Rota das Letras: Literatura marca pontos na agenda cultural de Macau

Macau reafirma-se enquanto ponto de encontro de escritores, jornalistas e tradutores de referência na literatura actual em chinês, português e inglês. Eis o balanço da terceira edição do Festival Literário de Macau – Rota das Letras

1

 

Texto Cláudia Aranda | Fotos António Mil-Homens

 

A terceira edição do Festival Literário de Macau – Rota das Letras voltou este ano a enriquecer a cidade criando oportunidades para o público local ouvir e conhecer pessoalmente referências da literatura contemporânea chinesa e vozes representativas da actual literatura e jornalismo em português.

Bei Dao, poeta chinês já por várias vezes nomeado para o Prémio Nobel da Literatura, fez-se ouvir perante várias plateias, uma delas repleta de estudantes atentos e curiosos da Universidade de Macau. O autor, que nasceu em Pequim e vive hoje em Hong Kong, falou sobre o lugar da escrita na vida quotidiana e ainda recitou poesias na Biblioteca Sir Robert Ho Tung.

Yan Geling, que é uma das escritoras actuais mais conhecidas internacionalmente, era também aguardada com expectativa por estudantes e académicos. A escritora de Xangai é a autora do romance The Flowers of War, adaptado ao cinema pelo realizador chinês Zhang Yimou, num filme protagonizado pelo actor inglês Christian Bale. O enredo da sua obra mais recente, Mage is a City, é passado em Macau e retrata o ambiente dos casinos. Yan Gelin encontrou na RAEM “uma certa singularidade”, disse durante a sessão inaugural do festival, que juntou no mesmo painel sobre “A escrita como viagem” a autora de Xangai e a escritora e jornalista portuguesa Clara Ferreira Alves. Para escrever aquele livro, a escritora contou ter passado muitas horas nos casinos. “Vinha muito a Macau. Também perdi muito dinheiro para aprender algo sobre o jogo.” Yan Gelin sentou-se à mesa de jogo com funcionários dos casinos, apostou, ouviu conversas e escreveu uma história.

Clara Ferreira Alves recordou as visitas anteriores a Macau – em 1999 e outra já mais recente. A escritora e comentadora política descreveu a cidade como um “território excepcional de fantasia e ficção”, com um “ambiente de viagem permanente”, onde “há qualquer coisa de porto” e “narrativas sobrepostas” entre o real e o imaginário.

 

2

 

A liberdade da escrita

Do mundo da lusofonia fizeram-se representar três romancistas: o escritor, ilustrador e músico Afonso Cruz, autor de Jesus Cristo Bebia Cerveja e de Para onde vão os guarda-chuvas; a brasileira Andréa del Fuego, vencedora do prémio literário José Saramago em 2011 com o romance Os Malaquias, e o moçambicano João Paulo Borges Coelho, autor de O Olho de Hertzog, prémio Leya de 2009. Os três foram ouvidos e questionados intensamente pelos alunos da Escola Portuguesa de Macau (EPM), que lhes pediram dicas e sugestões para poderem tornar-se escritores.

“Uso a escrita para explicar o mundo em que estou a viver, mas a minha dificuldade é que quando estou a escrever não consigo encontrar o estilo de que gosto”, disse um aluno na sessão na EPM. E Andréa del Fuego respondeu: “Você não precisa de se prender a um género, os géneros se atravessam, as portas estão abertas, você pode começar com uma poesia e terminar com um género policial. A liberdade da literatura é essa”.

Sheng Keyi, autora de Northern Girls, a jovem prodígio Jiang Fangzhou – que escreveu o primeiro livro aos nove anos e, hoje, com apenas 24, conta já com nove obras publicadas – e o poeta e tradutor de Pequim Hu Xudong fizeram também parte da programação em língua chinesa. De Taiwan chegou o poeta e tradutor Yu Guangzhoung, de Hong Kong, a poeta e editora Tammi Ho Lai Ming e o escritor Jason Wordie, autor de Macau: People Places, Past and Present. A cubana Karla Suárez, a viver em Portugal, também marcou presença.

O festival, que é já um evento de referência na agenda cultural e literária de Macau, encheu salas de aula, auditórios de universidades e fez do teatro Dom Pedro V a sua base, para conversas com os escritores, um sarau de música jazz e uma feira do livro. Ao longo de dez dias a poesia e a literatura foram abordadas, discutidas, faladas e lidas intensamente em três línguas – o chinês, o português e o inglês. Recitou-se o Adeus de Eugénio Andrade e outros poetas incontornáveis, chineses e lusófonos.

