Macau mais verde à mesa

Macau acompanha a tendência mundial e vê aumentar o número de estabelecimentos de comida vegetariana no território. A saúde é um dos principais motivos a levar a população a optar pelo ‘verde’ na alimentação

 

Não é um “X” mas uma suástica, ou cruz gamada, a identificar o local. Do sânscrito svastika, a palavra significa “bom agoiro” e “boa sorte” e é um símbolo que vem sendo utilizado por muitas culturas em tempos diferentes. Para os brâmanes e budistas simboliza felicidade, saudação e salvação. No Japão, a ‘manji’ (卍) é usada para representar templos e santuários nos mapas. Na China aparece nas caixas de comida indicando que é vegetariana e que pode ser comida por budistas de princípios mais rígidos.

Perto das Ruínas de São Paulo, na rua do Monte, uma tabuleta com quatro cruzes identifica o restaurante vegetariano Feng Cheng Xuan. Um caso sério de sucesso e quem o frequenta sabe-o. À hora das refeições raramente há uma cadeira vazia. O corrupio de clientes começa por volta do meio-dia e só termina às 21h30. Chegam e sentam-se numa das mesas do primeiro ou do segundo piso. Rapidamente a funcionária pousa a louça castanha terra, uma bacia de água quente e entrega o menu ilustrado com fotos dos pratos – todos feitos com alimentos de origem vegetal e a maioria sem ovo. Rolinhos fritos, beringela, crepes, tofu, cogumelos. Os nomes estão em chinês e têm significados simbólicos. Como as “Bolas de leão cozidas”, feitas de feijão amarelo. O “Pássaro Yago” é um dos mais célebres, apresenta cinco conjuntos de vegetais diferentes e “altamente nutritivos”, assegura o proprietário, Choi Soi Chun. Os preços variam entre as 26 e as 88 patacas.
Choi Soi Chun, 41 anos, é natural de Fukien, na China, mas passou mais da metade da vida em Macau. Abriu o estabelecimento em 2008 porque queria promover a comida vegetariana no território. “Sou budista, mas foi por influência de amigos que há 20 anos decidi passar a comer apenas vegetais. É mais saudável e hoje em dia a criação de animais envolve muitos químicos”, explica.

A ciência dá-lhe razão. Dietas vegetarianas são normalmente ricas em hidratos de carbono, fibras dietéticas, magnésio, potássio, ácido fólico, antioxidantes (como vitaminas C e E) e fitoquímicos, além de apresentarem baixa ingestão de gordura saturada e colesterol, fornecendo diversos benefícios nutricionais. As melhores fontes vegetarianas de cálcio são os vegetais e legumes de folhas verdes, feijões, tofu, figos secos, rabanetes, amêndoas, sementes de chia, de sésamo e de girassol. Quanto aos químicos, Choi Soi Chun refere-se aos animais criados para consumo humano, alimentados com uma quantidade significativa de hormonas de crescimento e antibióticos para resistirem a doenças, sendo a carne que chega à mesa, muitas vezes, de má qualidade.
A ajudá-lo no restaurante conta com nove funcionários – todos vegetarianos. A maioria dos clientes é jovem, na casa dos 20 e 30 anos. “À hora do almoço vêm muitos empregados de escritório e estudantes”, salienta o proprietário. Grande parte são chineses mas também há turistas “e portugueses”, frisa. “Creio que a maior parte apenas vem cá algumas vezes por mês porque gosta de variar. Há um grupo de portugueses que faz isso, vêm mais ou menos uma vez por semana comer comida vegetariana”, conta Choi Soi Chun.
Helen, 60 anos, é australiana e é a primeira vez que almoça, com as amigas e a filha, no Feng Cheng Xuan. “Íamos a passar, espreitámos e fomos especialmente atraídas pelo serviço de louça”, confessa a turista. A filha, Karen, 31 anos, diz que não comeria comida vegetariana em casa mas não se importa de ir a um restaurante vegetariano de vez em quando. “A comida neste é especialmente saborosa e o espaço é acolhedor”, diz. Mas faz a ressalva: “Eu adoro carne”. A jovem conta que tem muitos amigos que adoptaram o regime alimentar vegetariano por causa do aumento do número de doenças, como o cancro. “Acho que é por isso que o vegetarianismo está a ganhar cada vez mais adeptos”, vinca.
De facto, estudos dizem que essa é uma entre as várias razões apontadas para que as pessoas adoptem a dieta verde. Podem ir desde o não gostar de comer carne, passando por questões religiosas, até o respeito pelos direitos dos animais. Aqui existe ainda o termo vegano, para as pessoas que além de não comerem alimentos de origem animal também não utilizam produtos não alimentícios provenientes de animais, como a lã, o couro, a seda e a pele.
Choi Soi Chun estima que existam cerca de 20 restaurantes vegetarianos em Macau, incluindo ‘take-aways’, e não tem dúvidas: “Há cada vez mais gente a tornar-se vegetariana mas o movimento no meu restaurante não tem aumentado, porque a concorrência também é maior”, explica.

