Não há tarte como esta

“As crianças adoram”, diz a empregada do restaurante Macau Taste no centro de Pequim. Um doce, um mimo, um produto que se estabeleceu como marca registada sem que, contudo, alguma vez se tenha imaginado o sucesso que ia alcançar no Império do Meio. O pastel de nata, um pastel tradicional português, passou a tarte de ovo na China. Uma tarte que em alguns locais aparece só identificada com o nome Portuguese

 

 

Texto e fotos Maria João Belchior

 

“Leite, açúcar, ovos e farinha”, enumera Paulo Quaresma, a trabalhar no restaurante Camões na capital chinesa. Para o chef português de 37 anos, há um ano e oito meses a viver na China, a receita já foi adaptada ao sabor do consumidor chinês, que prefere menos açúcar. De facto, leite, açúcar, ovos e farinha e está o pastel feito. Em teoria pelo menos, porque as quantidades é que fazem toda a diferença.

“No restaurante os clientes pedem sempre os pastéis de nata como sobremesa”, conta Paulo Quaresma. Os pastéis, os mais parecidos que existem em Pequim com o sabor português, tornaram-se um gosto especial para os chineses, que partilham com os portugueses o sabor pelas coisas doces da vida. A única diferença é moderar ou não o consumo do açúcar.

 

Mão chinesa

“Mais ou menos 12 minutos a 240 graus”, diz o cozinheiro chinês Zhao Xiao Hai. Parece que não há mais segredos. Mas na verdade os pastéis de nata portugueses continuam a estar envoltos num certo mistério. Zhao Xiao Hai trabalha no restaurante Camões e aprendeu ali a fazer os famosos pastéis de nata numa cozinha portuguesa. O chef Paulo Quaresma dá as dicas necessárias para que Zhao possa autonomamente cozinhar os pastéis.

Zhao leva menos de meia hora a colocar 12 bolos no forno da cozinha. “A farinha é depois inserida no aparelho”, explica o chef português. “Aparelho” é gíria da cozinha e refere-se ao preparado para os pastéis, a famosa nata inserida na massa folhada.

No Camões é tudo feito no dia. Tal como noutros locais onde se vendem as tartes de ovo, o segredo é ser do dia. No Macau Taste no centro da capital chinesa, os pastéis, as tartes de ovo portuguesas, são feitas na hora. “Pedem e nós fazemos”, diz uma das empregadas no restaurante. A maior parte dos funcionários vem de Guangdong e a ideia de trazer comida com “sabor português” a Pequim também chegou da província do Sul, que está muito mais perto e é muito mais influenciada por Macau.

“A receita veio de Guangdong até nós”, explica a funcionária. Na casa mãe no Sul está o segredo com as quantidades certas que são reproduzidas na cadeia de restaurantes em Pequim. Mas é uma receita que cada casa que a fabrica guarda para si mesma.

Nos últimos anos as cadeias de pastelarias multiplicaram-se pelo país. A tradição de fazer pão doce e bolos chegou sobretudo de Xangai onde várias patisseries de inspiração francesa começaram a suscitar a curiosidade do cliente chinês. Dali estendeu-se a outras cidades, onde uma classe cada vez mais curiosa de provar novos sabores criou espaço para novos negócio.

Nos expositores que funcionam em self-service é já obrigatório estar a tarte de ovo. Num pequeno estabelecimento de pastelaria, um dos muitos que, em sistema de franchising, se multiplicam pelas cidades chinesas, o consumo diário das tartes de ovo oscila entre 20 a 40. Os clientes jovens são quem mais compra os pastéis de nata. Para muitos, o factor Portugal é relativo. Conhecem o pastel pelo estilo português mas pouco mais sabem da história de como o pastel de nata chegou à China, através da porta de Macau.

 

Não há dois pastéis iguais

“Entre nós o tostado do pastel de nata é apreciado”, frisa Paulo Quaresma. Entre os chineses nem tanto. Muitos olhavam com desconfiança de cada vez que o pastel estava um pouco mais tostado e preferem os clarinhos. Mas esta é uma tendência que tem vindo a mudar aos poucos. Tal como o hábito de colocar canela no pastel que no restaurante Camões é tradição, mas que nos outros sítios não aparece como opção.

“Os originais portugueses têm mais açúcar”, explica o chef português. A adaptação feita desde que a primeira receita entrou na China parece ter acertado com as quantidades certas para os chineses.

Inicialmente foi a rede Kentucky Fried Chicken (KFC) que internacionalizou o pastel de nata na Ásia, depois de ter comprado a receita em Macau e trazê-la para a China. O primeiro KFC abriu no Interior do País em 1987 e hoje existem mais de 3200 restaurantes, um número que não pára de aumentar todos os anos.

As tartes portuguesas são um dos doces mais vendidos nas cadeias KFC chinesas. Ao comprar seis tartes, o cliente fica a saber um pouco da história contada na embalagem. Mas a história não viaja para além de Macau e não refere a tradição portuguesa.

