Tudo isto é fado

Passou pelos salões nobres da cidade, foi cantado e tocado pelos militares e até se juntou aos sons tradicionais chineses. O fado nunca abandonou o viajante. Nem a gente da terra. Nem Macau

 

 

Texto Catarina Domingues

Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

O pangyau das barbas ainda chamou um amigo, entendido no cantonês, para desfazer as dúvidas. E o porteiro retomou a explicação: a vizinha chinesa do quinto andar, momentos antes de morrer, deixara instruções para oferecer aqueles discos ao português. “Ao pangyau das barbas”, não se cansava de repetir o porteiro.

A vizinha, namoradeira de um bom fado castiço, guardara ao longo dos anos quase meia centena de álbuns enviado pela família e amigos de Lisboa. Veio ainda a saber-se que, naqueles serões em casa do português, onde se cantava e tocava o fado, a senhora, já com o gira-discos em silêncio, deleitava-se com o choro vindo do andar de baixo.

O senhor das barbas não se lembrava de ter trocado mais do que um chou san (bom dia) com a vizinha, mas acabou por aceitar a herança musical.

 

Há fado em Macau

Naquele dia de Verão, pôs-se bonita para ir à televisão. Escolheu um vestido fresco, em malha de seda castanha-cerejeira, uns centímetros abaixo do joelho. Os vestidos longos são para as galas. E esse não era o caso.

À frente das câmaras, Ada de Castro recordou: “E a vizinha chinesa do meu amigo tinha cinco discos meus. Fiquei comovida, nunca esperei que acontecesse a 18 mil quilómetros”.

Uma distância tão remota no espaço e no tempo, que não se pode culpar a fadista de, após 25 anos, não se lembrar da história ao detalhe, mas as velhas cassetes BETA do arquivo da Teledifusão de Macau (TDM) não deixam mentir. Hoje, com 74 anos, Ada ainda se lembra: “Fui à televisão porque era importante que as pessoas soubessem que o fado estava em Macau”. Se a vizinha do quinto andar estivesse viva, de certeza que acompanharia Gosto de tudo o que é teu, o fado que inaugurou a gravação nos estúdios da TDM. Ou talvez cruzasse a única ponte de então para chegar ao outro lado, onde naquelas noites húmidas de Macau, Ada de Castro cantava no antigo Hotel Hyatt. A fadista estava em Macau por uma semana.

 

Do Sr. Vinho ao Hyatt

O convite chegou por correio à casa de fados lisboeta Sr. Vinho. Macau era terra distante, mas Ada, madrinha de muitos soldados na Guiné e habituada a longas jornadas, aceitou esta também. Em Macau, cantou no Hotel Lisboa e na Associação dos Comandos durante as festas de São João, mas foi no salão do Hotel Hyatt que alimentou longos serões de fado. “Queriam ainda que cantasse à porta do hotel quando vinha um autocarro de turistas. Recusei-me, éramos três músicos e não um trio.”

Os percalços não se ficaram por aqui, mas são os bons momentos que a memória insiste em distinguir: a homenagem ao Presidente da Assembleia Legislativa “com uma simulação do Al Capone e carros a entrar no átrio do Hotel Lisboa”, a noite na boîte do casino e, claro, os longos aplausos aos seus fados castiços. A Macau trouxe o Cigano, Rosa Caída, sem esquecer o Fado Macau (ver caixa). À viola estava Pedro Nóbrega e à guitarra portuguesa Carlos Macedo, que 11 anos depois regressaria ao território.

 

Um fadista solitário

Mais ninguém passeava por Cheock Van. Naquele Inverno de 1998, a pequena praia da Ilha de Coloane era de um só fadista à guitarra portuguesa.

O mundo descarregava ali, nas margens do Mar do Sul da China, toda a sua solidão. Carlos Macedo já tinha andado por muitas terras. Fez a tropa de guitarra na mão em Moçambique, cantou e conquistou o Brasil enquanto Maria da Fé trocava de vestido.

Mas agora, aquele areal estéril que atravessava ao amanhecer, não era senão o último desterro dos homens. “O primeiro mês em Macau foi difícil, estava praticamente só.”

Não foi amor à primeira vista, mas amor que foi chegando. Carlos Macedo estava em Macau com um contrato de dois meses para tocar no Restaurante Lusitano, primeiro com a fadista Carolina Tavares, numa segunda fase com Maria Mendes. Foi sobretudo entre os chineses que encontrou maior aceitação. “Talvez pela curiosidade. Às vezes estavam grupos de 500 pessoas.”

Carlos fazia três intervenções por noite e, a pouco e pouco, começou por sentir o bulício da cidade e a quietude das ilhas como seus. “Tornou-se a minha outra terra, passava pelos mesmos sítios, cumprimentava as mesmas pessoas, era interessante.” Quando regressou a casa, levou uma mão cheia de amigos e três novos fados dedicados a Macau.