 

O oito

 

O restaurante Miu Heung Lam é uma das vítimas dessa concorrência. Há alguns anos, quando batiam as 13h00 o estabelecimento da senhora Shum havia de estar cheio de gente, com clientes oriundos das mais diversas origens: Singapura, China, Taiwan, Hong Kong e Malásia. “Há um advogado português que é cliente habitual e está sempre a tentar convencer-me a abrir um restaurante em Portugal”, conta a proprietária do vegetariano da Travessa do Auto Novo, e recorda-nos o dia em que o general Vasco Rocha Vieira, último governador de Macau no tempo da administração portuguesa, visitou o seu estabelecimento.

Mas os tempos são outros e hoje, à hora do almoço, o restaurante escondido por entre as ruelas do centro de Macau, numa perpendicular à Avenida Almeida Ribeiro, está praticamente vazio. Nem a estátua da deusa Kun Iam e o glamoroso quatro iluminado com a imagem de Sidharta parecem querer mudar a sorte ao restaurante que já conta 31 anos de existência.

 

“Foi o primeiro a abrir em Macau completamente vegetariano”, salienta a senhora Shum, 67 anos, natural de Zhuhai. “O meu marido foi chef durante 20 anos em Hong Kong e resolveu abrir este negócio aqui, que antes ficava na Estrada do Repouso”, acrescenta. A senhora teve sempre a seu cargo as lides da cozinha mas desde que o marido se reformou que toma conta do negócio sozinha. Shum diz que é budista mas não vegetariana. “Só de 15 em 15 dias é que não como carne”, explica. Muitos chineses são vegetarianos apenas na Lua Nova e Lua Cheia, e também nos aniversários, sempre que querem ‘melhor sorte’. Para várias religiões apologistas do vegetarianismo, desde o movimento Hare Krishna aos budistas, hindus e adventistas do Sétimo Dia, a dieta alimentar não é necessariamente uma imposição, ou seja, comer carne não é visto como um pecado. Muitos budistas preferem a dieta vegetariana porque defendem a não-violência, o que é, portanto, uma motivação sobretudo ética.
Os dumplings de vegetais são os pratos mais procurados no Miu Heung Lam. Os preços são competitivos, variam entre as 18 e as 35 patacas. “A maior parte dos nossos clientes é jovem ou de meia idade, poucos idosos cá vêm”, aponta a senhora Shum.
A única mesa ocupada é a de Eva, Kitty e Umi. Mãe e filhas são de Hong Kong e estão de visita a Macau. Kitty, 31 anos, diz que não é vegetariana porque “não dá muito jeito”, sobretudo porque é frequente ter almoços de trabalho e “cai mal” rejeitar a carne e o peixe perante os seus superiores, por exemplo. Já Eva, 57 anos, e a filha mais nova, de 18, são cem por cento vegetarianas. Umi nunca provou carne. “A minha irmã nasceu com um problema cardíaco grave, que herdou da minha mãe, e à nascença os médicos aconselharam a que fizesse uma alimentação vegetariana”, explica Kitty.
Vários especialistas comprovam que uma dieta vegetariana equilibrada é geralmente eficaz em equilibrar os níveis de colesterol, reduzir o risco de doenças cardiovasculares, evitar alguns tipos de cancro e até a impotência sexual. Segundo estudos recentes, os vegetarianos têm menos probabilidade de desenvolver cancros do que as pessoas que consomem carne.

