Nada tenho de meu, um caderno de viagem

Um caderno de viagem em que a caneta-tinteiro e uma resma de papel de carta são substituídas por uma Canon 5D com uma lente 24-77 mm. O mais recente projecto de Miguel Gonçalves Mendes, autor do documentário sobre José Saramago José e Pilar, leva o realizador português e os escritores brasileiros João Paulo Cuenca e Tatiana Salem Levy numa longa viagem pelo Sudeste Asiático. Nada tenho de meu é um poema visual, que começa aqui, em Macau

 

 

Texto Catarina Domingues

Fotos António Mil-Homens

 

É em Macau que inicia este novo projecto. Porquê aqui?

Eu fui convidado para participar no Festival Literário de Macau com a projecção do meu último filme José e Pilar.  Nessa altura soube que os escritores brasileiros João Paulo Cuenca e Tatiana Salem Levy estariam presentes e então pensei que seria interessante fazer uma espécie de diário de viagem, quase à semelhança daqueles diários do século XIX, mas em vídeo.

 

O guião do filme vai tomando forma ao longo da viagem?

Sim. Vai ser uma série online, onde queremos mostrar o encontro de três criadores lusófonos com uma realidade que é próxima e, ao mesmo tempo, distante. No fundo queremos tentar perceber como é que se vêem em termos identitários, em confronto com uma cultura que lhes é alheia. Todas as civilizações constroem-se sobre as ruínas das outras civilizações, por isso há uma espécie de assimilação constante. Penso que no fundo Macau é um reflexo disso mesmo, de uma cultura milenar chinesa com a cultura portuguesa e, de repente, com uma cultura da actualidade absolutamente global.

 

Daqui partem para onde?

O ponto de partida é Macau e a ideia depois seria seguir por uma viagem pelo Camboja, Vietname e Tailândia. O projecto está dividido por vários capítulos, que irão ser colocados online nos jornais  O Globo e Público. A ideia é que numa fase posterior dê um filme.

 

Como pensa materializar o projecto em vídeo?

Há aqui, naturalmente, um grande peso da escrita. A ideia é tentar que eu, através da montagem, consiga manter os mecanismos narrativos que o escritor faz na escrita do seu livro. Daí surgiu a ideia que cada episódio na montagem fosse o trabalhar de uma figura de estilo, como a metáfora, eufemismo, repetição ou clímax. É uma ideia simples, mas acho que pode funcionar.

 

O projecto chama-se Nada tenho de meu, retirado de uma carta de Camilo Pessanha, que viveu em Macau. Uma referência para si?

Camilo Pessanha apaixonou-se por Ana Castro Osório, não conseguia viver em Portugal e veio para Macau destruir-se, morrer, apesar de ainda ter vivido 20 anos. É um poeta absolutamente fabuloso. Também acho impressionante a forma como Wenceslau de Moraes, que viveu aqui e no Japão vários anos, olhou o Oriente. Acho que o mundo ocidental não quis perceber o mundo oriental e sempre olhou de forma exótica e sobranceira para ele. Acho interessante que tenham sido estes autores que acabaram por perceber melhor a cultura chinesa, apesar de serem uns incompreendidos no país de origem.

 

Não teme que este seja também um registo superficial, já que tem tão pouco tempo?

Será sempre um registo superficial. Penso que não existem verdades universais e isto será sempre o nosso ponto de vista sobre uma determinada realidade. Mas o filme não é só sobre Macau, Vietname ou Camboja, é um filme sobre aquilo que estamos à procura na vida real e esperamos que não seja egocêntrico. O nome Nada tenho de meu tem sobretudo a ver com isso, com o facto do ser humano ter de uma vulnerabilidade extrema, não ter nada, mesmo em termos de referências temporais ou geográficas, tudo é uma incógnita, porque no dia de hoje vives em Macau, e não sabes onde viverás amanhã. Portanto será um registo superficial? Provavelmente sim, mas será que para os portugueses que viveram cá durante 10 ou 20 anos e que nunca aprenderam cantonês ou mandarim é uma realidade mais profunda a que conheciam? Duvido.

 

No cinema, Macau foi por várias vezes utilizado como cenário, em parte devido a esse exotismo. Concorda que tem valor visual?

É um espaço cinematográfico incrível. Visualmente é das cidades mais ricas que conheço e aí voltamos à questão da contemporaneidade misturada com um lado quase ancestral, que Macau continua a manter, apesar das pessoas acreditarem que não. Eu, pelo contrário, considero quase um milagre perceber que determinados resquícios da cultura portuguesa continuam a existir.

 

E qual é a vossa relação com Macau?

O João Paulo e a Tatiana estão pela primeira vez em Macau e estão fascinados com esta espécie de novo mundo. Eu tenho uma relação mais próxima. Em criança, a minha mãe era para ter vindo para Macau, o que acabou por não acontecer. Fiquei sempre com isto na cabeça, a imaginar o que seria. Com 20 anos, quando recebi o meu primeiro ordenado, decidi vir a Macau e assistir à transição. Vim com duas semanas ainda sob a administração portuguesa e duas com administração chinesa. Escrevi um diário à época e vivi uma série de coisas bonitas.

 

Alguma vez pensou que voltaria a Macau pelas mãos da língua portuguesa?

Não saberia que voltaria a Macau pela língua, mas sabia que ia voltar porque não me esqueci de beber água da fonte do Lilau.

 

Hoje Macau deixou de fazer parte da agenda dos portugueses?

Tenho pena é que as pessoas não tenham curiosidade de saber, porque acho que a maior riqueza da vida são as diferenças e não aquilo que nos faz iguais. Quando falo em globalização, que tem coisas boas e vantajosas, também tenho medo que nos torne numa massa indistinta de seres humanos, porque para mim a riqueza é vir a Macau e não perceber o que está escrito naquele outdoor e querer perceber. Se calhar vou aprender aquela língua por isso.

 

Mas foi essa globalização que permitiu que o filme sobre o Saramago chegasse aos quatro cantos do mundo. É difícil superar esse sucesso?

É diferente. As pessoas fazem as coisas porque querem, porque estão vivas, tão simples como isto. E quando eu fiz a Autografia, o documentário sobre o Cesariny, houve quem se questionasse se eu faria melhor. Uma vez uma amiga disse-me: “Já podes morrer porque já fizeste as duas obras da tua vida”. Eu espero não encarar as coisas assim, nós vivemos um processo de construção permanente.