O Bairro de São Lázaro e uma certa consciência de modernidade

A partir do início do século XX, governos e cientistas começaram a dirigir e a concentrar intencionalmente a pesquisa para determinadas finalidades práticas tendo, de facto, a ciência começado a dominar a vida contemporânea.

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Texto Margarida Saraiva e Tiago Quadros | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Os progressos científicos verificaram-se em vários domínios, na física, na astrofísica, na física nuclear, na biologia, na medicina e na engenharia genética, estimulando o desenvolvimento de uma mentalidade racionalista e positivista[1]. Assim, uma série de invenções técnicas e industriais, como os novos conhecimentos decisivos nas ciências naturais e humanas marcaram o princípio do século XX. A teoria da relatividade de Albert Einstein, a criação da psicanálise por Sigmund Freud, a descoberta dos raios-X por Rontgen, ou ainda, a primeira desintegração nuclear obrigavam o homem a pensar de uma forma diferente, mais abstracta. Por outro lado, a invenção do automóvel e do motor aéreo, e a transmissão telegráfica de informações, conferiam à vida quotidiana uma vertente mais dinâmica. A velocidade e o tempo eram novas dimensões que exigiam formas de percepção “mais aceleradas”. O mundo parecia completamente diferente e novo, visto de um automóvel em marcha, para quem antes só estava habituado à velocidade dos carros puxados a cavalo.

Em 1903 Eugène Hénard[2] escrevia: “Todas as grandes cidades e, em particular, as grandes capitais europeias, que ao longo dos séculos foram crescendo graças ao aumento da sua população e da sua superfície, desenvolveram-se segundo um plano determinado por princípios singulares, que é exactamente o oposto daquilo que é necessário para a circulação/mobilidade da nossa época. Com efeito, o núcleo original dessas cidades não contém senão ruas estreitas; ruas essas que sendo satisfatórias na Idade Média, dada a escassez de meios de transporte então existentes, revelam-se hoje em dia face à actual circulação, bem acanhadas. Um processo oposto prevaleceu quando edificámos novos quarteirões e, não sem razão, neles rasgámos ruas cada vez mais largas. Donde resulta que os fluxos de circulação de uma cidade, sem poder ser equiparados à circulação sanguínea de um organismo vivo, a esta se assemelham de alguma forma, com a diferença de que as artérias são tanto mais estreitas quanto mais se aproximam do coração.”[3]

 

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Inevitavelmente o espírito de mudança viria a reflectir-se na literatura e nas artes (arquitectura, pintura, cinema, escultura, música e dança). As teorias do relativismo científico, da psicanálise, e o aparecimento de novas correntes plásticas constituíram os principais vectores da mudança cultural. Nesta mudança, a exaltação de uma consciência colectiva permitiu a reconstrução disciplinar, em particular na Arquitectura, mas também no Urbanismo, disciplinas intimamente ligadas e que os arquitectos das vanguardas assim entenderam existir como condição básica de resposta a uma modernidade que emergia. A arquitectura já não era uma questão de monumentos ou cidades excepcionais, mas um direito para todos e, como tal, passou a ser fundamental no quotidiano dos cidadãos.

Em Macau, o planeamento urbano bem como a introdução de saneamento básico foram também associados a mudanças no modo de produção e da aplicação da tecnologia ocidental através de melhorias e expropriações na cidade, legitimadas por uma legislação de génese ocidental.

No decurso da segunda metade do século XIX uma série de melhorias foram introduzidas em Macau. Entre 1863 e 1866, foi construída uma estrada que ligava a cidade à “Porta do Cerco”; foram planeadas as novas Avenidas entre as duas portas, seguindo os princípios urbanistas racionais ocidentais[4]. Com base nesses mesmos princípios, entre 1897 e 1904, no decorrer da governação de Horta e Costa, foi desenvolvido um plano urbanístico para as áreas de produção agrícola localizadas não muito longe da área acima referida. O plano consistia numa estrutura de vias dispostas ortogonalmente, onde viriam a ser implantados edifícios de matriz colonial. Contudo, o plano para as novas avenidas não reflectia apenas uma extensão e reprodução de modelos ocidentais de planeamento urbano. Ao eliminar o que restava da produção agrícola, o plano traduzia também um processo de crescimento desigual no modo de produção de alguns dos habitantes chineses locais, cuja única actividade estava relacionada com a agricultura.