 

O oitenta

 

Kitty não teria qualquer problema se os colegas de trabalho fossem como Lam Cheng. O funcionário da Companhia de Electricidade de Macau costuma ir com os colegas ao Vegetarian Farm, apesar de não ser vegetariano. “Costumamos vir duas ou três vezes por mês porque a comida é boa e é saudável”, explica Lam Cheng, enquanto aguarda o prato favorito: uma espécie de imitação de ‘carne’ às rodelas.

Enquanto isso, o manager do restaurante vegetariano da Avenida Coronel Mesquita, em frente ao templo de Kum Iam, entretém uma turma de ioga que ocupa quatro das dez mesas do restaurante. Raymond Un canta uma canção tradicional chinesa enquanto se passeia sorridente entre a meia centena de clientes.
“Temos sempre bastante clientela até porque várias associações, escolas e empresas, como a CEM e a CTM, costumam fazer aqui grandes almoços mais ou menos uma vez por mês”, explica Un, que trata da gestão do restaurante desde que este mudou de instalações em 2005. O Vegetarian Farm tem a idade da RAEM, 11 anos. O dono é budista e foi por motivos religiosos que decidiu abrir o espaço que já conta com 20 mil membros – clientes habituais que têm direito a 10% de desconto. “Pelo menos duas vezes por ano promovemos jantares para os membros, cujos lucros revertem para doações”, conta. Em 2008 conseguiram reunir 200 mil patacas para apoiar as vítimas do sismo de Sichuan.
A capacidade da sala principal do restaurante é de 310 pessoas. Ao todo são dez funcionários na cozinha responsáveis por confeccionar os petiscos vegetarianos. A especialidade mais célebre, e também a mais cara, é o miolo de bambu com abóbora. Custa 168 patacas. Mas os preços podem variar entre as 20 e as centenas de patacas. Perguntamos a Raymond Un se tem medo da concorrência. “Não, porque temos a vantagem do espaço. Mas é verdade que tem aumentado o interesse pelo vegetarianismo em Macau, e ainda bem.”

Guia para vegetarianos online
Se procura encontrar um restaurante vegetariano em qualquer parte do mundo, o www.HappyCow.net é o sítio certo para procurar. Dedicado exclusivamente à comunidade vegetariana mundial, o portal é uma espécie de bíblia online para os viajantes que não comem produtos de origem animal. Com 12 mil visitas por dia, o website criado em 1999 conta actualmente com cerca de 25 mil membros e 5500 colaboradores que fazem a listagem dos restaurantes em todo o mundo e as respectivas críticas. Totalmente gratuito, é dedicado sobretudo a viajantes e sustentado pela publicidade e os contributos espontâneos de visitantes e donos de estabelecimentos.
Eric Brent, o criador, decidiu fazê-lo inspirado na sua própria experiência. “Viajei muitos anos à volta do mundo sem Internet e foi um grande desafio! Agora é muito fácil”, conta em entrevista à Revista Macau via e-mail. “A maioria dos membros do site é vegetariana ou vegano, o que significa que a informação é correcta e mais interessante do que noutros sites convencionais como o Yelp, OpenTable ou o Google.”
Brent diz que foi a China que o levou a ser vegetariano a 100%. “Em 1989 era um grande desafio ser vegetariano e eu perdi 20 quilos no mês e meio em que viajei na China onde, aliás, o abuso de animais ainda é muito comum. Mas pelo menos hoje em dia há mais restaurantes vegetarianos e são mais fáceis de encontrar, especialmente devido a sites como o HappyCow.net”, explica.
Ronda os 500 o número de restaurantes vegetarianos na China. Em Macau há 20 registados no Happy Cow. “Já estive na RAEM e os restaurantes pareceram-me excelentes e muito integrados na comunidade. Atravessam gerações, há famílias inteiras a frequentar”, salienta. O criador do portal também defende que o número de adeptos da alimentação vegetariana está a aumentar e garante que o Facebook terá a sua quota parte de responsabilidade. “Há muitas páginas e grupos sobre o assunto e o crescimento tem sido explosivo na Europa, América do Norte e Ásia.” A qualidade, os benefícios para a saúde e a apresentação da comida estarão na génese da preferência. Quanto ao prato mais famoso: “Pergunta difícil! A combinação de arroz vermelho, vegetais com tofu, molho de soja e ervas mais salada, é tão simples que acho que deve ser uma das receitas mais feitas e consumidas no mundo.”