Música | Pautas que cruzaram o mundo

É uma parceria que começou a milhares de quilómetros. O compositor português João Melo, ex-integrante da banda A Fúria do Açúcar, está a colaborar com a cantora chinesa Micky Tang. De visita à RAEM, o músico explicou à MACAU a importância de se manter uma “linguagem própria” num mundo globalizado

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Texto Sofia Jesus | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

João Melo chegou a Macau carregado com um computador “gigantesco” que, ao contrário do que temia, “veio inteiro”. É nesse computador que o artista português, vocalista da antiga banda A Fúria do Açúcar, tem trabalhado nas músicas que está a compor para a cantora chinesa Micky Tang.

“Como artista, gosto de me meter dentro de diversos universos, diversas realidades, para tentar compreender”, explicou à MACAU, durante as férias que passou recentemente no território, para visitar um amigo, também músico, actualmente a viver na RAEM. Foi pela voz desse amigo que surgiu a ideia da colaboração com Micky Tang.

João Melo, sedeado em Londres, achou o desafio “interessante, por si só,” e assim começaram os contactos via Skype. Viu o que a cantora tinha feito, tomou conhecimento de um pouco daquilo que se fazia na China e concluiu que uma das variantes do seu trabalho de composição “tinha tudo a ver” com a Ásia e, em particular, “com a ambiência sonora da China”.

Começou por enviar duas músicas a Micky Tang: uma que já tinha composto e à qual fez um arranjo que julgou apropriado para a intérprete chinesa; outra que compôs “do nada” para a ocasião. “Ela adorou”, garante, e “está a pensar incluí-las no próximo CD”.

O projecto passa por João Melo compor as músicas e escrever as letras em inglês, e Micky Tang interpretá-las, em mandarim. “Eu explico toda a ideia da letra e ela faz a adaptação”, esclarece o músico português, sublinhando que não se trata propriamente de uma tradução, porque isso “é quase impossível”. Que o diga a experiência que o compositor teve com Eu gosto é do Verão, uma música bem-humorada que fez furor em Portugal nos anos 1990: “Houve alguém que traduziu, depois mostrei a várias pessoas que percebem mandarim e essas comentaram: ‘Esta é uma música muito triste, não é? Porque dizem que na Suécia se matam, que passam a Primavera toda a espirrar…’”

 

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“Uma cultura que nunca mais acaba”

A barreira linguística é, no entanto, um dos factores que contribuem para o “fascínio” que João Melo ganhou pela cultura chinesa, nesta visita a Macau. “[Está] tudo escrito em chinês e português e nenhuma das comunidades percebe a outra”, comenta, assumindo que, para si, seria “uma loucura” viver em Macau sem falar chinês. Mesmo só de férias a curiosidade levou-o a querer reconhecer alguns caracteres – na pequena colecção dos que decorou estão “Grande” e “Pequeno”.

À chegada à RAEM, o músico emocionou-se com os vestígios da presença portuguesa na cidade, “impressionado” não só com o facto de os portugueses terem conseguido chegar “tão longe”, “em meia dúzia de barquitos”, mas também com o facto de a sua influência se fazer sentir ainda hoje e de essa ligação ser incentivada pelas autoridades chinesas.

Macau surgiu-lhe como “único”: “Podia viver aqui o resto da minha vida, a tentar absorver as cambiantes da cultura, da língua e da maneira de ser e acabava por morrer sem conhecer um décimo. Portanto, é muito entusiasmante para o meu espírito curioso tentar descodificar isto.”

João Melo, também intérprete e produtor, ex-apresentador de televisão e com anos de experiência em produções infantis, explica que compor – o seu “maior prazer na música” – é um trabalho que pode ser feito a partir de qualquer lado do mundo, mas, para conhecer melhor o mercado, os gostos e a forma de pensar das pessoas, a vinda a Macau era mesmo necessária. “Para eu, sem perder a minha identidade e a minha própria linguagem, poder adequar [as minhas criações] à realidade [local]”, justifica.

As férias em solo chinês revelaram-lhe um mercado que considera “fantástico”, com “potencialidades inacreditáveis”. O músico não pensa, “de maneira alguma”, num regresso a Portugal e, para já, sair de Londres também não está nos seus planos, mas mostra-se interessado em “deixar a porta aberta” a novos projectos deste lado do mundo.

 

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Linguagens únicas

Quanto ao actual panorama musical na China, João Melo considera que, dos artistas que viu, a tendência principal é a de que “é tudo um bocadinho comercial”, mas, ao mesmo tempo, com “uma linguagem mais ou menos própria”. No entender do músico português, a força da cultura chinesa e a distância física e temporal em relação às influências de Inglaterra e dos Estados Unidos permitem aos artistas manterem “alguma pureza” e continuarem “ligados a algumas raízes ancestrais que fazem com que [a sua criação] seja qualquer coisa ainda única”. Uma vantagem, garante.

“Desde que passei a compor regularmente, deixei de ouvir muita coisa, porque preciso de algum silêncio. Preciso de um silêncio dentro de mim. […] Preciso de me ouvir cá dentro”, explica o artista. Afinal, diz, “num mundo em que é tudo igual e tudo sem sentido, acho que devemos ter a nossa própria linguagem”. “Investir nisso”, acrescenta, é, por vezes, “um risco, mas também pode ser uma grande vantagem”. E é como se sente “mais confortável”.