrapassado ou idoso. O que constato é que temos já uma nova geração emergente, feita de gente com know-how e arrojo para estar à frente de uma comunidade”, observa. Confundirá Miguel os seus desejos com a realidade? Os novos que aí estão já fazem uma geração?

 

Onde está a juventude macaense?

 

Daniel, seu familiar mais novo, discorda. Visto de Coimbra “não temos um grupo suficientemente coeso para poder dar ‘asas às ideias’. O Encontro dos Jovens Macaenses tem vindo a mudar isso, mas ainda não se nota um grupo de pessoas que tenha suficiente peso em Macau. Não há uma ‘Juventude Macaense’, que tenha como ideal a protecção das gentes de Macau, da sua identidade, da sua cultura, das suas tradições, da sua gastronomia, do seu crioulo – o patuá”.
Há gente, não há geração e a timidez posta na criação de uma associação de jovens macaenses dá chão às dúvidas de Daniel. A questão geracional não é um preciosismo de linguagem, porque é da consciência comum que se constrói uma geração e as novas, dita Hugo Bandeira, na casa dos trinta avançados anos, “estão a perder a dita portugalidade e a centrar-se na Ásia ou mais na China”. “Isso preocupa-me”. E mais ansioso se demonstra o fundador da Confraria da Gastronomia Macaense quando sabe que, por estes dias, de Lisboa nem bom vento, nem bom casamento. “Portugal tem tantos problemas e nós estamos cá muito longe. Penso que isso joga a desfavor de nós, macaenses, cá”. Portugal intervir?! Ri-se com a sugestão. “Não esperamos que Portugal intervenha, que isso estamos nós à espera há 450 anos”.
Mas se há futuro, ele não pode estar senão nas mãos dos macaenses. Jovens ou menos, incluídos numa geração ou numa qualquer dinâmica, certo para Sérgio Perez é que estes anos de região administrativa chinesa, ao contrário do que se antecipava, acabaram por revelar sinais entusiastas para a comunidade macaense (ou macaísta). “É possível dizer-se que ela atravessou esses dez anos sem grandes sobressaltos e que, se a sua presença foi acarinhada pelo anterior Chefe de Executivo, parece vir a ganhar novos contornos através de pequenos sinais que são transmitidos, como a especial referência que foi feita a esta comunidade, autonomizando-a das restantes, no discurso de apresentação do novo Chefe de Executivo, a forma como os seus representantes foram recebidos pelo Governo Central e até o facto de como o vídeo promocional da RAEM na Expo de Xangai teve como seu principal protagonista o macaense/macaísta Miro (Casimiro Pinto). Espera-se que os elementos desta comunidade se revelem merecedores de serem auscultados com mais regularidade sobre as questões da RAEM e que, por seu mérito próprio, venham ocupar lugares e cargos de maior responsabilidade na sociedade macaense”.

 

Optimismos

 

O pensamento positivo existe. Varia entre a euforia e a depressão, mas não tem razões para isso. Um facto fundamental e transversal é a questão da língua portuguesa, a urgência em defender este património local. Porque é de um património que se trata e porque é neste campo que se poderão criar novas oportunidades de afirmação, cultural mas também profissional. Há quem, entre os mais novos, tenha decidido apostar no campo da tradução, como Licínio Cunha, vinte e escassos anos, e seguir carreira no Instituto Politécnico de Macau, uma das instituições do ensino superior na região, mais atento a esta necessidade básica, para uma Região multilingue, de formar tradutores e intérpretes.
O casino seria o destino mais fácil, mas Licínio entendeu que não. Uma decisão perspicaz se atendermos ao quadro estratégico que a China desenhou para Macau na ligação às economias dos países de expressão portuguesa. Os mais novos estão conscientes desta importância e das portas que esta opção da República Popular pode ter aberto. Se o jogo e seus avatares são ambição de muitos, entre os macaenses mais novos existe alguma repulsa a esse destino.

 

Isto, também, por muitos dos mais novos apresentarem, actualmente, uma escolaridade relativa superior às gerações anteriores e uma ambição consequente com essa formação. As exigências desta nova geração são também mais agudas. E a participação mais intensa nos assuntos da cidade já faz parte do catálogo de expectativas: seja em questões de política dura, matérias de perfil mais cívico, ou de algumas causas, em que os assuntos relativos ao património cultural têm assumido alguma centralidade. Não a partir de uma condição étnica de macaenses, mas enquanto cidadãos da RAEM, e já agora, do mundo. Gente aberta ao mundo, e já agora, permeável a esse mesmo mundo. Significa essa permeabilidade mais um problema para a causa macaense?

“Existe um certo perigo de diluição da cultura macaense na cultura chinesa”, verbaliza Hugo Bandeira. “As nossas grandes lutas neste momento andam à volta do patuá e da gastronomia, e tentar preservar a identidade macaense”.
Para Miguel Senna Fernandes, o problema não está nessa abertura ao mundo ou à China, ou ao que seja, nesse “mais globalizados e menos macaenses”, como dizia Daniel lá atrás. Se a globalização abriu muitas portas, a cultura macaense não pode ficar à janela. “A circunstância de Macau ser permeável a toda uma série de identidades que a globalização tratou de criar, não me aflige. O que me incomoda é a apatia, o deixar andar, o comodismo e a falta de sentido de comunidade”. É uma voz única mas que recolhe um sentido comum.