 

Fado em viagem

Além de Ada de Castro e Carlos Macedo, outros fadistas passaram por Macau. Em 1991, Amália trouxe temas com meio século de história, três anos mais tarde foi a vez de Carlos do Carmo deixar o Teatro Dom Pedro V em silêncio. Seguiram-se nomes como Mariza, Kátia Guerreiro, António Chainho e, mais recentemente, Aldina Duarte.

Convidada para cantar na primeira edição do Festival Literário, a vinda de Aldina Duarte acabou por resultar num dos documentários produzidos pela Radiotelevisão Portuguesa (RTP) no âmbito da classificação do fado como património imaterial da Humanidade. A fadista partiu à procura de uma cidade que se relacionasse com o fado: a respiração ofegante da zona dos Tim-tins, “o fado tem essa origem, é uma arte popular”, ou a história dos corredores da Casa do Mandarim, “dos sítios mais bonitos onde já cantei, com mais alma e mais elevação”.

Estudiosa da tradição fadista, Aldina Duarte também escreve, embora diga que o seu compromisso é cantar o fado, uma música frágil, ligada às raízes. “Se há música que por excelência privilegia o som da língua é o fado. Penso que não se pode fixar em terra nenhuma. Vai e volta. Essa é a sua história: os marinheiros, a viagem, sempre com a perspectiva do regresso a casa.”

 

As fadistas de Macau

No início dos anos 50, ainda antes de começarem a chegar artistas de Portugal, já o fado tinha histórias para cantar. Fazia parte das noites de convívio entre os militares, chegava à comunidade através da Rádio Vila Verde ou pela voz aveludada de Rubye, uma menina macaense acabada de chegar de Coimbra

Sorri. E é sempre graciosa na palavra. “Costumo dizer que sou a condessinha de pés descalços.” É verdade que Rubye descende do Conde Bernardino de Senna Fernandes, mas se for levado à letra, não podia estar mais longe da verdade. Naqueles anos 50, sempre vestida com alinho, Rubye era entusiasta de uns sapatos de salto nobre. Talvez por isso fique melhor um outro título: a fadista de Macau.

Com seis anos mudou-se para Coimbra e foi aí que cresceu entre as serenatas e as músicas americanas que chegavam pela rádio. Em casa a mãe tocava piano, o pai distinguia-se ao violino e, de forma natural, desenvolveu o ouvido para a música e aprendeu a tocar o uquelele. “Eu gostava era de músicas havaianas.”

Quando o pai percebeu o gosto pela música, decidiu que era hora de cantar o fado. Com 19 anos, ao regressar a Macau, trouxe na bagagem um xaile negro e uma viola. “Ninguém cantava. Nem se falava do fado. Tanto imitei os trinados da Amália que, na brincadeira, comecei a ser chamada de fadista de Macau.”

 

Unga casa macaísta

Com a ajuda do pai, Rubye encontrou entre a Polícia Marítima um guitarrista, Manuel de Oliveira. Foi assim que durante anos os dois levaram as músicas de Amália aos mais nobres salões de Macau. Era convidada pelos governadores, frequentava festas no Clube Militar e cantava letras saudosistas aos militares. “Os fados eram tristes e eu sou bastante sentimental. As pessoas gostavam muito.”

Sempre de viola ao colo, também acompanhou o macaense Adé, José dos Santos Ferreira, e até cantou em patuá letras do poeta, como Unga Casa Macaísta, uma adaptação do fado Uma Casa Portuguesa. “Ele tinha de me ensinar a pronúncia, eu carregava no erre, em patuá não pode ser.”

Nas noites de palco, Rubye entregava-se aos vestidos longos e negros, sempre acompanhados pelo xaile negro. “Era vaidosa, uma menina sempre au point. Havia quem dissesse que eu parecia uma actriz.” E até poderia ter sido, gostava do palco e figura não lhe faltava. “Fui a primeira a usar biquíni em Coloane.” Não admira que num daqueles dias em que acompanhou Adé à rádio, o locutor português António José Pereira se tenha apaixonado pela macaense.

 

O primeiro disco de fado

Ainda que não cantasse profissionalmente, Rubye era a única voz do fado em Macau. E por isso, nos anos 70, quando regressou a Portugal, deixou Macau sem os sons dolentes da canção. O silêncio durou quase 20 anos, intercalado pela vinda de fadistas portugueses ou por registos mais ligeiros de grupos locais, como a Tuna Macaense. Até que no início da década de 90, o fado reapareceu, pela voz de uma professora de físico-química, Isabel Telo Mexia.