O festival concedeu este ano especial atenção a autores de Macau, com um papel relevante na tradução de obras de autores chineses, entre os quais Manuel Afonso Costa. De Portugal chegou também o poeta e tradutor de chinês António Graça de Abreu, com uma forte ligação a Macau e à China. A literatura de Macau marcou presença, também, com Li Guangding, poeta e presidente do Macau Pen Club, a poeta Agnes Lam e a autora Fernanda Dias.

Dois Dará é o título do livro de contos publicado em português, chinês e inglês, lançado durante o evento literário e que reúne os textos vencedores do concurso lançado pelo festival, assim como os contos de autores que participaram na edição de 2013.

 

3

 

Espaço para a música

A cantora norte-americana Cat Power foi a cabeça de cartaz dos concertos realizados na Arena do Cotai. Memorável foi a homenagem prestada pelo realizador de cinema de Hong Kong Wang Kar Wai, que se deslocou a Macau para assistir ao concerto. Cat Power é uma das musas musicais do cineasta, canta Living Proof e The Greateast e representa o papel de Katya no filme My Blueberry Nights de Wang Kar Wai. No final do concerto, o cineasta ofereceu flores a Cat Power, dedicou-lhe algumas palavras, e desapareceu discretamente sem dar tempo aos fãs de pedirem um autógrafo.

O brasileiro Arnaldo Antunes, a cantora e actriz Tian Yuan – protagonista do filme exibido no festival Butterfly – e a banda Omnipotent Youth Society também actuaram na Arena.

Houve ainda espaço na programação para a projecção de filmes, exposições, entre as quais a mostra de desenhos e lançamento do livro Inércia do ilustrador e cartoonista português André Carrilho, e a realização de workshops de escrita criativa com Clara Ferreira Alves e Andréa del Fuego.

O Chefe do Executivo da RAEM, Chui Sai On, esteve presente na abertura do certame, que decorreu no Centro de Ciência de Macau. O evento arrancou a 20 de Março e prolongou-se até ao dia 30, tendo sido organizado pelo jornal Ponto Final e pelo Instituto Cultural com o apoio do Macau Pen Club, da Universidade de Macau e do Instituto Politécnico de Macau.

 

*****

 

O que disseram os escritores

Na sua passagem por Macau os autores falaram sobre a escrita e viagem, o lugar da literatura na vida contemporânea, de como é escrever no feminino, sobre Macau, a China, Portugal, Moçambique entre outros temas. Ficam aqui algumas referências em forma de citação dos pensamentos e sentimentos que os autores foram revelando nas diversas sessões realizadas durante o Festival Literário de Macau – Rota das Letras:

 

“Macau é definitivamente uma cidade cultural, calma mas também surreal”

Yan Geling

 

“Acho inegável o papel terapêutico da literatura”

Andréa Del Fuego

 

“Quando se escreve um romance, a maior dificuldade não está na técnica, no tempo. Está na voz. Em encontrar uma voz. Usar uma voz feminina neste livro [Rainhas da Noite] foi um grande risco”

João Paulo Borges Coelho

 

“A Ásia neste momento está no centro económico do planeta. As economias asiáticas e a emergência da China como potência mundial são de tal ordem que as pessoas acham que na Ásia é mais fácil ter um futuro do que na Europa”

Clara Ferreira Alves

 

“Os livros, as histórias permitem salvar ideias e a nossa maneira de ver o mundo (…) Somos uma série de histórias que passamos uns aos outros”

Afonso Cruz

 

“A escrita foi sempre um desafio, para ganhar liberdade, conquistar esse espaço de verdade, através da forma literária, ficcional”

Yao Jing Ming

 

“Os problemas do quotidiano podem ser um estimulante para a escrita”

Sheng Keyi

 

“Quase não conseguia encontrar a minha casa, sinto-me um estrangeiro na minha cidade e este livro é uma negação da Pequim actual”

Bei Dao

 

“É importante que sejamos sensíveis ao mundo (…) Escrever é confessarmo-nos a nós próprios (…) A apatia é inimiga da escrita”

Jiang Fangzhou