Filhos de uma Terra Maior

Há um tom de esperança no discurso da identidade em Macau. A cultura macaense não está condenada ao desaparecimento. Mas alguns Filhos da Terra avisam que é preciso mobilizar a população de Macau e a diáspora e ainda sensibilizar os mais jovens

 

José Luís Sales Marques_CTC0505

 

Texto Patrícia Lemos | Fotos António Mil-Homens

 

Na génese da cultura macaense não está só a China e Portugal, mas também as tradições dos outros lugares por onde os portugueses se aventuraram e ainda as gentes que com eles se cruzaram. Malaias, siamesas, indochinesas e goesas chegaram a Macau pela mão dos portugueses e aí revelaram as cores da sua culinária, do trajar, oferecendo ainda as primeiras palavras do patuá. Depois, os homens deixaram-se encantar pela beleza e recato das japonesas e chinesas.

A preferência asiática não tinha só a ver com o facto da mulher ocidental não ter ordem de entrada na China à época e do caucasiano não ter logo inspirado confiança às famílias chinesas mais abastadas. Também havia impeditivos ao casamento com pagãos. Certo era que, para os portugueses, a miscigenação era a pedra de toque de uma relação duradoura com outros povos e a garantia da sua permanência em terra alheia. E não estavam errados: os macaenses são a prova disso. A sua cultura tem durado séculos. E até pode estar ameaçada, mas recomenda-se.

Mas o que é isso de ser macaense? Todos tentam circunscrever o seu significado, como se fosse possível definir alguma nacionalidade. “Mas alguém sabe o que é que preciso para se ser português ou inglês?”, questiona o presidente da Associação de Macaenses (ADM), Miguel de Senna Fernandes, que justifica o tom retórico: “O problema é o facto de não se entrar na comunidade por requisito legal. Isto não é um clube de futebol, nem há impressos de candidatura”. Mas há marcadores de identidade e um é inquestionável: o lugar-comum.

 

Miguel Senna Fernandes_CTC0496

 

“O macaense tem de ter uma ligação a Macau. Porém, há muitas pessoas a sentir este apego à terra, pela naturalidade ou por uma questão sentimental. Mas isso faz deles macaenses? Não! É necessário haver uma referência cultural mais vasta: a portugalidade. Além disso, só se pertence à comunidade caso seja aceite como tal. Aí impõe-se o factor da empatia, que é a partilha duma visão comum, de formas de expressão e comportamentos.” Estas três características são essenciais para se ser Filho da Terra, segundo Senna Fernandes, mas avisa que só fazem sentido enquanto houver um sentimento de diferença partilhado.

 

Macaense ou maquista?

Sempre que surgem dúvidas em relação ao futuro dos macaenses em Macau nasce o debate. Foi assim a partir de meados dos anos 1960, com o Motim 1-2-3, e nos anos 1980 e 1990, antes da assinatura da Declaração Conjunta Sino-Portuguesa e do retorno de Macau à China. Agora, o rápido progresso da RAEM e a entrada massiva de chineses no território acende o rastilho e o tema volta à baila. Como refere Nelson Lourenço no prefácio do livro Em Terra de Tufões – Dinâmicas da Etnicidade Macaense, “questionar as origens de uma etnicidade é questionar a sua sobrevivência”.

O timbre do discurso sobre a identidade macaense nunca foi linear. Vanessa Cunha, no seu trabalho de investigação Sobre a identidade e a morte – Histórias Macaenses, publicado em 1998, referia-se a três tipos de discurso: o da portugalidade que era mais marcado nos anos 1960, o da interculturalidade que dizia respeito à valorização do capital intercultural com os chineses e o discurso do futuro que seria o da naturalidade, em que as questões da identidade macaense passam a ter como cenário a integração de Macau na China.

Antes de debater a identidade do Filho da Terra, importa considerar a proposta do realizador Sérgio Perez, de 34 anos, que sugere a redesignação de macaense para “maquista” ou “macaísta”. “Macaenses são todos os que aqui nasceram e todos os que consideram esta como a sua ‘terra’ e onde querem ficar. Esta sugestão implica a necessidade de uma identificação pessoal e um sentimento de pertença que não se encontra na definição de residente permanente.” Já para se ser maquista, “não tem de ser mestiço, mas tem de se incorporar e viver a essência da cultura maquista”.

 

Sérgio Perez_CTC0487

 

Perez considera que a utilização actual do termo macaense desconsidera até os “membros de outras comunidades que amam tanto ou mais esta terra do que alguns maquistas”. Esta é uma visão muito pessoal, salienta ainda o realizador de Rua de Macau, um filme de 2008 sobre os “macaístas”.

 

Afirmação pela cultura

Mas como pode a cultura macaense ou “maquista” ser salva no contexto actual? Miguel de Senna Fernandes acredita que a afirmação passa pela maioria da população da RAEM: “Mais recentemente, os chineses têm vindo a reclamar a ideia de Ou Mun Ian (gente de Macau), ou seja de pertença a Macau. Não é tanto em sentido cultural, mas pela necessidade que têm de se diferenciar das pessoas que vêm do Interior da China. Se querem ser diferentes, os chineses de Macau vão ter de o justificar e terão de invocar algo mais profundo do que os casinos, mais legítimo como a cultura. E quando falamos disso não podemos omitir o passado histórico dos portugueses em Macau.”