Um pastel de nata com canela e um café é um ritual português que não entrou no Interior da China. Paulo Quaresma conta que “os chineses comem pastéis de nata a qualquer hora mas para eles é uma sobremesa”. Aos poucos a canela começou a conquistar o paladar dos clientes no restaurante Camões. Mas fora dali, a especiaria ainda não se tornou comum para acompanhar a tarte, sendo muito pouco usada para doces na China.

Na rede da Internet chinesa uma volta de busca pelos pastéis e chega-se à receita com vários filmes colocados no famoso site Youku com a feitura do pastel gravada passo-a-passo. O segredo da massa folhada, que o chef português explica que é “massa meio folhada”, está lá. Porém, na China a massa é na maior parte das vezes comprada congelada. Um pasteleiro chinês disponibilizou-se a ensinar as etapas para a feitura da massa folhada à portuguesa com explicações detalhadas de quanto tempo tem de ficar reservada no frigorífico. Para a cozedura da tarte, o pasteleiro aconselha meia hora no forno a 180 ou 190 graus. Uma diferença do método do cozinheiro do restaurante Camões em Pequim que refere 12 minutos a 240 graus.

Em consequência destas diferenças de método de preparação, não existem dois pastéis iguais. A maior oferta também ajuda a que o consumidor mais exigente procure entre as várias tartes aquela que mais vai de encontro ao seu gosto.

Poucos são os chineses que se aventuram a confeccionar os pastéis em casa. Mas é o sucesso da chamada tarte portuguesa que leva a que tantos vídeos sejam disponibilizados na Internet com a receita. Entre a nova geração de pasteleiros, saber fazer a tarte de ovo à maneira portuguesa parece ser receita obrigatória a acrescentar à lista do que se sabe fazer. Alguns dos vídeos já ultrapassam as 800 mil visualizações. Entre alguns dos que juntam comentários, o trabalho que dá não compensa perante a facilidade de haver literalmente quase um pastel de nata à venda a cada 1000 metros por meia dúzia de yuans.

Em Xangai e Pequim, duas das maiores cidades chinesas, vendem-se milhões de tartes de ovo portuguesas. Pela dimensão do negócio é o KFC que tem o primeiro lugar no negócio, com mais de 100 mil bolos vendidos diariamente. Mas a grande oferta já existente não desmotiva quem quer entrar no negócio da nova pastelaria confeccionada com um toque chinês.

 

Levar o doce além fronteiras

Zhao Xiao Hai sabe que em todo o lado na cidade há pastéis de nata à venda. E concorda que nem todos são iguais. “Alguns dos bolos portugueses são demasiado doces para os chineses”, refere Zhao, que sabe que o ovo e o açúcar são o segredo da maior parte das receitas.

Nas cadeias de pastelarias chinesas de norte ao sul do País não foi só o tamanho da tarte de ovo que se uniformizou. O preço também oscila muito pouco. Entre quatro a seis yuans, a tarte portuguesa tornou-se tão comum como as pizas que se vendem às fatias nos milhares de estabelecimentos de take-away de pastelaria.

Uma volta pelos nomes dos bolos e umas perguntas a quem trabalha nos locais dão a certeza que a tarte de ovo é a única que se apresenta com o país a que pertence. E, na verdade, a única que conquistou um lugar no mercado. “É difícil inserir outros doces na ementa”, explica Paulo Quaresma, ao referir o cliente médio chinês.

Para os jovens estudantes da licenciatura de Língua Portuguesa em Pequim, o pastel de nata também se tornou marca de identidade do país. E quem vai até Portugal faz questão de provar o sabor original em Belém, para concluir que está muito longe do que se vende na China. A maior parte das sobremesas portuguesas parece muito doce para estrangeiros. E esta não é uma característica apenas do gosto chinês.

Além fronteiras, o pastel de nata internacionaliza o nome de Portugal. Quem prova, sorri ao dizer que é saboroso. Os mais novos continuam a ser os melhores fãs da tarte de ovo e a divulgação é muitas vezes destinada a esse público. Um programa num dos canais da televisão de Pequim procura receitas estrangeiras que os chineses gostem e queiram aprender a cozinhar. Há algum tempo foi o momento do pastel de nata ter o papel principal no tempo de antena chinesa.

Para os mais velhos, ainda de certa forma desconfiados de alguns novos paladares, nem sempre é fácil vender um sabor estrangeiro. Uma das vantagens da tarte de ovo é que a aparente simplicidade da receita com ingredientes familiares aos chineses leva muitos a não negar a curiosidade de provar. E, para o primeiro passo, são os filhos e os netos que conseguem cativar os mais velhos.

A caminho das duas décadas de presença no mercado chinês, a famosa tarte portuguesa veio para ficar. Com um novo nome, o pastel de nata foi adaptado a um mercado chinês. E foi uma receita de sucesso que fez dele um dos mais conhecidos pastéis do mundo. Escrevia Mia Couto que “cozinhar é uma forma de amar os outros”. A que se pode acrescentar o adágio popular de que pela boca também se conquista.