Cidade dos poetas

Professores, jornalistas, tradutores, artistas, estudantes ou mesmo funcionários de uma repartição pública. É no desfecho de um dia de trabalho, ao pender da noite, que se tornam escritores

Texto Catarina Domingues

 

Durante o dia são professores, jornalistas, tradutores, artistas, estudantes ou mesmo funcionários de uma repartição pública. É no desfecho de um dia de trabalho, ao pender da noite, que se tornam escritores.

Carlos Morais José, escritor e jornalista fala de angústia. “As mudanças são tão rápidas que as pessoas sentem-se perdidas. Talvez encontrem na escrita uma maneira de exorcizar fantasmas.” A escrita como forma de catarse, ou não, a verdade é que Macau aproxima as pessoas do papel. “É uma terra de escritores”, diz Morais José. “De poetas”, prefere o escritor Kit Kelen. “Para uma população de meio milhão é incrível a quantidade de poetas que aqui vivem, e bons.”

Inspirado pelo número, Kit Kelen publicou uma obra teórica sobre poesia, A Cidade dos Poetas. Mas a expressão não é de agora. Gong Gang, professor de Literatura Chinesa na Universidade de Macau, explica: “Por ser a corrente principal na cultura tradicional chinesa, talvez [a poesia] esteja tão bem conservada em Macau.”

E a história não desmente. Nas idas décadas de 80 e 90, a publicação de poesia em Macau prosperou. Ao recuar ainda mais no tempo, Macau guarda na memória nomes incontornáveis, de escritores em geral e poetas em particular – o jesuíta chinês Wu Li, o britânico Austin Coates, e claro, em língua portuguesa, Camões, Bocage, Camilo Pessanha…

 

“Poeta lê poeta”

Todas as quartas-feiras chega às bancas o suplemento literário do jornal Ou Mun. A página, em formato broadsheet, é uma lufada de novas palavras no espaço informativo. O suplemento inclui poesia, contos e crítica literária. Movidos pelo sonho de sair do anonimato e, quem sabe, de assinar o rosto de um livro, muitos jovens enviam os textos para a redacção do jornal. “Se o trabalho se distinguir, publicamos em formato de livro”, explica Lio Chi Heng, subdirectora editorial.

Desde que o Ou Mun se aventurou na edição, já foram publicadas cerca de 100 obras, uma média de dez livros por ano. Lou Mau, Agnes Lam, Vong Man Fai ou Ji In são alguns dos escritores que tiveram o privilégio de uma encadernação.

Um privilégio, porque em Macau as hipóteses são limitadas. Em vez de editoras comerciais, a edição de livros é feita por jornais, associações ou mesmo pelo Governo. No caso do Ou Mun é um investimento sem retorno e que serve apenas para engrossar o arquivo literário. “Perdemos dinheiro em todos os livros”, lamenta Lio Chi Heng. A subdirectora admite: “Não existe mercado”. Um factor agravado pela “política actual da China, que não permite que os livros sejam distribuídos no Interior do País, um mercado gigante”.

Por Macau, são os escritores que vão dando força uns aos outros. “Poeta lê poeta”, diz Yao Jing Ming. O também tradutor, que lançou a última obra em 2010, não prevê mudanças no panorama literário. À pequenez da cidade junta-se a falta de uma cultura do livro. “Aqui ninguém compra livros.” No que diz respeito aos autores, o poeta acredita que têm feito a sua parte. Agora falta ao leitor fazer a sua. “Folhear e ler. É o acto que dá vida ao livro.”

 

Na língua de Camões

Em Macau, Camões ter-se-á sentado nos penedos para escrever, Bocage dedicou duas odes à mulher macaense e Venceslau de Morais dissertou sobre os costumes locais. E assim poderíamos continuar numa lista infindável de nomes: Camilo Pessanha, Manuel da Silva Mendes e mais tarde Alberto Estima de Oliveira, Rodrigo Leal de Carvalho, Fernanda Dias ou Fernando Sales Lopes. (Numa próxima edição a revista MACAU desenvolverá a temática da literatura em língua portuguesa na RAEM)

Todos passaram por Macau. Uns obedeciam ao chamamento de um trabalho, outros estiveram de passagem. Houve também quem procurasse em Macau um exílio emocional ou político. Independentemente das razões que os trouxeram até cá, encontraram um mundo, por um lado familiar, pela ligação a Portugal, por outro marcado por uma cultura milenar, a chinesa. Um mundo diferente e, por isso, propício à escrita.