Para Perez, a afirmação da cultura “macaísta”, na sua diversidade e especificidade, “é importante para contrabalançar o fenómeno dos casinos que dão muito dinheiro a Macau, mas podem não ter marca da diferença que a cultura e o património da cidade terão no futuro”. Mesmo do ponto de vista económico, o jovem macaense considera que esta aposta na indústria do jogo favorece a economia a curto prazo, “porque quando o turista chinês ‘crescer’ vai optar pela originalidade do produto, como Singapura, ou mesmo pela Las Vegas ‘original’”. O realizador acredita ainda que esta afirmação cultural vai ainda avivar a consciência colectiva da população. E essa união pode resultar “numa defesa comum e coerente dos valores de Macau”.

Senna Fernandes apela assim ao instinto de sobrevivência do macaense: “Nós temos que nos readaptar”. Acredita que “a afirmação de uma comunidade tem de ser feita dentro do contexto, que é o de uma China rica e apetrechada de todos os meios de influência. Das duas uma, ou somos absorvidos e passamos a ser apenas chineses ou marcarmos a nossa diferença porque somos daqui e temos uma cultura nossa”, explica o presidente da ADM que, como José Sales Marques e Perez, pertence a uma família tradicional de Macau.

Sales Marques tem uma percepção ainda mais dinâmica sobre o futuro da comunidade: “Não podemos viver como se estivéssemos fechados num museu, não se pode congelar a identidade dum grupo. Essa só se afirma e desenvolve na sua fonte de origem que é Macau”.

 

Identidade construída

Se a elite macaense parece defender a ideia de uma comunidade menos ditada pela mestiçagem e mais pela portugalidade e apego a Macau, o macaense comum de uma forma geral prevê para breve o fim desse apego luso, até por questões de educação em casa e nas escolas.

Perez sublinha que “não são precisos mais portugueses para criar mestiços”, o que é importante é preservar a cultura. “A nova leva de portugueses que tem chegado a Macau traz consigo a portugalidade. A sua presença em Macau e a necessidade de haver aqui pessoas a falar português é importante para a cultura maquista.”

Nem todos concordam com a ideia dos chamados “macaenses por adopção”. Para o presidente da Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas de Macau (APOMAC), Francisco Manhão, “o macaense é um mestiço, natural de Macau e é português”. E diz com a máxima sinceridade e respeito: “Para mim, não há macaenses de adopção”, adiantando que a cultura macaense é outra questão. Já Sales Marques não crê que a mestiçagem seja um factor essencial desta identidade. “Há macaenses por adopção, como o professor Silveira Machado ou o padre Lancelote. Há vários chineses que se sentem macaenses, como o Roque Choi. A identidade também é construída.”

Candidatos para adopção não faltam em Macau. Alguns enchem-se de coragem e até perguntam a Senna Fernandes: “Estou cá há uma data de anos, eu sou ou não macaense?”. O presidente da ADM retribui com outra pergunta: “Imagine que eu era chinês, ia viver para o Minho, abria uma mercearia e convivia com essa gente toda uns 20 anos. Seria considerado minhoto depois disso? Não, iam chamar-me chinês. Ahhh, pois iam! Mas se eu falar português, tiver a pronúncia deles e me comportar como um minhoto, vão logo dizer: ‘Ele é chinês mas é um dos nossos.’”

 

A tese de uma cultura a definhar

São poucos mas começam a fazer-se notar em Macau aqueles Filhos da Terra educados no estrangeiro que falam pouco ou nenhum português. Margarida Cheong Vieira é um desses casos. Garante que os macaenses só percebem que “é da malta” quando fala. “Se não abrir a boca pensam que sou completamente chinesa”.

Há quatro anos iniciou um trabalho de pesquisa sobre a identidade macaense e as novas gerações de macaenses que culminará na sua tese de pós-doutoramento. Os resultados da investigação e das muitas entrevistas que tem realizado preocupam-na. “Sinto que a comunidade macaense está a definhar, camada a camada. Não sinto que esta cultura possa acabar, tenho dados que podem comprovar que vai mesmo acabar.” Mas não aponta uma data específica para essa extinção.

O estudo que está a elaborar pela Universidade de Southampton, no Reino Unido, tem-lhe permitido olhar de forma mais científica para a comunidade, mas também conta com a vivência que tem da mesma há algumas décadas. “Hoje em dia, o que vemos da cultura macaense é muito fabricado, muito plastificado como quem finge que está lá o que já não está. Quem já viu e experienciou esta cultura, sabe disso”. A doutoranda aponta para o perigo das novas gerações de macaenses não estarem sensibilizadas para esta falta de autenticidade. Por isso, também gostaria que a história dos Filhos da Terra fosse leccionada em todas as escolas de Macau.

 

Margarida Vieira está convencida que só o colectivo de Macau pode salvar a cultura macaense: “Têm de fazer alguma coisa para inverter a tendência”. Está certa de que, com a ajuda do governo, essa detioração pode ser menorizada. “Para preservar uma cultura e, neste caso também uma comunidade, não se pode elaborar apenas uma lista de medidas. Não é esforço de uma pequena comunidade que vai salvar a cultura macaense. Tem de haver uma maior mobilização do resto da sociedade de Macau. Se forem apenas uns milhares, que podem estes alcançar sem o interesse dos outros?”