A Felicidade

Onde procuram os chineses a felicidade? Com a devida ressalva relativamente a generalizações, existem de facto tendências culturais que marcam uma determinada postura facilmente identificável com este ou aquele povo...

 

 

Texto Ana Cristina Alves

 

A Felicidade na Religião Popular Chinesa: A Divindade da Felicidade

Haverá categoria mais difícil de definir do que a de felicidade?

Ela varia consoante as pessoas. Para aqueles que apostam forte na matéria, a felicidade depende obviamente de se ter muitos bens materiais. Para aqueles que optaram pelos bens intelectuais, a felicidade deve-se a vastos conhecimentos, grandiosas bibliotecas sempre à mão, melhor ou pior, informatizadas. Os que seguem uma via religiosa, encontram-na na religação, mais ou menos ascética, à divindade ou divindades da sua predilecção. Os que se comprometem com uma via espiritual crêem que ela pode estar na concentração e desenvolvimento das forças mentais.

A felicidade também varia consoante as culturas.

Onde procuram os chineses a felicidade? Com a devida ressalva relativamente a generalizações, existem de facto tendências culturais que marcam uma determinada postura facilmente identificável com este ou aquele povo.

Aceitando o pressuposto de que a felicidade é uma categoria simultaneamente pessoal e cultural, encontramo-la na China na filosofia religiosa, popular e erudita, e também noutras filosofias mais mundanas, como a confucionista.

Nas crenças populares, ela pertence a uma divindade estelar, Fu (福), a da Felicidade, que se insere numa trilogia, composta ainda pela Dignidade, Lu (祿), e pela Longevidade, Shou (壽).

Analisando a representação das três divindades estelares, surge-nos em primeiro lugar a Felicidade trajada a vermelho, com uma criança ao colo. Segue-se a Dignidade em tons acastanhados, com um ruyi (如意), que representa a concessão de todos os desejos, sendo símbolo de poder e de elevado estatuto social. E por último a Longevidade, em tons verdes, de longas barbas brancas, cujo símbolo é o pêssego da imortalidade.

Do ponto de vista da religião popular, e numa leitura possível, a felicidade é uma categoria relativa, inserindo-se num grupo onde se constitui a felicidade absoluta. Esta para o chinês espontâneo significa ter uma família constituída, a fim de poder assegurar a sua descendência; possuir um bom cargo social, que lhe confira estatuto, poder e riqueza; e, ainda, saúde e vida longa, para poder usufruir da grande alegria que é estar vivo.

Quanto a Fu, a felicidade, em termos relativos, representa um conjunto de aspirações que incluem por tradição uma numerosa prole masculina e um forte desejo de prosperidade, condição de possibilidade de uma vasta família. Vejamos alguns dos votos de felicidade mais utilizados pela altura do Ano Novo Chinês, em rolos e xilogravuras, denominadas Nian-hua (年畫).

Entre os votos de felicidade, distinguem-se: Cinco Crianças Lutam por Sementes de Lótus (五子奪連), sendo um rogo para obter continuidade de crianças do sexo masculino. Por tradição, há ainda uma outra expressão, que apela directamente à Divindade Kui (Kui Xing魁星), também conhecida por Divindade Proeminente. O trocadilho entre kui (魁) de proeminente e gui (貴) de nobre, conduz a um outro voto. Ei-lo: nobre descendência nascer continuadamente (貴子蓮生), que se enquadra perfeitamente na matriz da mentalidade chinesa.

Entre os votos para o encontro da felicidade na descendência masculina, há um muito expressivo, onde as crianças surgem montadas e ao colo de um servo de Qilin (麒麟), o animal mitológico que personifica a máxima benevolência, sendo o seguinte: Qilin Concede Descendência Masculina (麒麟送子). Esta relação entre o Qilin e as crianças do sexo masculino ficaria estabelecida numa lenda, na qual se conta que pouco antes do nascimento de Confúcio surgiu na terra um Qilin que deixava escapar da boca livros em jade.

Há ainda outros votos de felicidade, mais abrangentes, com belas mulheres e meninos, ou com crianças de ambos os sexos, rodeando por exemplo o Buda que Ri (笑佛) e, ainda, aparecendo montadas noutros animais, como o boi.

Uma associação muito frequente é a das crianças com as flores das quatros estações do ano que se segue, ou numa leitura mais alargada, que elas possam caminhar bem e felizes a vida inteira. Vemo-las na gravura: crianças rechonchudas com flores das quatro estações (四季花開), numa aspiração a que atravessem felizes os tempos naturais, do Inverno representado pela flor da ameixeira, do Verão pela flor de lótus, do Outono pelo crisântemo e da Primavera pela magnólia.

Não menos usual é a relação entre as crianças, a prosperidade e a abundância, num voto a que riqueza e a nobre descendência nunca sejam demais (富貴有餘), sendo a riqueza figurada pelo peixe (yu 魚 ) dourado, cujo carácter é homófono do de excesso (yu 餘).

