As saudades do dim sum

A partir do dia 1 de Agosto, vai-se ouvir mais gente a falar português pelas ruas de Macau. São pessoas que cá viveram, mas rumaram a Portugal antes da transferência de administração para a China e que agora organizam-se num grupo do regresso. Para aquecer motores, andaram a festejar a passagem de ano da forma mais tradicional, com dim sum, arroz “chao chao” e “chao min”. E muitas recordações

 

Fecharam o ano de 2010 com uma mesa bem cantonense, preenchida com sopa de wonton, crepes, dim sum de quatro variedades, arroz “chao chao” e massa “chao min”. Dentro de meses esperam estar a comer estas iguarias numa das tascas típicas de comida chinesa no Porto Interior, em Macau. “Se ainda existirem…”, arrisca a economista Carla Prudêncio, que aos 40 anos não esconde o tom nostálgico e expectante que lhe assalta a alma quando fala no projectado regresso à Ásia (a partir de agora chamemos-lhe “sonho”, como eles). Um sentimento, afinal, que soou abundantes vezes nas conversas de perto de uma centena de foliões que escolheram pular para 2011 com o pé direito no espaço Vila Louize, em Lisboa. Com Macau à mesa, na boca, no coração. E, cada vez mais perto da vista, também o erhu.
Neste jogo de sentidos em noite de passagem de ano terminou deficitária a audição. A vontade dos organizadores de contratar um grupo de músicos para tocar o popular violino chinês, que se ouviu primeiro entre as minorias étnicas do Noroeste e que no último milénio acompanhou as mais famosas óperas tradicionais ficou guardado na caixa de resoluções para o novo ano. Não soaram as duas cordas vibradas pela crina de cavalo atada ao arco de bambu, antes uns mais contemporâneos sucessos da música pop dos anos 1980 e 1990. Nem mais: canções, afinal, que marcaram as duas décadas em que viveu (e deixou tantas raízes) no território a maioria dos participantes neste Réveillon. Uma das 12 passas ficou para o desejado regresso, o champanhe brindou a esse sonho comum aos 145 adultos e 27 crianças que estão em “lista de espera” para embarcar a 1 de Agosto.
O mais velho “sonhador” conta 65 anos e o benjamim do grupo Macau Tour 2011 (ganhou expressão através da rede social Facebook) nasceu há poucos meses. Não é por ter nascido numa terra distante, banhada pelo Atlântico, que um dia quando crescer não vai ouvir falar tanto (e tão bem) de Macau. “A maior influência que tenho transmitido aos meus filhos é o gosto pelas viagens e pelo exótico, desde a comida à roupa, música e decoração”, resume Carla Prudêncio, nascida em Moçambique e que em 1982 rumou a Macau para viver dos 12 aos 17 anos. Regressou uma única vez em 1999; é chegada a hora de pisar pela primeira vez o território sob administração chinesa. Numa das últimas reuniões de “retornados”, reencontrou um amigo de quem nada sabia há 20 anos, retomando a conversa como se o último encontro tivesse acontecido um dia antes. “Não sei se pelo local, pela época ou pelas nossas idades na altura em que lá vivemos, mas estas amizades são autênticas e os encontros sempre festejados.”

É Ricardo Nunes, realizador e jornalista da RTP, quem segura as rédeas deste projecto colectivo. Além das memórias pessoais que recuam as últimas a 1997 e que anseia por reavivar, esta é também a oportunidade de mostrar à filha a terra onde primeiro suspirou. “Tal como o resto da minha família directa, a minha filha convive de uma forma regular com as minhas memórias de Macau, nem que seja somente através das fotografias e quadros que estão espalhados pela casa”. Os principais óbices? À parte a conciliação de datas, “sem dúvida nenhuma a questão financeira”. “Mesmo que se consiga baixar substancialmente o valor das viagens, se não obtivermos outros apoios será difícil para alguns de nós conseguirmos concretizar o sonho de regressar e levar as famílias connosco”, completa Ricardo Nunes, que começou por negociar com agências de viagens e está nesta fase a abordar companhias com serviço charter para fretar um avião.
Ouro sobre azul seria coincidir um intercâmbio com um grupo que aproveitasse o mesmo aparelho para passar uma quinzena em Portugal. E, claro, conseguir patrocínios. A festa de passagem de ano, “muito abaixo” das expectativas dos organizadores, com a presença de apenas 33 pessoas, angariou o suficiente para pagar as despesas.

 

Do choque à curiosidade, os anseios pelo regresso

 

De férias marcadas nessa data está Carla Frias, que todos os anos reserva religiosamente (ironias da linguagem secular…) três dias de folga para os festejos do Ano Novo Chinês.

Em Oeiras, esta bióloga de 44 anos, que trabalha no sector das pescas, deixará apenas os quatro gatos que, em Outubro de 1998, despediram-se também “definitivamente” da terra onde Carla viveu “duas das fases mais importantes” da vida: a adolescência, em que frequentou o antigo Liceu Infante D. Henrique, e o primeiro emprego no Laboratório de Saúde Pública. Antecipar o regresso é um exercício nervoso. Recebo frequentemente fotos, sei que muitas coisas mudaram”, adianta, lembrando as “algumas vezes no início” em que se perdeu quando regressou em 1994, após o interregno de dez anos universitários. “As alterações devido à construção poder-me-ão dar um choque, mas já tenho uma ideia de como estão as coisas”, arrisca.
Natural do Huambo (Angola), a primeira coisa que Carla Frias quer fazer quando aterrar é “dar uma volta por toda a Macau para ‘refazer’ a bússola”. E guardar na retina emocionada o jardim Lou Lim Leoc, as casas em que viveu, ir à Rua das Mariazinhas, dos tin-tins, San Ma Lou, Ruínas de São Paulo, Tap Seac, Guia, Mong Há, Barra, Praia Grande, Hac-Sá, Cheoc Van, a vila de Coloane, o velho Nga Tim.
“Tenho visto por fotografias a incrível evolução de Macau, o que me leva a crer que irei certamente sentir grandes diferenças”, compara Ricardo Nunes, antes de acrescentar: “Isso alegra-me e deixa-me muito curioso, embora haja alguma sensação de tristeza nostálgica da Macau dos meus anos que desapareceu”.

Outro dos organizadores da Macau Tour 2011,Alexandre Campos Silva, tem ainda aos 41 uma sensação presa na memória dos seus 16 anos. “Sempre que nos sentávamos à mesa de um restaurante, e mesmo antes de recebermos a ementa, era colocado um copo de chá a ferver, o que nos dava uma sensação de bem-estar e nos deixava preparados para a refeição que se seguiria. Guardo essa imagem. Quero voltar a sentir essa sensação”.
País de Gales – Londres – Macau. O itinerário de Ana Castro, nascida em 1969 em Angola durante a Guerra Colonial, tem ponto de partida distinto e chegada coincidente a uma terra que largou em 1994 com 16 quilómetros quadrados e que anseia por redescobrir agora com uma área quase duplicada. À mãe, padrasto e irmã mais nova, que residem em Macau, quer juntar no próximo húmido Agosto o filho, o companheiro, a outra irmã, a sobrinha e o cunhado. Logo que satisfeitas as primeiras saudades da família, traça o caminho sem hesitar: comer um pudim de amêndoa na zona do antigo Leal Senado, passear pelo mercado e ver as tendinhas, continuar pelas ruas de calçada portuguesa até às Ruínas de São Paulo. O primeiro dia não ficará completo sem, após aquele duche rápido que revigora, encontrar-se com “malta amiga para palmear todos esses novos cantinhos… sem esquecer a noite de Macau e a sua magia”.