 

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Neste contexto, o Bairro de São Lázaro foi o primeiro bairro planeado (1903) e construído no território, de acordo com o projecto do arquitecto espanhol J.M. Casuso, com vista a regular a construção a partir de um esquema urbano ortogonal. Desenvolvendo-se a partir das ruas Volong, Nova de São Lázaro, de São Roque, de São Miguel e Eduardo Marques, esta iniciativa do início do século XX, em plena cidade chinesa, representa a primeira experiência de construção de um conjunto habitacional integrado numa concepção global de planeamento urbano em Macau.

“Os quarteirões são formados por grupos de blocos de volumes paralelepipédicos de habitação com dois andares. A linguagem é eclética, conjugando as várias influências presentes no início do século, da art nouveau aos revivalismos e ao neoclassicismo, mas que aqui são temperadas com os dispositivos macaenses para garantir ventilação cruzada, sombreamento e frescura usando recuos da fachada, reixados e transparências. Foi renovado recentemente (1987-89), sendo as ruas cobertas por calçada à portuguesa.”[5] Contudo, a linguagem eclética do Bairro revelava-se também na sua estrutura social: “Fora do círculo de influência do centro da cidade cristã, surgem os Mamons, habitantes dos Bairros de São Paulo, Santo António, Bairro do Monte (incluindo o Largo da Companhia). Ninguém conhece ao certo a origem deste nome. Silveira Machado defende que a sua origem está na realização de festividades, procissões, feiras de gado onde eram servidas grandes quantidades de comida, sendo a expressão Mamons uma deriva da palavra “mamar”. Nos finais dos anos 60, os jovens Mamons juntavam-se no topo das escadas de São Lázaro. Era um ambiente muito democrático. Ali se juntavam Portugueses de Portugal, Portugueses de Macau, Chineses, Ingleses e Americanos. Jovens provenientes de diferentes estratos sociais.”[6] Seja na mudança que representa no tecido urbano da cidade, como no diálogo intercultural promovido, a construção do Bairro de São Lázaro revela uma certa consciência de modernidade.

BIBLIOGRAFIA

AFONSO, José da Conceição, (1999). “Macau: uma experiência de urbanismo estratégico e higienista dos finais do séc. XIX aos começos do séc. XX”, in Revista de Cultura n. 38-39, Macau: Instituto Cultural de Macau.

BURNAY, Diogo (1994). Modern Architecture in Macau. Architecture, modernism and colonialism in Macau, Londres: The Bartlett, University College London: Dissertação de Mestrado em Arquitectura apresentada à University College London.

COSTA, Maria de Lourdes Rodrigues (1997). História da Arquitectura de Macau, Macau: Instituto Cultural de Macau.

HÉNARD, Eugène, (1903). “Études sur les transformations de Paris”, in Architecture une Anthologie (1992). Liège: Mardag.

PROENÇA, Sérgio dos Santos Barreiros (2007). Urbanismo Colonial nas Províncias Orientais, Continuidade e Ruptura na Elaboração dos Planos Urbanísticos no Estado da Índia, Macau e Timor, 1934-1974, Universidade Técnica de Lisboa: Dissertação de Mestrado em Arquitectura apresentada à Universidade Técnica de Lisboa.

 

[1] Auguste Comte realça o estado científico ou positivo no qual a humanidade busca uma explicação dos fenómenos pelas suas leis naturais, cujo conhecimento a habilitaria a iluminar e a dominar o mundo. No fundo, o positivismo de Comte é um racionalismo para o qual a reforma da sociedade depende da reforma da inteligência.

[2] No serviço de arquitectura da Câmara Municipal de Paris, Eugène Hénard (1849-1923), participou nos trabalhos de preparação das Exposições Universais de 1889 e de 1900. Arquitecto membro do Musée Social, participou no Congresso Internacional de Urbanismo de Londres em 1910, e, em 1911 torna-se o primeiro presidente da Société Francaise des Architectes Urbanistes. A sua obra, Les Transformations de Paris, é publicada em fascículos de 1903 a 1909.

[3] HÉNARD, Eugène, (1903). “Études sur les transformations de Paris”, in Architecture une Anthologie (1992). Liège: Mardag.

[4] (Mendes, 1987: 36).

[5] TOSTÕES, Ana, et al. (2010). Património de Origem Portuguesa no Mundo – Ásia, Oceânia, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 491.

[6] SARAIVA, Margarida (Junho de 2009). Entrevista realizada ao Arquitecto Carlos Marreiros.