 

A Felicidade na Filosofia Tradicional Chinesa

 

A Felicidade na Filosofia Taoísta

A felicidade para um taoísta é, como nos conta Zhuangzi (莊子), vaguear em absoluta liberdade. O santo é aquele que percorre o caminho de volta a casa, ou melhor de regresso ao Tao (道), pois desde que nasceu, mais não fez que se distanciar dele. A felicidade ao nível do nosso mundo traduz-se no comportamento espontâneo do recém-nascido. Diz-nos Laozi (老子) no Tao Te Jing (《道德經》), que é necessário cultivar uma postura meditativa, onde os exercícios respiratórios viabilizem a purificação do organismo, a fim de se regredir ao estado de recém-nascido (capítulo 10): «Podes cultivando o teu sopro, torná-lo suave como o de um recém-nascido?» (結聚精氣以致柔順,能像無欲的嬰兒吧?).

A finalidade a atingir é, em termos do mundo espiritual, a criação de uma criança, sim, mas mental. Será pela hábil conjunção das energias feminina yin (陰) e masculina yan (陽), que, numa transmutação interior, se realiza a criação do embrião espiritual, conduzindo à grande longevidade e mesmo à imortalidade do praticante.

As crianças deste mundo são substituídas por outras da mente de cada um, os halos, porque são projecções imagéticas santificadas. A verdadeira felicidade é atingida mais uma vez por meio de crianças, mas estas são especiais, uma vez que possuem o estatuto de embriões espirituais.

Só alcança estes filhos da mente quem tiver o coração purificado e o corpo submetido a exercícios respiratórios eficazes.

Vejamos então como é possível a procriação espiritual na Alquimia Interior, descrita em Tabuleta de Cem Caracteres do Ancestral Lü, apresentada por Thomas Cleary em Vitality Energy Spirit. A Taoist Sourcebook (1991: 185):

 

Nutre a energia, esquece as palavras e guarda-a.

Conquista a mente, pratica a não-acção.

Conhece a fonte progenitora, na actividade e na quietude.

Se não há nada, a quem devo procurar?

A verdadeira constância responde às pessoas;

Ao responder às pessoas, é essencial não nos deixarmos baralhar.

Quando não nos deixamos confundir, a natureza é espontaneamente estável;

Sendo a natureza estável, a energia espontaneamente retorna.

Com o regresso da energia, o elixir espontaneamente cristaliza.

Na vasilha emparelha a água e o fogo.

O yin e o yang ascendem, alternando constantemente.

Por todo o lado se produz o som do trovão.

Nuvens brancas se reúnem no pico.

O doce orvalho banha a montanha polar.

Quando bebemos o vinho da longevidade,

vagueamos livres. Quem nos poderá conhecer?

Sentamo-nos e ouvimos o tom sem cordas.

Compreendemos claramente o mecanismo da criação.

O todo formado por estes vinte versos

é uma escada para o céu.

 

Resumindo, os passos para a felicidade no pensamento taoísta, crente e empenhado são: a prática da quietude; o esvaziamento da mente e a sua purificação; a procura e recolha das energias que nos atravessam o corpo; o casamento ou harmonização das energias, primeiro ao nível do ventre, depois do coração e, por fim, na mente, de modo a permitir a projecção da imagem ou do embrião espiritual. Sendo assim alcançada a felicidade de ascender ao céu dos imortais, enquanto se vagueia entre o céu e a terra, de um modo frugal e simples, como uma criança.

 

A Felicidade na Filosofia Confucionista

A felicidade para a tradição confucionista reside, do ponto de vista prático, no acordo e adaptação às crenças populares e ao culto dos antepassados, sendo para tal muito importante a constituição de uma família, regida por virtudes ético-morais, entre as quais se destacam a benevolência e a piedade filial. No seio da família, os homens têm um papel modelar, pois a eles se liga a primeira virtude confucionista, que é a benevolência, ficando reservado para as mulheres o sentimento compassivo e a virtude da obediência. O papel dos filhos masculinos é determinante, porque além de poderem prestar culto aos antepassados, e desta forma assegurarem a protecção da família, têm ainda acesso à educação, que os poderá transformar em cavalheiros ou homens de estado. A felicidade reside na capacidade de se cultivar a doutrina do Meio (中庸), o que implica possuir todas as emoções em equilíbrio e é um objectivo extraordinariamente difícil de alcançar.

Confúcio disse: «A Doutrina do Meio é o supremo princípio, mas infelizmente as pessoas raramente compreendem isto» [ (中庸.鮮)孔子說:“中庸可以說是最高的原則,可惜人們已經是久不知道這一道理了。]”.

O cultivo da via do Meio só é possível quando o cavalheiro dá o exemplo, pelo facto de manifestar um coração benevolente e educado. Ele poderá ter uma natureza superior, mas deve aperfeiçoá-la ao longo da vida, por meio do estudo, a fim de poder governar a sua família e o país.