A comunidade macaense também contribuiu para a literatura portuguesa, com destaque para Luiz Gonzaga Gomes, Deolinda da Conceição e Henrique de Senna Fernandes, todos já falecidos. Nas últimas décadas do século XX proliferou a publicação de obras em português, até que por alturas da transferência muitos portugueses regressaram a casa. E entre eles muitos escritores.

Hoje, mesmo com um número reduzido de portugueses em Macau, continua a publicar-se na língua de Camões. Está a surgir uma nova geração de escritores, como o fotógrafo António Mil-Homens e a jornalista Luciana Leitão.

 

Inglês em expansão

A ideia de publicar em inglês começou a ganhar expressão há pouco menos de uma década. “Há dez anos, as pessoas ficariam surpreendidas se soubessem que hoje se publica tanto em inglês”, diz Kit Kelen, um dos responsáveis pela Associação de Estórias de Macau (ASM, na sigla inglesa).

Foi exactamente há seis anos que um grupo de escritores locais criou a ASM. O departamento de inglês da Universidade de Macau foi o berço deste projecto e fez-se casa de inúmeros jovens, apaixonados pelo prazer fortuito das letras.

Desde 2005, a ASM já imprimiu, com o apoio da Fundação Macau, do Instituto Cultural e de pequenos parceiros, cerca de 50 livros. Entre contos, romances, composições poéticas, traduções e obras teóricas, destaca-se o lançamento da primeira antologia de poesia contemporânea em inglês I roll the dice, publicada em 2008, e que reúne o trabalho de 120 autores. “Muitos escritores chineses ainda não se sentem confiantes na utilização de um outro idioma”, realça Hilda Tam, que participou no projecto como tradutora e poetisa.

Enquanto o corpo de autores em língua inglesa vai procurando forma, a literatura chega tímida e lentamente às prateleiras das livrarias. Na impossibilidade de consentir intervalos no processo de produção, a Associação está consciente de que não pode parar e que a concorrência na publicação em inglês seria saudável.

 

Para o mundo

Tomemos um romance como exemplo. Se a obra for escrita em inglês, pode transpor fronteiras e alcançar um público vasto. Se o romance for traduzido para chinês e português, então existe a possibilidade de chegar a mais de 2000 milhões de pessoas. A Associação de Estórias de Macau tem procurado trabalhar neste sentido e, nos últimos anos, a publicação de obras bilingues e trilingues é cada vez mais comum. Desta forma “o mundo pode conhecer Macau, a literatura e cultura”, assume Kit Kelen, um dos responsáveis da ASM.

Também a Livros do Meio, uma jovem editora, está a apostar na tradução de obras chinesas para o português. Carlos Morais José, coordenador do projecto, acredita que, sendo uma lacuna na actividade editorial de Portugal e do Brasil, pode ser aliviada por Macau. “E é importante que o Ocidente tenha uma visão da China que não seja tão economicista”, explica. Antes uma visão de tolerância e justiça, que pode chegar ao mundo lusófono através da tradução e interpretação de clássicos chineses, como Confúcio ou o pensador Zhuang Zi.

Morais José realça que “o grande trabalho são as notas aos livros, nomes de pessoas ou de reinos, que não sabemos quem são”. Para isso recorre a tradutores de Pequim. Na prática da tradução literária, Macau tem ainda um longo caminho pela frente e a falta de profissionais estende-se ao chinês, português e inglês. “É necessário formar tradutores”, confirma Kit Kelen.

Com vários trabalhos em tradução, Kelen explica que a ASM criou um processo de tradução colectiva, em que a última fase é realizada por um falante nativo. Afinal de contas, como realça, “de uma obra de arte, faz-se outra obra de arte”.