Começou por brincadeira a cantar em jantares de amigos. Depois, ao integrar o Grupo de Danças e Cantares, levou o fado ao Japão e à Coreia do Sul. Um dia “o jornalista João Severino propôs-me gravar um disco”.

A gravação coincidiu com a vinda a Macau da fadista Luz Sá da Bandeira, acompanhada pelos guitarristas João Torre do Valle e Fernando Alvim, “profissionais com tamanho valor, que só podia estar esmagada pela sua qualidade”. Foi na Rádio Macau, ao som destas guitarras, que em duas tardes nasceu o primeiro disco de fado em Macau. O álbum associou fados de Lisboa e de Coimbra ao som de instrumentos tradicionais chineses.

A Isabel juntaram-se mais tarde dois guitarristas locais. Juntos percorreram os salões de Macau, de Hong Kong e ainda assinaram um contrato de um ano com o antigo Hotel Bela Vista.

No grande salão do Cineteatro, Isabel Mexia juntou o fado aos sons tradicionais da Orquestra Chinesa de Macau e assegura que foi a primeira fadista a ensaiar com o grupo, naquela que seria uma tradição até hoje.

Quase por superstição, Isabel inaugurava os espectáculos com o tema Gaivota de Amália. “Fazíamos um compasso de espera a explicar aos estrangeiros que o fado era uma música intimista e que não se podia falar”. Era então que se fazia silêncio.

 

Roteiro do fado em Macau

Escola de Guitarra Portuguesa

Wei Qing segue atenta os ajustes do mestre à guitarra. O liuqing (instrumento chinês de cordas) deu-lhe a destreza dos dedos e já não estranha as seis cordas duplas da guitarra portuguesa. De mansinho, acaba por chegar ao tom certo. “É difícil controlar as cordas.”

Solista de liuqing na Orquestra Chinesa de Macau, Wei Qing só soube o que era o fado em 2005, quando Kátia Guerreiro, acompanhada pela Orquestra, cantou no Auditório da Torre de Macau. “Fiquei impressionada, a melodia era tão forte.” Foi também a primeira vez que ouviu guitarra portuguesa, pelas mãos de Paulo Valentim. “Parecia que o som vinha do paraíso.”

Precisou de esperar até 2011 para começar a aprender guitarra. Nesse ano, Paulo Valentim mudou-se para o território e, juntamente com a Casa de Portugal, deu uma nova vida ao fado em Macau.

O guitarrista toca no Restaurante Lvsitanvs, no Museu do Vinho e está à frente da nova Escola de Guitarra Portuguesa, um parto que se adivinhava difícil neste canto asiático. “É  difícil atingir um nível superior de guitarra portuguesa onde não há prática fadista”, explica o guitarrista.

Wei Qing, uma das cinco alunas, sonha um dia acompanhar um grande fadista português. Para isso não interessa se ela e o mestre não falam a mesma língua. Aqui vale o lugar-comum, a música é uma linguagem universal. E nada mais interessa.

 

Restaurante Lvsitanvs

Quando Paulo Valentim foi viver para Macau, trouxe de Portugal algumas das guitarras portuguesas que colecciona há largos anos. São exemplares que vão desde finais do século XIX até aos anos 20 e que estão expostos no Restaurante Lvsitanvs.

O espaço, um projecto da Casa de Portugal, nasceu e cresceu a ouvir fado. Paulo Valentim começou por ser acompanhado pelo saxofonista Paulo Pereira, numa linguagem menos convencional do género musical. Aqui o saxofone vem substituir a voz do fadista que falta em Macau e procura “manter os floreados, o ênfase em todas as notas, aquele choradinho, que é estender a nota”, explica Paulo Pereira.

Numa segunda fase, os dois músicos começaram um novo projecto de fados tradicionais. O saxofonista regressou às origens e voltou a pegar no primeiro instrumento que aprendeu, a guitarra clássica.

 

Restaurante António

Iluminado pela luz débil das velas, o quadro da mítica fadista Maria Severa e do Conde de Vimioso leva por momentos os clientes do restaurante até uma antiga casa de fados na Mouraria. A música de fundo só é interrompida quando Marcelino aparece de guitarra. “Quando são japoneses ouço logo a palavra fado.” Apaixonados pelo estilo musical, os japoneses são clientes frequentes e não estranham quando o músico interpreta Até que a voz me doa, o famoso fado de Maria da Fé. Mas Marcelino não é homem de uma música só e aqui as noites são feitas de sons alentejanos e outros ritmos portugueses.

Com uma comunidade reduzida de portugueses em Macau, o responsável pelo restaurante, António Coelho, acredita que uma casa exclusivamente dedicada ao fado seria “um risco económico”, mas não põe de lado a abertura de um outro espaço. Com fado e quem sabe, fadistas.