A felicidade encontra-se na capacidade de um homem estabelecer uma casa feliz e de a comandar, bem como, por alargamento da esfera de acção, às restantes. Ser feliz, não significa perder a postura séria nem a compostura ética. Feliz é aquele que consegue servir de exemplo aos outros, adoptando uma atitude grave e solene. Num dos Clássicos da tradição confucionista, o Grande Estudo, cita-se um outro, o Livro dos Cantares, a fim de desenvolver esta ideia.

Diz o Livro dos Cantares: «Ambos os irmãos mais velho e mais novo estão felizes.» Só quando estão felizes, eles podem educar o povo. E continua: «A aparência de um homem deve ser solene e séria. Ele deve ser um exemplo para os outros». Só quando o pai, o filho, ou o irmão se comportam como modelos, lhes segue o povo o exemplo. O que significa que o governo do estado depende da educação da família [(大學.治國章) 《詩經.小雅.蓼蕭》 說:“兄長歡愉,弟弟歡愉”兄弟都歡愉,然后才能教化國人。《詩經。曹風。鳲鳩》說:“儀容威嚴端莊,足以爲四方的表率。”無論是作爲父親,作爲兒子,還是作爲兄長,作爲弟弟都堪稱爲典範,然後民衆才能效法他們。這就叫做治國在於整齊其家。].

A tradição confucionista e, sobretudo, a neoconfuncionista, distinguiu bem entre os dois tipos de felicidade possível, ambos desenvolvidos a partir da noção de piedade filial. Há um bem-estar espontâneo, sentido por via materna e na relação de sentimento que se estabelece com a mãe e por arrasto com todas as mulheres; porém este não possui qualquer valor se a alegria não for domesticada, controlada e colocada ao serviço de ideais superiores, como sejam a orientação da família e o governo da pátria.

No Capítulo 13 do Clássico da Piedade Filial (《孝經》), intitulado a Amplificação da «Virtude Perfeita» do Capítulo 1, depois de nos ser comunicado que o homem superior, categoria central desta filosofia, é um exemplo vivo da virtude da piedade filial, recorre-se ao Livro dos Cantares para definir um soberano feliz: «O Soberano feliz é o pai do povo» (Barnhart, 1993:132), consistindo então a felicidade em transformar a casa numa pátria e esta num lar. Quando se dá a plena identificação entre o domínio familiar ético-moral e o político, é atingida a felicidade suprema ou absoluta.

 

A Felicidade nas representações populares do Budismo Chinês

A felicidade búdica consiste em seguir mimeticamente o modelo existencial de Shakyamuni, cultivando assim a Via do Meio. Porém o Budismo quando chegou à China, adaptou-se à mentalidade local, tendo dado origem ao Budismo da Meditação (chan 禪), considerado o mais tipicamente chinês, bem como ao culto do seu patrono, Avalokitesvara.

Bodidharma é o fundador terreno desta escola, que terá chegado ao Império do Meio, via Índia ou Ásia Central, pelo século VI, durante a dinastia Liang (502-557). O seu exemplo de simplicidade e meditação foi seguido ao longo dos séculos por religiosos e leigos, ou seja, por ascetas e pelo comum dos mortais.

Avalokitesvara transformou-se na China na Bodhisattva da Compaixão, conhecida pelo nome de Guanshiyin (觀世音) ou Guanyin (觀音) no Norte e, como todos sabemos, em Macau pelo de Kun Iam. É a esta divindade de infinita misericórdia que as chinesas recorrem para pedir descendência especialmente masculina, sendo conhecida nesta metamorfose pela Bodhisattva que Concede Filhos (送子觀音).

E ainda que a filosofia budista de raiz não tenha muito a ver com as alegrias e bem-estar deste mundo, considerado filosoficamente ilusório e religiosamente dominado pelo sofrimento, doença e morte, a verdade é que ao sinizar-se o Budismo da Meditação, se transmuta também para poder expressar os sentimentos mais genuínos dos crentes. Por isso a expressão máxima da compaixão fica encarregue de satisfazer a aspiração tradicional de numerosa prole masculina. Haverá maior felicidade terrena para as famílias chinesas do que ter uma casa cheia de crianças a brincar e a estudar por entre familiares, umas vezes rígidos, outras bonacheirões?

Quanto à felicidade espiritual ou absoluta, essa será obtida em vida pelo cultivo do coração Buda, por recurso à via do meio; na morte com a entrada num qualquer paraíso Buda, sendo o mais popular, a Terra Pura (jingtu 淨土), também conhecida pelo nome de Paraíso do Oeste.

Retomando o fio à meada, e para desembaraçar argumentos, deixo-vos com o meu sentir espontâneo do que pode ser a felicidade para os chineses:

 

Felicidade para um chinês

A felicidade para um chinês

É ter muitos filhos,

Pelo menos três.

Todos em tom cortês,

de muito boa rês.

 

A felicidade para o chinês

É o que ele vê,

nas  linhas do coração

da criança a quem dá a mão.

 

A felicidade também está na muita idade,

E na calma de um corpo,

desfrutado sem maldade.